A ciência deveria salvar todos, não apenas alguns
O “legado do colonialismo na investigação científica” é tema de editorial da edição de agosto de 2024 da revista Science – Science should save all, not just some (A ciência deveria salvar todos, não apenas alguns) –, que aponta uma injustiça no acesso aos frutos da ciência. De acordo com o texto, assinado pelos professores Madhukar Pai, da universidade McGill, no Canadá, e Seye Abimbola, da Universidade de Sidney, na Austrália, esse legado inclui um sistema de propriedade intelectual que favorece os países do Norte Global e as grandes corporações que estes apoiam.
Para além de questões envolvendo a falta de diversidade nos conselhos editoriais de revistas científicas, desigualdades na autoria, domínio da língua inglesa ou os prêmios científicos conquistados predominantemente por cientistas do Norte Global – temas em torno dos quais normalmente se discutem a equidade global e a justiça na ciência – o texto enfatiza “um problema maior” e indaga “a quem a ciência foi concebida para servir ou salvar”.
Os autores trazem como exemplo a pandemia da Covid-19 e a vacina de mRNA [RNA mensageiro] a qual, mesmo levando à conquista de um Prêmio Nobel, não chegou a milhões de pessoas no Sul Global em tempo hábil – apesar dos investimentos públicos na produção dessas tecnologias. “Os governos do Norte Global acumularam vacinas e foram pressionados pelas empresas farmacêuticas a bloquear uma isenção de patente que poderia ter permitido aos países do Sul Global produzirem as suas próprias vacinas de mRNA como solução de curto prazo durante um período de grande necessidade”, escrevem, acrescentando que “o compromisso com a exploração capitalista que impulsionou grande parte da colonização europeia persiste na ciência e continua a custar vidas”.
A plataforma de mRNA, destaca o editorial, é largamente controlada pelo Norte Global e pelas grandes indústrias farmacêuticas, prejudicando o desenvolvimento de vacinas contra uma variedade de doenças. “Essas mesmas dinâmicas de poder e intervenientes também inviabilizaram o acordo pandémico, que visa garantir a equidade”.
O texto apresenta também o exemplo do lenacapavir, medicamento utilizado como profilaxia pré-exposição ao HIV, com 100% de eficácia na prevenção ao vírus em mulheres cisgênero na África do Sul e Uganda. “No entanto, essa inovação revolucionária custa 42 mil dólares por ano”, apontam. “Os indivíduos negros e pardos são dignos de ensaios clínicos, mas não de acesso a tratamentos que salvam vidas?”, indagam.
Ao citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948, que afirma o direito de todos a “participar nos avanços científicos e nos seus benefícios”, o editorial enfatiza que seu teor deve ser reafirmado “por todos os cientistas e países porque vidas dependem dela”. Para que esse direito seja concretizado, afirmam, “a ciência deve deixar de ser uma empresa que privilegia os lucros e a elite”.
Os autores defendem, nesse sentido, que aqueles historicamente marginalizados, incluindo os negros e os indígenas, e os habitantes do Sul Global de modo geral, devem recusar-se a ser vistos como “destinatários passivos da ciência caritativa e progressiva, e exigir parcerias equitativas”.
Ao mesmo tempo, observam, emergem a autodeterminação e a autossuficiência no avanço da ciência por parte das nações do Sul Global. Os autores citam a Índia e a China, que produziram vacinas contra a Covid-19 (não baseadas em mRNA), que chegaram a diversos países durante a pandemia.
Lembram, ainda, do Centro de Tecnologia mRNA, inaugurado pela OMS em abril de 2023, na África do Sul, aclamado como “aspiração descolonial”, e do Acelerador Africano de Fabricação de Vacinas (AVMA na sigla em inglês), preparados para criar uma indústria sustentável de vacinas na África. Observam também que cientistas africanos colaboraram durante a pandemia da Covid-19 para expandir a infraestrutura de sequenciação genômica e estão agora na liderança da definição do panorama da investigação genômica na região. “Uma maior solidariedade Sul-Sul pode ampliar ainda mais essas iniciativas, ao permitir a transferência de tecnologia, consórcios de investigação e intercâmbios entre países”, propõem.
O editorial conclama os cientistas a defender coletivamente mudanças na forma como a ciência é financiada, como os governos definem os regimes de propriedade intelectual e como os cientistas são incentivados, observando que agências de financiamento como a Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional – Wellcome Trust e Fogarty International Center –começam a apoiar parceiros do Sul Global e comunidades afetadas. “Todos os financiadores devem fazer isso”, afirmam. “E os cientistas de todo o mundo devem ser formados para ver a equidade, o acesso e a justiça como valores fundamentais no seu trabalho. Isto começa a acontecer na saúde global e na investigação médica, mas deve tornar-se universal”, alertam.