África e China: laços de mais de meio século que podem ajudar a reescrever a história da cooperação sanitária
A história das relações entre os povos chineses e africanos passou por uma transformação vigorosa com o estabelecimento da República Popular da China (RPC) em 1949. Após retomar o controle de seus portos e de seu Estado, os chineses do continente procuraram sempre enquadrar as suas relações com governos de novos Estados africanos e com movimentos de luta anticoloniais como um contrapeso às hegemonias percepcionadas dos países do Ocidente.
Assim, o governo chinês apresentou-se aos jovens Estados africanos como um parceiro que igualmente rejeitou os mandatos imperiais das potências ocidentais e compreendeu a mobilização dos movimentos de camponeses para a luta de libertação nacional. As relações sino-africanas nas décadas de 1950 e 1960 tiveram como pano de fundo a promoção do conhecimento mútuo e apresentação do modelo e exemplo chineses como os mais apropriados para o e anticolonialismo e o desenvolvimento. Por isso, deu apoio financeiro, logístico e de capacitação a movimentos de libertação nacional do continente.[1][2]
Mas esse envolvimento chinês em África foi para além do financiamento e capacitação de guerrilheiros dos movimentos anticoloniais. Estendeu-se também ao desenvolvimento de infraestruturas em quase todo o continente africano. E um dos elementos-chave dessa estratégia foi a cooperação em saúde.
O fim da guerra da Argélia contra a França (1954-1962) foi um marco importante da aproximação da China com o continente a seguir a uma descolonização difícil. Assim, em 1963, o primeiro-ministro chinês Zhou Enlai enviou as primeiras brigadas médicas chinesas para a Argélia. Isso inaugurou os esforços chineses para apoiar os sistemas de saúde africanos que nasciam dos escombros da presença colonial, fornecendo pessoal médico, equipamento e suprimentos. O pessoal médico chinês foi geralmente destacado para o país receptor durante um período de dois anos, servindo frequentemente em zonas rurais, em comunidades mal servidas. Para além do envio de médicos generalistas, essas equipes incluíam frequentemente uma vasta gama de especialistas. Em alguns casos, a chegada de equipes médicas coincidia com obras de infraestrutura ou com o envolvimento diplomático de base económica em África. Por exemplo, as equipes médicas chegaram no início da década de 1970 à Tanzânia juntamente com operários que trabalhavam na construção do caminho-de-ferro entre Tanzânia e Zâmbia (TanZam).
Enquanto o governo chinês negociava os acordos para enviar equipes médicas a um determinado Estado africano, processava-se internamente a descentralização de cooperação para a implementação dos acordos às províncias chinesas selecionadas. Assim, determinadas províncias ficavam com as quotas de um ou mais países africanos. Essa estratégia foi especialmente válida para o caso da malária. Mesmo províncias muito pobres na China mantinham colaboração com localidades na África. Ano passado, a China comemorou a erradicação da malária após três anos sem nenhum caso notificado.
Fonte: “China’s distinctive engagement in global health” (Lancet, Vol.384 August 30,2014)
Uma vez que as províncias eram responsáveis pela aplicação dos acordos de cooperação, podiam assim ser estabelecidos laços de longo prazo não somente para facilitar o recrutamento de pessoal, mas também para atenuar os desafios logísticos. Nos termos de alguns acordos de cooperação em saúde, o Estado receptor arcava com algumas despesas para a equipe médica, como as passagens aéreas, diárias e alguns dos produtos farmacêuticos e do equipamento médico trazidos pela equipe. Em certas ocasiões, o governo chinês cobria esses custos com empréstimos ou subvenções. Mas na maior parte dos casos, esses custos provinham diretamente do orçamento chinês da saúde.
A maioria dos autores tem comentado de forma bastante positiva a cooperação em saúde da China nas décadas de 1960 e 1970. Por exemplo, Alan Hutchison visitou uma série de unidades sanitárias patrocinadas pelo governo chinês em todo o continente no início dos anos 70. Descobriu que as equipes médicas rurais chinesas representavam uma das formas mais bem-sucedidas de ajuda em África. Os médicos descalços, cruciais para a assistência básica na China rural, adaptavam-se bem às condições locais, demonstrando capacidade de prover assistência de qualidade em ambientes com poucos recursos. A parceria foi fundamental para que a China retomasse seu status legal nas Nações Unidas: “Foram nossos irmãos africanos que nos carregaram para dentro da ONU”, disse Mao Zedong[3].
