Produção nacional, geração de emprego e garantia do SUS universal: a saúde como motor do desenvolvimento

Produção nacional, geração de emprego e garantia do SUS universal: a saúde como motor do desenvolvimento

Já leu
Três homens sentados em suas cadeiras lado a lado; o do meio está falando ao microfone, observado pelos demais

Promover a formação de redes de colaboração entre academia, centros de pesquisa, setor produtivo e governo, com vistas a Impulsionar a produção científica e tecnológica local, bem como o desenvolvimento de projetos na área de saúde foi o objetivo do III Encontro Nacional de Empreendedorismo e Inovação em Saúde (Eneis), realizado de 25 a 28/4/2024 na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, em Salvador (BA). O evento contou com a participação, em 27/4, do secretário executivo do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), Marco Nascimento, que abordou o tema Complexo Econômico-Industrial da Saúde – Evolução e Conceitos, no painel Inovação em Saúde: da pesquisa ao mercado. Marco compartilhou a mesa com o assessor especial da Diretoria de Pesquisa e Desenvolvimento do laboratório público Bahiafarma, Alzir Mahl, com mediação do gestor de novos negócios do Instituto de Tecnologias da Saúde do Senai Cimatec, Valdir Gomes Barbosa Júnior.

O Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), as políticas públicas relacionadas a esse conceito e os caminhos para a construção de uma sólida base produtiva para o país, rumo à conquista de sua soberania, estiveram em pauta no painel.

“Vamos dialogar, buscar aproximar as políticas públicas de inovação e saúde, principalmente relacionadas ao CEIS, da sociedade, da academia, dos alunos, dos empreendedores, professores, da nossa realidade assistencial e social”, convidou Valdir. Conforme observou, a translação da academia para o mercado “vai um pouco além, na área da Saúde”, tendo em vista a dificuldade ainda encontrada de se “traduzir o potencial da pesquisa acadêmica” em produtos de saúde, bem como garantir o acesso de toda a população a esses produtos.

Ao lado do cenário de desafios, voltados à produção de insumos estratégicos para o Sistema Único de Saúde, observando-se déficit na balança comercial de R$ 19 bilhões, “agravado pelas mudanças socioeconômicas e pelo advento de novos medicamentos e procedimentos de alto custo”, Valdir apontou também oportunidades. “Hoje, no Brasil, a Saúde representa 35% do esforço nacional de pesquisa e desenvolvimento e 9% do nosso PIB. E é uma área chave para a quarta revolução industrial”, afirmou.

Em sua exposição, Marco Nascimento alertou para a situação de dependência tecnológica do Brasil e as oportunidades que se abrem com o CEIS. “Na maior parte das vezes, o sistema internacional não vem em nosso auxílio. Temos que nos organizar de forma que a ser possível criar nossas soluções, assumindo nossa responsabilidade de tirar o Brasil dessa situação histórica de dependência”, defendeu, destacando a Saúde como estruturante de uma nova fase de desenvolvimento. “Em uma geopolítica da inovação, a inserção internacional do Brasil impacta nossa capacidade de salvar a nós mesmos”, sentenciou.

Marco apresentou gráfico apontando a disparidade entre a quantidade de importações realizadas pelo país, alcançando 20 bilhões de dólares em 2021 (para fazer frente à pandemia de Covid-19) e o baixo índice de exportações, gerando déficit cuja tendência é aumentar, como registrou. Traçando uma linha do tempo a partir da estruturação do SUS com a Lei Orgânica da Saúde (8.080 e 8.142/1990), ele lembrou estudo realizado no início dos anos 2000, na Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), com a participação do atual secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde (Sectics/MS), Carlos Gadelha, mostrando que, no ritmo que o país caminhava, a atenção à saúde incorreria em uma dívida insustentável.

