Coronavírus e a necessidade de Beethoven
Embaixador Santiago Alcázar*
Toda crise reclama uma decisão. Um corte, portanto, pois esse é o significado etimológico do substantivo. Corte com o estado de coisas que levaram à crise, diria o bom senso, esperando, sem dúvida, que um outro estado de coisas, melhor, nos devolva a paz. Mas um corte é apenas isso: um corte, uma incisão desprovida de garantia. Não há razão objetiva para confiar que o passo seguinte à decisão será para o bem. Poderá também ser para o mal.
A coisa torna-se mais complicada se, ao invés de uma decisão, impessoal, opta-se por um decidir-se, pessoal, uma vez que o corte não será com o estado de coisas, masconsigo mesmo. A diferença é importante. Não se trata de uma decisão abstrata, nem do estado de coisas passadas. No decidir-se há o envolvimento de alguém de carne e osso com a crise, com o momento decisivo. É com o aqui e agora que exige resposta e portanto responsabilidade, que em sua raiz é cumprir uma promessa empenhada.
Kant escreveu a Paz Perpétua na crença de que a Razão se sobrepõe ao poder, certamente impactado pelos horrores na vizinha França, mas ainda confiante na força argumentativa de suas três críticas. E então veio o século XIX. Não pareciam auspiciosos aqueles quase trinta anos iniciais. Beethoven teve de intimar a Ode à Alegria para devolver a confiança de que um mundo melhor era possível.E veio o século XX e o recordatóriorítmicodo grande compositor nos momentos de tristeza, alegria e desespero, que não foram poucos.
A toda ação corresponde uma reação, já se sabe. À estupidez ímpar da Grande Guerra seguiram os 14 pontos de Woodrow Wilson, de que são exemplos o fim de acordos secretos; a redução de armamentos; e o estabelecimento de igualdade nas transações de comércio. Ninguém, em sã consciência disputaria a validade daquelas afirmações. A Razão se sobrepõe ao poder, esperaríamos, e provavelmente morreríamos de tanto esperar, como de fato muitos morreram, não necessariamente de esperar, mas de bombas, tiros, facadas e de tudo mais que vem de uma guerra, pois havia chegado a Segunda Guerra Mundial e a necessidade, mais uma vez, de Beethoven.
Dizem que o homem é o único animal que repete um erro. Talvez. Mas são tantas as repetições que às vezes torna-se desafiador atribuir-lhe o adjetivo puído, mas pomposo e recheado de otimismo: racional.
Eppur si muove. Em São Francisco, nos estertores finais do que terá sido a guerra mais assassina, nascia o projeto mais ambicioso das relações entre Estados. Quatro ideias-força moviam aquele projeto: a paz, a independência, o desenvolvimento e osdireitos humanos. Cada uma vinha carregada de história e de razões. Os direitos humanos tinham raízes na Paz Perpétua, bem como nos Direitos do Homem e do Cidadão. Suas razões eram auto-referidasao próprio homem, esfacelado em sua tragédia.
Curiosamente, talvez espelhando a gravidade da situação, adotou-se a Constituição da OMS em abril de 1948, enquanto a Declaração Universal de Direitos Humanosé de dezembro daquele ano. Não é lícito imaginar que possa haver nas datas algum tipo de ordem de precedência. Trata-se de apenas uma curiosidade. O foco da atenção deve dirigir-se ao inovador conceito de saúde adotado naquele documento. Com efeito, a saúde não é mais apenas a ausência de doença, mas passa a ser um estado de completo bem-estar físico, mental e social. Mais, ainda: desfrutar do mais alto nívelde saúde é um direito fundamentalde todo indivíduo, independentemente de sua raça, religião, ideologia política, condição econômica ou social. E como para recordar o desastre que resulta de ignorar que somos todos um: a saúde de todos os povos é fundamental para alcançar a paz e a segurança e depende da cooperação em seu mais elevado grau entre indivíduos e Estados.
Hoje, 70 anos depois, com o alastramento inflexível da pandemia do coronavírus,a saúde, que havia perdido o élan com que foralançada no disputado ringue das preferências políticas e econômicas, tanto dos planos internos, quanto externos, chegando mesmo a ser diminuídae preterida em favorde razões de mercado, volta a prender as atenções. Todas.
Não se fala de outra coisa. Não se noticia outra coisa. O próprio governo parece voltado em bloco para garantir a primazia da saúde. A política econômica, antes abstrata e descolada, procura redirecionar todos os seus parâmetros às circunstâncias do momento, mal se importando com os múltiplos tropeços que seriam cômicos se não fossem trágicos. Tudo é pela saúde, com a saúde e para a saúde.
Até que saíamos desta pandemia. E então? Seja como for ,é certo que nunca mais seremos os mesmos. Que a decisão que reclama esta crise seja para o enraizamento da solidariedade e da generosidade em nossos corações. Que o decidir-se seja o corte definitivo com o egoísmo, que talvez nos tenha levado até aqui.
* Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz)
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