A Cúpula do G-7 ou a precaridade insustentável de seus resultados
Há coisas que deveriam ser evidentes após dezoito devastadores meses de pandemia da Covid-19, como a necessidade que todos sejam vacinados o quanto antes. Os líderes mundiais reconhecem a imunização extensiva como um bem público global. Da mesma maneira, o mantra ninguém está a salvo enquanto todos não estiverem a salvo é repetido por todos com convicção. As duas evidências são agora moeda corrente nos grandes foros.
A Cúpula do G-7, que se encerrou no domingo 13/06/2021, em Carbis Bay, deveria ser uma oportunidade não somente para reafirmar aquelas duas evidências, mas para feitos concretos. O momento devia ser de ação. Não foi.
Em nota conjunta publicada em todos os grandes jornais, os diretores do FMI, Banco Mundial, OMC e OMS advertem que os governos devem tomar medidas urgentes, sem demora, sob o risco de assistirmos a novas ondas da Covid-19, bem como à explosão de novas variantes, mais contagiosas, minando a recuperação global. Apoiados em evidências, afirmaram o que deveria ser inquestionável: que não haverá recuperação sem um fim da pandemia. O acesso a vacinas é uma necessidade para ambas.
A advertência dos diretores surge de análise recente do FMI que, por sua vez, ecoa relatório anterior levado a cabo pela Câmara de Comércio Internacional. Aqueles estudos, antes, e agora os diretores, indicam que investir na pandemia poderá gerar um boost de US$ 9 trilhões adicionais no PIB mundial até 2025. Número sério, que deveria ser considerado com atenção pelos líderes mundiais. O investimento proposto pelos diretores deveria somar US$ 50 bilhões para aumentar a capacidade de produção e distribuição de diagnósticos, medicamentos e vacinas. A meta dos diretores era aumentar a proposta da OMS e os seus parceiros na iniciativa COVAX: passar de 30 a 40% da população mundial, ainda em 2021 e 60% no primeiro semestre de 2022. Em termos numéricos, e sempre segundo a OMS, aquele montante iria garantir 11 bilhões de doses.
O anúncio dos diretores veio no mesmo dia do encerramento da 74ª sessão da Assembleia Mundial da Saúde. Tomou a todos de surpresa. Foi considerado nas reuniões setoriais de ministros das Finanças e da Saúde do G-7, preparatórias para a Cúpula que se realizou, em Carbis Bay, de 11 a 13 de junho.
Reunidos naquela capital verde do Reino Unido, os líderes das sete maiores economias do mundo não deram seguimento à proposta dos diretores. Em vez do compromisso de investir US$ 50 bilhões, os líderes preferiram destinar 870 milhões de doses de vacinas que sobraram de suas respectivas campanhas de vacinação. Não deixa de ser uma xepa, de utilidade para 435 milhões de pessoas se seguirmos a lógica de duas doses. Uma gota no oceano de 7.9 bilhões de pessoas, que precisarão aproximadamente 16 bilhões de doses no regime de duas doses e, talvez, mais de 20 bilhões se forem três. Falência moral? Sim, mas por que a surpresa? O mundo não está como está por outra razão.
Os líderes do G-7 tampouco deram seguimento ao debate em torno à proposta de países em desenvolvimento e os EUA de suspensão temporária das patentes, o que significaria aumentar a capacidade de produção e distribuição mencionado pelos diretores. Há que reconhecer que as atuais regras de comércio impossibilitam a expansão geográfica de unidades de fabricação de produtos de e para a saúde, vacinas incluídas. O Acordo Trips não leva em consideração a possibilidade de uma pandemia, como a que estamos testemunhando. O HIV/Aids assustou, mas não causou impacto semelhante à Covid-19. Ainda assim, decidiu-se concluir a Declaração de Doha sobre Propriedade Intelectual e Saúde Pública, que explicita que nada no Acordo Trips impedirá um país de tomar medidas em favor da saúde pública. Os que conhecem as dificuldades por que passa a saúde pública em todos os países, mas especialmente nos países em desenvolvimento, aquela Declaração é um ideal quase impossível de ser efetivado, tantas são as interposições jurídicas.
Em vez do compromisso de investir US$ 50 bilhões, os líderes das sete maiores economias do mundo preferiram destinar 870 milhões de doses de vacinas que sobraram de suas respectivas campanhas de vacinação. Não deixa de ser uma xepa, de utilidade para 435 milhões de pessoas se seguirmos a lógica de duas doses. Uma gota no oceano de 7.9 bilhões de pessoas, que precisarão aproximadamente 16 bilhões de doses no regime de duas doses
Como cães de faiança, os líderes do G-7 reunidos em Carbis Bay preferiram a segurança oferecida pelas normativas de Trips. E como tripulantes de uma nau de insensatos, insistiram em trabalhar dentro daquele Acordo, esperando resultados diferentes, que claro, não virão. É preciso convencer-se que Trips não está escrito em pedra, como um mandamento divino, para guiar o comportamento da humanidade frente ao comércio. Trips deve servir ao homem, não o homem a Trips, parodiando um adágio profundo.
