Emendas ao Regulamento Sanitário Internacional aprovadas na Assembleia Mundial da Saúde - 2024. Missão cumprida?
Eduardo Hage Carmo*
No dia 1o de junho de 2024, a 77a Assembleia Mundial da Saúde (AMS) aprovou um conjunto de emendas ao Regulamento Sanitário Internacional (RSI), após dois anos de negociações que tiveram início com a conclusão dos trabalhos de um Comitê de Revisão do RSI da Organização Mundial da Saúde (OMS). Esse Comitê teve a atribuição específica de realizar consultas aos Estados-membros e consolidar as propostas apresentadas, as quais foram entregues ao diretor geral da OMS em janeiro de 2023 (World Health Organization, 2023).
O relatório final do Comitê de Revisão, contendo mais de 300 propostas de emendas ao RSI, foi objeto das negociações conduzidas pelo Grupo de Trabalho (WGIHR, na sigla em inglês) conformado em novembro de 2022 e composto pelos Estados-membros da OMS. As discussões substantivas tiveram início em fevereiro de 2023, tendo sido realizadas oito reuniões do WGIHR, além de reuniões de consulta com participação de organizações da sociedade civil e outras partes interessadas, sendo a última reunião do grupo realizada na semana anterior à 77a AMS (WHO | Working Group on Amendments to the International Health Regulations (2005)).
No mesmo dia em que foram aprovadas as emendas ao RSI na MAS, os Estados-membros decidiram por dar continuidade às negociações sobre um acordo para fortalecer a prevenção, preparação e resposta frente às pandemias, conduzidos pelo Orgão de Negociação Intergovernamental (INB, na sigla em inglês), em um prazo máximo de um ano.
Desde a entrada em vigor do Regulamento Sanitário Internacional, em 2007, o mundo já vivenciou sete Emergências de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII). Com a implementação do RSI pelos Estados-partes, a expectativa era que houvesse uma ampliação da capacidade global para prevenção, detecção, resposta e recuperação frente às ESPII, o que não foi plenamente alcançado, conforme evidenciado por vários relatórios de comitês internacionais (incluindo do próprio RSI), painéis e publicações científicas (Aavitsland et al, 2021; Souza et al, 2022; Kamradt-Scott A, 2018; World Health Organization, 2011; Independent Panel for Pandemic Preparedness and Response, 2021; World Health Organization, 2021).
Nesse contexto, a introdução de emendas ao RSI visa melhorar sua implementação pelos Estados-partes, mas certamente não é suficiente para que, em nível global e nos países em particular, essas capacidades para lidar com as Emergências de Saúde Pública sejam aperfeiçoadas.
Sobre a introdução de emendas ao RSI
Após a aprovação pela Assembleia, o diretor geral da OMS comemorou os resultados do processo de negociação, que foi bastante intenso e mobilizou toda a Organização, os Estados-membros e outras organizações envolvidas. Entre o conjunto de emendas, foram destacadas: a) Introdução de uma definição de emergência pandêmica; b) o compromisso com a solidariedade e a equidade com relação ao fortalecimento do acesso aos produtos médicos e ao financiamento (que inclui um mecanismo financeiro de coordenação, com o objetivo de desenvolver, manter e fortalecer as capacidades básicas dos países, especialmente dos países em desenvolvimento); c) o estabelecimento de um comitê dos Estados-partes para facilitar a aplicação efetiva do Regulamento; d) a criação de Autoridades Nacionais para o RSI (La Asamblea Mundial de la Salud llega a un acuerdo sobre un conjunto decisivo de enmiendas de amplio alcance para mejorar el Reglamento Sanitario Internacional y fija la fecha para ultimar las negociaciones sobre una propuesta de Acuerdo sobre Pandemias (who.int)).
Para contextualizar as mudanças inseridas no RSI com as avaliações anteriores sobre as capacidades globais para enfrentamento das emergências de saúde pública, tomemos como exemplo o relatório do Comitê de Revisão que analisou o funcionamento do RSI durante a pandemia de Covid-19, apresentado na 74a AMS (WHO, 2021). Esse relatório identificou uma série de insuficiências na aplicação do RSI e na resposta coordenada frente às ESPII pelos Estados-partes e pela própria OMS.