Quando apreciamos a relação crescente entre a República Popular da China e África, a mudança e o incremento na diplomacia da saúde são porventura das ações mais marcantes do relacionamento entre o gigante asiático e o continente africano. De fato, a cooperação com a África é crucial na conceptualização dos Oito Princípios de ajuda internacional para todos os países que, como ela, são considerados em desenvolvimento[4]. Esses princípios podem ser resumidos em ideias como “compartilhar dificuldades”. Como até hoje a China se considera uma economia em desenvolvimento, sua política de assistência é voltada para os Países Menos Desenvolvidos. Entre 2010 e 2012, a China ofereceu assistência a 121 países, 30 na Ásia, 51 na África, nove na Oceania, 19 na América Latina e Caribe e 12 na Europa e organizações como a União Africana[5].
Alguns estudiosos admitem que prover recursos de saúde não só permitiu à China obter condições comerciais favoráveis e acesso aos recursos necessários, como também apoiou as tentativas do governo chinês para se retratar como um bom ator internacional. Talvez seja essa combinação de soft e hard powers – i.e., benefícios econômicos e ideológicos – que caracterizou significativamente as estratégias de diplomacia da saúde da China relativamente ao continente africano há mais de meio século.
A criação do Centro de Controle de Doenças (CDC) na União Africana em 2016/2017 é um exemplo da cooperação sanitária internacional. Feita também com apoio dos EUA, o centro africano fica na cidade-sede da organização, na capital da Etiópia, Adis Abeba. Além de formação em recursos humanos, a China contribuiu, por exemplo, com US$ 2 milhões do orçamento de US$ 7,5 milhões do CDC e ofereceu apoio para a construção da sede e dos cinco centros colaboradores do CDC[6]. Esse apoio se soma a outras formas tradicionais, como a de missões voltadas para enfermidades específicas. O CDC tem agregado dados da Covid-19 e tem desenvolvido institutos próprios, como o de genômica de patógenos e formação de recursos humanos[7].
O ex-presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, testemunhou, por ocasião do dia 25 de junho, data que assinala os 45 anos do estabelecimento das relações diplomáticas entre os dois países, que a China é um país amigo de longa data, que acompanhou e sempre apoiou o povo moçambicano contra o colonialismo e na luta pela libertação. Disse que ao longo dos 45 anos, Moçambique e a China têm consolidado a confiança política mútua e aprofundado as cooperações em todas as áreas. Para Joaquim Chissano, o mais admirável é que nos momentos de calamidades naturais a China sempre veio prontamente dar sua ajuda humanitária. “O país enviou equipas médicas, que continuam até hoje, e são milhões de moçambicanos que passaram pela mão desses médicos,” afirmou. Além disso, houve grande assistência alimentar e de meio de transporte etc. Apontou que esse apoio consequente mostra a sensibilidade do governo e povo chineses para com o povo moçambicano. Agora, diante da pandemia do novo coronavírus, “a China também está presente”, disse Joaquim Chissano, detalhando o envio dos equipamentos e materiais para proteção e teste, bem como a troca de experiências[8].
A cooperação estratégica depende, é claro, das relações diplomáticas e do reconhecimento das soberanias nacionais. Em 1994, a Guiné-Bissau, por exemplo, optou por cortar relações diplomáticas com Pequim e as estabeleceu com o governo de Taiwan. Assim, os grandes programas de saúde e de agricultura que vinham sendo implementados pela cooperação com a República Popular da China foram transferidos para a cooperação com Taiwan. Rapidamente, a histórica cooperação na área de saúde sofreu revezes importantes. Taiwan não conseguia recrutar e colocar com facilidade as equipes médicas na Guiné-Bissau como até então fazia a China continental, porque um dos maiores estrangulamentos era a elevada remuneração – o salário médio de um médico liberal de Taiwan rondava os 10 mil dólares americanos e muito poucos estavam dispostos a viajar para a África nesse tipo de cooperação. Em parte, essas dificuldades foram superadas pelo recrutamento dos filipinos, mas a assistência deixou definitivamente de ser igual à que as equipes médicas da RPC prestavam no hospital de Canchungo (interior do país) construído e equipado pela China continental logo depois da independência da Guiné-Bissau, em 1974. A partir de 1999, a Guiné-Bissau decidiu cortar com Taiwan e retomar as suas relações com a RPC, continuando a beneficiar-se e muito da cooperação chinesa, com as missões regulares de equipes médicas no hospital regional de Canchungo.
Nesse período, importantes marcos para as relações entre China e países africanos foram desenvolvidos. A União Africana, um projeto independentista dos anos 1950, foi retomada no fim dos anos 1990. Plenamente estabelecida em 2002, ela passou a contar com fóruns bilaterais com a China. Na mesma época, foi criado o Fórum de Cooperação China África (Focac). Em 2015, a cooperação em saúde do fórum reuniu-se na África do Sul e, entre outros itens, e reconheceu a importância de promover serviço de saúde na África, melhorando a cooperação em saúde pública e fortalecendo a cobertura universal de saúde na era “pós-ebola”[9]. Em 2018 o plano de ação previa o aprimoramento de 50 programas de assistência, incluídos o CDC e os Hospitais da Amizade Sino-Africana[10]. Em 2020, uma cúpula Extraordinária da FOAC e UA com China foi coordenada pela África do Sul e pela China[11].