“Para oferecer saúde, é preciso medicamentos e dispositivos. Não há unidade básica de saúde que prescinda desses elementos. Se isso é majoritariamente importado e se ficamos sujeitos à variação do câmbio e à sofisticação das tecnologias – o que leva a aumentar os preços –, no longo prazo, não se consegue pagar por isso”, explicou, salientando o compromisso constitucional de o país garantir saúde a toda a população. “Ao ampliar o acesso, o déficit dispara”, alertou, destacando a importância de o país estar ancorado em uma base produtiva para fazer frente a esse objetivo.

A pandemia, como observou Marco, tornou mais claras essas análiseso. “A gente bate, em 2021, nos 20 bilhões de dólares, valor equivalente, à época, a todo o orçamento do Ministério da Saúde”, lembrou ponderando: “Podemos tomar isso como um dado de realidade e assumir que esse gasto tinha que acontecer. Então, por que não gastar esse dinheiro gerando emprego e renda aqui dentro, construindo nossas próprias soluções?”.

Citando o início dos estudos referentes ao Complexo da Saúde, empreendidos a partir de 2003 por Carlos Gadelha, sistematizando “as necessidades cognitivas para estruturar um sistema de saúde”, Marco apontou a definição, naquele momento, de dois subsistemas conformadores do SUS. Um subsistema de base química e biotecnológica (medicamentos, fármacos, vacinas, hemoderivados, reagentes para diagnóstico) e um subsistema de base mecânica eletrônica e de materiais (equipamentos, próteses e órteses), para a oferta dos serviços de saúde (hospitais, ambulatórios e serviços de diagnóstico), tendo-se o Estado em seu papel de promoção e regulação. “Isso ajudou a criar uma série de políticas, como a estruturação da Secretaria de Ciência e Tecnologia e a criação da Conitec  [Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS]. Foi uma primeira geração de políticas a partir do conceito do CEIS”.

Ele chamou atenção para a criação, na época, da Lista de Produtos Estratégicos, “talvez a primeira ocorrência de uma demanda social como orientadora de um esforço industrial”, como definiu. “Ouvir gestores da área social, representantes da população que receberá os serviços, de modo a definir os orientadores da produção foi uma novidade naquele período”.

Se você vai convidar uma multinacional a transferir sua tecnologia para cá, ela não fará isso sem uma compensação. E o que oferecemos? Uma parcela do mercado brasileiro, durante determinado período. Não há uma que não tenha interesse (Marco Nascimento)

A aquisição de produtos estratégicos, destacou o pesquisador, pode se dar por instrumentos como a encomenda tecnológica [como no caso da parceria entre a Fiocruz, a Universidade de Oxford e empresa inglesa Astrazeneca, para internalização da produção da vacina contra a Covid-19, em que o Estado decide correr um risco, estabelecendo parceria com uma empresa privada para aquisição de tecnologia ainda em fase de teste] e as parcerias para o desenvolvimento produtivo (PDPs). Nessa modalidade, explicou Marco, o fato de o país precisar gastar muito para oferecer determinado produto ou serviço, passa a ser não um problema, mas uma solução. “Se você vai convidar uma multinacional a transferir a tecnologia dela para cá, ela não fará isso sem uma compensação. E o que oferecemos a ela? Uma parcela do mercado brasileiro, durante determinado período. Não há uma que não tenha interesse. Porque o SUS é o maior sistema de saúde do mundo. Isso passa a ser um grande ativo de barganha no palco internacional de negociações”.

Na busca por ilustrar a geopolítica da inovação, Marco apresentou, ainda, um gráfico relativo a patentes em saúde, mostrando que 88% de todas elas estão concentradas em dez países – China, Japão, Coreia do Sul, Alemanha, Suíça, França, Reino Unido, Holanda e Israel. “A patente depositada hoje é a assimetria, a dificuldade do acesso à saúde, de amanhã”.