A partir desse trabalho, os membros do comitê publicaram um artigo no mesmo ano, no qual foi apresentada uma série de recomendações para melhoria nas capacidades globais para enfrentamento de emergências de saúde pública (Aavitsland et al, 2021). Essas recomendações foram agrupadas em três áreas: cumprimento das obrigações pelos Estados-partes, empoderamento do ponto focal nacional do RSI, mecanismo de revisão e prestação de contas; alerta precoce, notificação e resposta; comprometimento financeiro e político.
Quando analisamos as emendas introduzidas no RSI, é possível identificar que algumas das deficiências apontadas podem ser consideradas contempladas, mas não em sua totalidade. Se nos concentrarmos nos principais aspectos destacados no recente comunicado da OMS, é possível constatar que:
a) a introdução de uma nova definição para emergência pandêmica (considerando que já existe um conceito estabelecido para pandemia) visa estabelecer um vínculo com um futuro novo instrumento internacional que venha a tratar especificamente desse tipo de evento, como vem sendo discutido no âmbito do INB. Atende também à necessidade de que, entre as ESPII, para aqueles eventos que tenham uma maior propagação geográfica, ou um maior risco de que esta propagação ocorra, seja estabelecido um nível diferenciado para sua classificação, que requeira adoção de medidas urgentes e apropriadas.
Conforme estabelecido no RSI emendado, para a definição de uma emergência pandêmica, foram definidos alguns critérios que possibilitam a classificação de potenciais eventos de forma mais homogênea entre os Estados-partes e a OMS. Além do risco de ampla propagação geográfica, são considerados: o risco de superar as capacidades nacionais para responder a esses eventos; o risco de provocar consideráveis perturbações sociais e/ou econômicas; e a necessidade de uma rápida ação internacional coordenada, equitativa e reforçada, com um enfoque que envolva a todo o Governo e a toda a sociedade.
Para a classificação de um evento como potencial emergência pandêmica, inicialmente se aplicariam o processo e o instrumento já estabelecidos para uso do Anexo 2 do RSI (para o qual não houve modificação), que orienta quais eventos devem ser notificados pelos Estados Partes à OMS como potencial ESPII. Após a definição de um evento como uma ESPII, o que requer a análise por um Comitê de Emergência, seriam analisados os critérios para classificação de emergência pandêmica. Ambas as definições finais sobre a classificação do evento são atribuições do Diretor Geral da OMS.
Cabe aqui destacar que, embora estejam presentes os critérios para essa nova definição, para a sua análise e classificação preliminar, que compete aos Estados Partes, assim como, para que o diálogo entre Estados Partes e a OMS seja mais efetivo, é necessário que a interpretação desses critérios, frente a um evento real, seja mais homogêneo. Por exemplo, o que será considerado como “ampla propagação geográfica” ou “consideráveis perturbações sociais e/ou econômicas”? Certamente, não seria apropriado que nas definições estivessem presentes todos os cenários possíveis, mas será importante trabalhar eventuais cenários, por meio de instrutivos, guias e exercícios, para que estas definições não sejam utilizadas de forma diferente, por exemplo, quando um determinado evento ocorra em países mais desenvolvidos, em comparação com um evento com características semelhantes, ocorra em países menos desenvolvidos, ou ainda, quando interesses de grandes corporações estejam em jogo.
b) a introdução da promoção de equidade e da solidariedade entre os princípios do RSI é um avanço a ser comemorado, considerando que grande parte das deficiências no enfrentamento de todas as emergências de saúde pública foi marcada pela não adoção desses princípios na resposta a essas emergências. A inclusão desses dois termos em vários artigos do RSI possibilita que todas as iniciativas dirigidas desde a prevenção até a recuperação frente às emergências de saúde pública levem em conta a necessidade de reduzir ou eliminar as desigualdades no acesso às ações e serviços de saúde, aos tecnológicos e aos recursos financeiros, com o objetivo de reduzir os riscos ou mitigar os efeitos desses eventos.
