Acabou o tempo das soluções ‘ganho eu, perde você’
Embaixador Santiago Alcázar*
Os efeitos da pandemia podem ser observados em todos os quadrantes de vida. As recomendações para evitar aglomerações, restringir movimentos e distanciamento social causam sério impacto sobre a economia e o comércio local. As cadeias de produção, assim como as de distribuição, normalmente fluidas, sofrem severos solavancos, que comprometem a oferta, bem como a demanda.
As empresas ficam sem caixa e podem deixar de honrar seus compromissos. O ciclo se interrompe. Surge o fantasma do desemprego. O emprego informal não é solução, pois a demanda, já fraca, encolherá mais. O cenário é desolador: uma massa de desempregados, descolados de tudo, como num quadro medieval que a memória busca.
A possibilidade de home-office limita-se a alguns setores da economia. Ainda assim, os números podem ser consideráveis. O trabalho desloca-se para a casa. Mas se é assim, e será assim por um bom tempo, para quê o escritório? Para que automóvel para ir aoescritório? Não seria lógico limitar o uso do automóvel para fim de semana, se tanto? Transporte coletivo. Valorização do espírito de coletividade. Depreciação do individualismo exacerbado. Deletério, como um vírus.
Os espaços vazios de escritórios poderiam servir para reduzir o déficit habitacional. A desfavelização poderia espraiar-se, de forma humana e ordenada naqueles espaços. A Natureza aborrece o vazio, dizia o sábio Aristóteles, que muito sabia. Por que escritórios vazios não aborreceriam a lógica de mercado, que à diferença de Aristóteles, que muito sabia, nada sabe da condição humana?
Se ainda há dúvida de que o mercado não detém a vara mágica para livrar-nos desta crise que nos consome é porque não se está entendendo o filme que está passando
Há consenso entre economistas de que esta crise é diferente das outras, a de 2007/2008 e a da Grande Depressão de 1929. Dizem que esta é uma crise de saúde, parecendo haver descoberto o óbvio. A economia estava bem e os bancos, solventes. Claro! A saúde e todas as políticas sociais estavam capengas. É o que se sabia. É o que se vê. É óbvio.
Se ainda há dúvida de que o mercado não detém a vara mágica para livrar-nos desta crise que nos consome é porque não se está entendendo o filme que está passando. Acorda Alice! O país das maravilhas não é aqui. Os desempregados vão ter de receber ajuda financeira. Os que estão, ou estavam, na informalidade, vão precisar de ajuda financeira. As empresas vão precisar de ajuda financeira. Os governos vão precisar costurar às pressas acordos condizentes com a urgência e a gravidade da situação. Terão de ser consensuais, não pelo lado do mínimo possível, mas pelo lado do máximo, ainda que pareça impossível. E, por essa razão, terão de ser solidários e generosos. O momento é agora. Para muitos não haverá amanhã. Acabou-se o tempo das soluções ganho eu, perde você.
A saúde deverá ser valorizada e financiada para poder cumprir o seu objetivo. Os determinantes sociais da saúde, que são todos aqueles fatores presentes na chegada, na travessia e na morte de uma pessoa, deverão ser o ponto de partida na elaboração de todas as políticas. Mas não é somente isso. A saúde é, ademais, um complexo industrial orientado para produção de tudo aquilo que se torna essencial para a prestação de cuidados médicos: máscaras, EPPs, respiradores, para a circunstância atual; medicamentos, vacinas, testes de diagnóstico laboratorial, equipamentos de produção de imagens, próteses, órteses etc., para o dia a dia normal.
As imagens de corpos estendidos no Equador parecem tiradas do Triunfo da Morte de Bruegel
Não é razoável depender de um ou dois fornecedores para atender a demanda de um sistema de saúde pública do tamanho do Sistema Único de Saúde. É grande imprudência. E grande irresponsabilidade. Assim também como é grande irresponsabilidade cortar gastos em saúde. Desinvestimento em saúde em nome de quê? Fiscalismo? Arrumação de contas? Ditames de mercado? Acorda, Alice! Esse tempo acabou! As imagens de corpos estendidos no Equador parecem tiradas do Triunfo da Morte de Bruegel. Somos todos Equador, no medo, no pânico, no horror da possibilidade da realização de uma morte infame, abandonada.
A pandemia pode despertar o que há de pior no gênero humano. O egoísmo de abastecer-se além da necessidade. Farinha pouca, meu pirão primeiro, diz o ditado popular. O egoísmo de tentar aproveitar-se da situação para lucrar, como já se viu na pandemia da Aids e exigiu a difícil e traumática construção de um waiver, segundo o qual exceção poderia ser considerada em caso de emergência de saúde pública. E somente em caso de emergência, pois aparentemente o lucro detém a primazia em situações normais, que nunca o são em verdade quando se está na ponta.
A pandemia pode também trazer o que há de melhor em nós. A solidariedade e a generosidade plasmadas em profunda misericórdia pelo gênero humano castigado e preterido, como se fosse possível descartá-lo. Não faltam exemplos comovedores. Não faltam anônimos que se põem a serviço dos outros, numa dança de fragilidades.
Ninguém sabe como sairemos desta, mas uma coisa é certa: o caminho que tomaremos será o de todos. Ninguém poderá ser deixado de lado. A celebração da vida o exige.
* Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fiocruz (Cris/Fiocruz)
O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.