A natureza da relação dos estados, entretanto, mudou bastante ao longo do tempo. A China dos pés descalços é cada vez mais uma memória. Embora uma grande quantidade dos pobres do mundo ainda estejam lá, o país tem sinalizado que vê uma mudança em seu próprio papel no cenário mundial. Yang Jiechi, diretor do escritório no Conselho de Estado a quem o chanceler Wang Yi se reporta, escreveu em 2017 que o país deve fazer articulações que rejeitem a lógica de Guerra Fria de forma a “escrever novos capítulos na diplomacia de países grandes”, utilizando-se de arranjos multilaterais como plataforma e do desenvolvimento de outros países como meta comum.[12] A Cinturão e Rota – ou Nova Rota da Seda – é o elemento central dessa estratégia. Ela pode se sobrepor ou correr em paralelo a mecanismos preexistentes. Lideranças e analistas de alguns países têm ressaltado que a expansão da diplomacia chinesa, especialmente na figura da Cinturão e Rota, pode minar interesses estratégicos desses países, com os EUA sendo “incapaz de competir simetricamente” com a iniciativa[13].
Com a pandemia ainda ocorrendo na África, a China tem sinalizado apoio na reestruturação de dívidas de países africanos, e afirmado que trataria do tema no âmbito do G20. Segundo a Campanha do Jubileu da Dívida[14], a China é credora de 20% da dívida dos países africanos e recebe 17% de todo o valor pago em juros enquanto o setor privado possui menos de 40% dos créditos e recebe 55% das taxas de juros. Assim, embora a participação da China no mercado de crédito global tenha aumentado, são organismos multilaterais como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e bancos privados que apresentam o maior impacto, no presente e no acumulado, nas capacidades nacionais de investimento.
Do ponto de vista sanitário, além dos mecanismos históricos de assistência direta, podemos esperar uma maior capacidade de equipagem hospitalar e laboratorial instalada, além da crescente presença de estudantes africanos nas universidades chinesas.
A cooperação entre especialistas médicos de China e África remonta, então, ao próprio nascimento dos atuais estados nacionais e da evolução de suas soberanias territoriais, mercados de consumo, expansão e aprimoramento dos sistemas de produção e dos resultados de longo prazo das articulações entre os governos nacionais. Dessa forma, ao longo do tempo e de forma agregada China e África têm estreitado laços que, num futuro próximo, ajudem a reescrever a história da cooperação sanitária moderna.
* Augusto Paulo José da Silva é pesquisador e assessor do Centro de Relações Internacionais da Fiocruz (CRIS/Fiocruz) e mestre na Universidade Estadual de Moldova;
André Lobato é pesquisador do Cris/Fiocruz e bolsista do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/VPPIS/Fiocruz). Doutorando no Programa de Políticas Públicas Estratégias e Desenvolvimento do Instituto de Economia da UFRJ.
[1] 1949–1970. Berkeley: University of California Press, 1971 https://books.google.com.br/books?id=tUa3rZQL0nkC&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false.
[2] Chinese Foreign Policy: Peking’s Support for Wars of National Liberation. Berkeley: University of California Press, 1970 https://books.google.com.br/books?id=aufIKy9Ufl8C&printsec=frontcover&hl=pt-BR&source=gbs_ge_summary_r&cad=0#v=onepage&q&f=false).
[3] http://www.chinadaily.com.cn/world/2014livisitafrica/2014-05/06/content_17487946.htm
[4] http://history.mofcom.gov.cn/?newchina=中国对外援助八项原则
[5] http://english.www.gov.cn/archive/white_paper/2014/08/23/content_281474982986592.htm
[6] “China’s distinctive engagement in global health” (Lancet, Vol.384 August 30,2014) https://doi.org/10.1016/S0140-6736(15)01232-5
[7] https://africacdc.org/africa-cdc-institutes/africa-cdc-pathogen-genomics-intelligence-institute/
[9] http://en.nhc.gov.cn/2015-10/06/c_46261.htm
[10] http://focacsummit.mfa.gov.cn/eng/hyqk_1/t1594297.htm
[11] http://www.focac.org/fra/zftjkytbfh/
[12] https://www.fmprc.gov.cn/mfa_eng/wjbxw/t1478497.shtml
[13] https://www.nbr.org/publication/chinas-belt-and-road-one-initiative-three-strategies/
[14] https://jubileedebt.org.uk/wp/wp-content/uploads/2018/09/Briefing_09.18.pdf