Obviamente, a efetiva incorporação desses princípios não garante a mudança de práticas já consolidadas na arquitetura global em relação às emergências de saúde pública, que resultaram nas deficiências na resposta global a todas as ESPII (Souza et al, 2022). Para o que será necessário avançar no estabelecimento de compromissos, aqui residindo o importante vínculo com um futuro acordo sobre pandemias.
Cabe mencionar ainda que o princípio da equidade não se restringe - ou não deveria se restringir - a um acesso mais equânime aos produtos pertinentes de saúde (conforme estabelecido no novo texto), mas compreende outras dimensões relacionadas à redução das desigualdades sociais, que determinam ou condicionam os mesmos eventos de saúde contemplados pelo RSI (Carmo, 2023).
c) O estabelecimento de um comitê dos Estados-partes para facilitar a aplicação efetiva do Regulamento pode (ou poderia) representar uma medida importante para que os Estados Partes cumpram com as obrigações estabelecidas neste instrumento e atendem, em parte, a um conjunto de recomendações do Comitê de Revisão do RSI de 2021 (Aavitsland et al, 2021). Entretanto, não ocorreram mudanças significativas nos mecanismos previsto no Regulamento atual para monitoramento e prestação de contas (grande parte deles estabelecidos em reuniões da AMS após a aprovação do RSI 2005), o que tem sido evidenciado como insuficiente para garantir ou impulsionar que os Estados Partes e a própria OMS implementem plenamente o RSI.
Este aspecto deve merecer maior aprofundamento nos próximos meses e anos, tendo em vista que, caso esses mecanismos não sejam aperfeiçoados, a força juridicamente vinculante do RSI tende a ser atenuada.
d) A criação de Autoridades Nacionais para o RSI visa ampliar o empoderamento das instâncias nacionais responsáveis nos Estados-partes pela implementação do RSI. Até o momento, grande parte dessa tarefa tem sido atribuição do ponto focal nacional do RSI, que em muitas situações não representa um ente relevante, do ponto de vista da arquitetura governamental, para tomada de decisões. Esta insuficiência, também destacada pelos membros do Comitê de Revisão do RSI (Aavitsland et al, 2021), tem restringido o papel do Ponto Focal a uma área dentro da estrutura de governo no estabelecimento de comunicação com a OMS, quando da ocorrência de potenciais ESPII.
Por fim, merece menção a um tema que foi pouco trabalhado no processo de introdução de emendas ao RSI, possivelmente pela sensibilidade do tema e as posições conflitantes quando da aplicação do RSI durante todas as ESPII. As medidas adicionais, conforme previstas no Artigo 43, dirigidas para evitar interferências no tráfego internacional (pessoas, bens e mercadorias) ou a adoção de medidas médicas que sejam mais invasivas, sofreram poucas alterações. Isso pode ser um paradoxo, tendo em vista que em todas as ESPII são adotadas medidas mais restritivas do que as recomendadas pela OMS, conforme estabelecido no RSI, não se observando suspensão de tais medidas, mesmo após manifestação expressa da Organização. Este tema também merece aprofundamento, na medida em que diminui a força de implementação do RSI e, em algumas situações, pode minar a confiança na OMS.
Emendas ao RSI e as perspectivas para negociações futuras
Talvez um dos maiores significados da aprovação das emendas ao RSI pela 77a AMS, esteja além do texto aprovado, em que pese alguns avanços aqui apontados, dentre outros que não foram abordados.
O primeiro importante significado – em um mundo dominado por sinais e mensagens – diz respeito a que a aprovação das Emendas, após um longo e exaustivo processo de negociação, representa uma reafirmação de que é possível encontrar soluções para os grandes desafios à saúde pública mundial no âmbito multilateral e sob a coordenação dos Organismos Internacionais, como a OMS. Este aspecto se tornou evidente, na medida em que não foram poucas as ameaças e agressões (por veiculação de informações falsas e maliciosas) promovidas por vários agentes, em especial pelos movimentos da extrema direita.