Ele apresentou também um mapa dos países que retiveram produtos de saúde durante a pandemia de Covid-19. “Claro que os países vão privilegiar o acesso às suas populações. O que não podemos é achar que o liberalismo comercial, o livre comércio vai nos salvar quando precisarmos. Não vai. Numa próxima pandemia – e outra pandemia virá –, precisaremos ter a capacidade de criar nossas defesas localmente. O que está na ordem do dia é isso: produção local, capacidade de articulação em bloco, para defesa de futuras emergências sanitárias”.

A gente exporta café e compra cápsulas; a gente exporta petróleo e compra gasolina. E iremos exportar dados de Saúde e comprar pacotes tecnológicos para atender nossa população! Se isso chegar a acontecer, teremos fracassado (Marco Nascimento)

Espaço ocupado pela Saúde na indústria 4.0 é “gigante”, afirmou o pesquisador. “A grande fronteira de expansão do capital, hoje, está sendo reconhecida na saúde”, disse, citando os percentuais de participação da saúde digital em patentes na China (12%), EUA (24%), Rússia (25%), Índia (30%), Brasil (21%) e África do Sul (22%). “Um reflexo disso é que a grande maioria das corporações – Samsung, Oracle, Qualcom, LG, IBM, Apple, Intel, Microsoft –, nenhuma originalmente da área da saúde, estão migrando para essa área. Há um influxo de interesse do capital internacional, das grandes companhias tecnológicas, porque sabem que esse é o caminho da expansão possível do capital neste momento”.

Marco alertou para o risco de se reproduzir na área da Saúde “a dinâmica que massacra o Brasil historicamente”: o fato de sermos uma economia primário-exportadora. “A gente exporta café e compra cápsulas; a gente exporta petróleo e compra gasolina. E iremos exportar dados de Saúde e comprar pacotes tecnológicos para atender nossa população! Se isso chegar a acontecer, teremos fracassado”.

Conforme observou, os estudos que seguiram sendo realizados sobre o CEIS, levaram à inserção de mais um subsistema, de informação e conectividade, que permeia o restante do Complexo. “As ações que tivermos, no âmbito desse subsistema, de grandes bases de dados, podem ser reconhecidas no âmbito das políticas públicas também. Por que isso é importante? Porque, se não tivermos um marco teórico que admita novas soluções, não conseguiremos criar, no âmbito das gerações das políticas, respostas para a sociedade, por não conseguirmos compreender o que está acontecendo”.

Marco lembrou, ainda, que o relatório da Organização Mundial da Saúde, divulgado em maio de 2023, aponta o CEIS como alternativa para tomar a saúde como orientador de políticas públicas.”Vamos aproveitar esse momento”, convocou, acrescentando que o CEIS está incluído no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do Governo Federal, envolvendo valores da ordem de R$ 42 bilhões. “A grande função desta conversa é nos dar a percepção de que já fazemos parte de um grande movimento de placas tectônicas e de que somos aqui agentes formadores desse processo”, concluiu.

“É preciso aproveitar de maneira muito rápida a janela de oportunidades que nos abre o CEIS e de desenvolvimento que possa atender o SUS”, pontuou, após a exposição de Marco Nascimento, Alzir Mahl, do laboratório Bahiafarma, filiado à Associação dos Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil (Alfob). “Somos, como laboratório público, um ente que as ICTs [Instituições Científicas e de Inovação Tecnológica] não têm. Podemos colocar em prática as pesquisas realizadas no dia a dia da academia. Somos voltados ao atendimento ao Sistema Único de Saúde”, observou.

“Temos, hoje, tecnicamente, um mercado colocado. O que seria um déficit vira uma oportunidade fantástica”, reafirmou. “Precisamos nos mexer urgentemente. As janelinhas estão começando a fechar sem que a gente perceba”.

Assista ao painel Inovação em Saúde: da pesquisa ao mercado.

Acesse e baixe o livro ‘Saúde é desenvolvimento: o Complexo Econômico-Industrial da Saúde como opção estratégica nacional’, produzido pelo projeto integrado de pesquisa do CEE-Fiocruz Desenvolvimento, Saúde e Inovação.