O G-7 não cuidou somente de vacinas contra a Covid-19. Os líderes acolheram com satisfação a proposta da Fundação Gates de desenvolver vacinas para outros vírus em 100 dias, deixando claro o fascínio deles com a proeza atlética da ciência e tecnologia. O que se garante assim contudo, é apenas o combate aos efeitos, não às causas, pondo em evidência que não há intenção, ao menos séria, de mudar comportamentos, não obstante as reiteradas solicitações em favor da mudança dos modos de produção e de consumo. infelizmente, o que se pode deduzir com aquele fascínio, é que o normal que nos trouxe até aqui e caiu por terra, deverá ser reerguido para servir de norte para o próximo desastre.
As críticas da sociedade civil com respeito à falta de detalhes dos desembolsos anunciados para evitar que se alcance o aumento de temperatura crítica de 1.5º acima do nível pré-industrial não são vazias, nem histéricas. A mudança climática é uma realidade, assim como a pandemia, que não pode ser ignorada. A Oxfam, que tem reconhecida sua competência em vários assuntos que incomodam governos, manifestou sua frustração com a resposta do G-7 frente à maior emergência sanitária de que se tem notícia e à catástrofe climática que está destruindo o planeta. Com efeito, a cinco meses da 26ª Conferêrencia das Partes (COP-26) da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, que deverá realizar-se na segunda semana de novembro, em Glasgow, os resultados sobre clima alcançados pelo G-7 em Carbis Bay não parecem nada reconfortantes.
Como tripulantes de uma nau de insensatos, insistiram em trabalhar dentro do Acordo Trips, esperando resultados diferentes, que claro, não virão. É preciso convencer-se que Trips não está escrito em pedra, como um mandamento divino, para guiar o comportamento da humanidade frente ao comércio. Trips deve servir ao homem, não o homem a Trips
Não se trata de ser pessimista, mas frente ao quadro desesperador da pandemia e da catástrofe climática, é quase impossível livrar-se da impressão doída de que a ficha não caiu. Atrelados a nacionalismos estúpidos, amarrados a egoísmos contraproducentes, atados a visões umbilicais primitivas – parecem não se dar conta, os líderes, que talvez estejamos num ponto de inflexão histórica. O contexto, claro, poderia justificar os resultados medíocres e talvez valha a pena, nem que seja por dever de ofício, voltar aos caminhos batidos pelos líderes. Não obteremos a pedra filosofal, nem a transformação por alquimia do medíocre em grandioso, mas teremos a satisfação de conhecer mais um grau da infalível insensatez.
De que contexto de trata? Da saída do Reino Unido da União Europeia. Como se sabe, a Irlanda do Norte faz parte do Reino Unido. O efeito prático do Brexit é a separação das duas irlandas, uma ligada à União Europa, a outra à Inglaterra, País de Gales e Escócia. A separação, que teria de ser concretizada por uma fronteira aduaneira, viola o Acordo de Belfast, que pôs fim ao trágico conflito entre as irlandas e o Reino Unido. Com efeito, aquele acordo estabelece que os irlandeses do norte podem identificar-se como cidadãos da Irlanda, do Reino Unido, ou dos dois. Ademais, garante a qualquer cidadão morar em qualquer parte da Irlanda, norte ou sul.
A UE, a França em particular, reclama o estabelecimento de uma fronteira aduaneira. O Reino Unido, tem evitado o que considera preciosismo jurídico, reconhecendo o risco maior de separar os irlandeses. A verdade é que não há solução que atenda simultaneamente ao Acordo de Belfast e à UEE. Infelizmente, trata-se de uma consequência impensada do BREXIT. Para quem conhece a história daquele conflito, qualquer medida que rompa na prática o espírito de conciliação contido no Acordo de Belfast é algo temerário, com consequências desconhecidas para o Reino Unido e, talvez, para a UEE.
O Presidente Joe Biden não ignora o risco e por essa razão pediu ao PM Boris Johnson, antes do início da Cúpula do G-7, a solução do problema. Para o Presidente norte-americano é claro que qualquer conflito na região do Atlântico pode minar o seu plano de restabelecer uma aliança atlântica para enfrentar a China, o adversário da vez.
America is back parece uma frase de efeito de filme futurístico. O presidente Biden pode apostar as suas fichas naquela crença, mas é incerto que os líderes europeus, chacoalhados pela administração norte-americana anterior, lhe deem o crédito esperado. Emmanuel Macron, que havia tomado a bandeira de defesa da democracia e do multilateralismo, não é um entusiasta da volta protagônica dos EUA, aparentemente decididos a embarcar numa guerra santa contra a China.
Por que, de fato, demonizar a China, pensarão os europeus quando é mais fácil recorrer ao espírito pragmático? Ademais, por que confiar na atual administração norte-americana, que muitos veem como a calma entre duas tormentas, a era Trump e o nefasto negacionismo do Partido Republicano, que pode voltar a ter maioria nas duas casas em 2022?
Não são problemas menores, como se pode observar. Divididos de saída, submetidos a diferentes pressões e angústias imediatas, talvez tenham pensado, inconscientemente, que o que fizeram pela saúde global, pelas vacinas, e pela mudança climática era suficiente. Talvez.
Mas fica a suspeita de que nada mudará enquanto tudo não mudar, pois já se sabe que ninguém está a salvo enquanto todos não estiverem a salvo.
* Pesquisadores do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz). Artigo publicado na última edição dos cadernos CRIS 10-21.
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