Não iremos aprofundar este debate, neste momento, mas a aprovação das Emendas representou uma vitória, não somente da OMS, mas de todos os Estados Membros, organizações da sociedade civil e outros interessados, que contribuíram, com posições diversas, para este tema.
O segundo aspecto importante tem relação com a negociação do instrumento internacional para pandemias. Em uma leitura inicial, pode-se interpretar que a não conclusão das negociações sobre o Tratado refletiu a incapacidade em avançar na distribuição mais equânime de tecnologias de saúde para enfrentamento de pandemias, com consequente risco de não alcançarmos um acordo que seja mais satisfatório, especialmente para os países e populações mais vulneráveis.
Nesse aspecto, proponho outra leitura, com base na aprovação das emendas ao RSI. A inserção da equidade e solidariedade dentre os princípios e a explicitação em vários artigos de que esses princípios são fundamentais para alcançar um maior nível de proteção global frente às emergências de saúde pública - das quais as pandemias tem uma grande relevância - com destaque para a proteção dos países menos desenvolvidos e populações mais vulneráveis, joga uma pressão (positiva) para que o novo instrumento juridicamente vinculante, com várias interfaces com RSI, esteja em total coerência com este Regulamento.
Por fim, considerando que alguns temas relevantes para compreendermos e enfrentarmos os riscos de ocorrência de novas emergências de saúde pública - que surgirão proximamente - não foram tratados no âmbito do RSI (como não estão sendo no âmbito do Tratado), como a emergência climática, é importante que se estabeleçam os vínculos com outros acordos internacionais e discussões em outros foruns multilaterais, que tratam desses temas.
Referências
Aavitsland et al. Functioning of the International Health Regulations during the COVID-19 pandemic. Lancet. 2021 398(10308):1283-1287. Disponível em: Functioning of the International Health Regulations during the COVID-19 pandemic - PubMed (nih.gov)
Carmo EH. Emendas ao Regulamento Sanitário Internacional e proteção sanitária global. Quo vadis? In: Fundação Oswaldo Cruz Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS). Cadernos CRIS/FIOCRUZ 18/2023. Disponível em: cadernos_cris-fiocruz_-_informe_18-23_sobre_saude_global_e_diplomacia_da_saude_vfinal.pdf
Independent Panel for Pandemic Preparedness and Response. COVID-19: Make it the Last Pandemic. 2021. Disponível em: COVID-19: Make it the Last Pandemic (theindependentpanel.org)
Kamradt-Scott A. What Went Wrong? The World Health Organization from Swine Flu to Ebola. A. Kruck et al. (eds.), Political Mistakes and Policy Failures in International Relations, PMC, 2018:193–215. Disponível em: What Went Wrong? The World Health Organization from Swine Flu to Ebola - PMC (nih.gov)
Souza et al. The global failure of facing the pandemic, Global Health Action, 2022. 15:1, 2124645. Disponível em: Full article: The global failure of facing the pandemic (tandfonline.com)
World Health Organization. Aplicación del Reglamento Sanitario Internacional (2005). Informe del Comité de Examen acerca del funcionamiento del Reglamento Sanitario Internacional (2005) en relación con la pandemia por virus (H1N1). 2009. Doc WHA 64/10. 2011. Disponível em: http://apps.who.int/gb/ebwha/pdf_files/WHA64/A64_10-sp.pdf.
World Health Organization. Report of the Review Committee on the Functioning of the International Health Regulations (2005) during the COVID-19 Response. 2021. Disponível em: Report of the Review Committee on the Functioning of the International Health Regulations (2005) during the COVID-19 response (who.int)
World Health Organization. Report of the Review Committee regarding amendments to the International Health Regulations (2005). 2023. Disponivel em: WHA75/9.https://www.who.int/teams/ihr/ihr-review-committees/review-committee-reg...(2005)
* Professor da pós-graduação da Fiocruz-Brasília. Artigo publicado nos Cadernos Cris, do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz), 7/5/2024.