A Cúpula do Brics de 2020 e a pandemia de Covid-19
O Brics como grupamento político não ficou ausente das respostas de arranjos políticos plurilaterais impostas pela pandemia pela Covid-19. A 12ª Cúpula, realizada virtualmente em 17 de novembro, manifestou-se a respeito.
Os países que compõem o Brics apresentam-se como um novo tipo de grupamento de países na ordem mundial. Individualmente, e eventualmente como grupo, são membros influentes de importantes fóruns internacionais, incluindo a ONU, a OMS, a OMC, o G-20, além de associações regionais, como a Comunidade de Estados Independentes (CEI), Organização para a Cooperação de Xangai (OCX), Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), União Africana (UA), entre outros.
Esses países constituem uma comunidade de interesses econômicos, político-diplomáticos e sanitários potencialmente convergentes na governança global. Ao longo de sua existência, o Brics conseguiu coordenar atividades de seus países em organizações internacionais, incluindo ONU, OMS e OMC, e construir uma agenda transnacional comum, evoluindo para uma parceria estratégica multifuncional. Disso decorrente, tem realizado diversas reuniões nas áreas de gerenciamento de desastres, relações exteriores, saúde, ciência, tecnologia e Inovação, entre outras. Entretanto, com poucas exceções, os laços cooperativos do Brics são, a maioria, bilaterais e regionais, não plurilaterais ou multilaterais.
A parceria estratégica do Brics sustenta-se em três pilares: política e segurança; economia e finanças; e cultura e intercâmbios interpessoais, em torno dos quais foram realizados mais de cem eventos em 2020, presencialmente e por videoconferência, que teriam promovido “maior progresso em nossa cooperação mutuamente benéfica e pragmática”.
Em relação ao enfrentamento dos problemas advindos da Covid-19, o grupo busca a consolidação de interesses pragmáticos, como o gerenciamento de riscos de surtos, a colaboração em pesquisa e a implementação de um Centro de P&D de vacinas.
Após reiterados adiamentos, porque a pandemia não arrefecia, a 12ª Cúpula anual finalmente aconteceu de forma virtual em 17 de novembro no contexto do 75º Aniversário da ONU e em meio à pandemia de Covid-19, sob a presidência da Rússia.
A 12ª Cúpula do Brics
O tema central da 12ª Cúpula (ver aqui) foi Parceria do Brics para a estabilidade global, segurança compartilhada e crescimento inovador. Os líderes discutiram o estado atual da cooperação entre os membros do grupo e suas perspectivas, questões-chave no contexto global, incluindo a reforma do sistema multilateral, medidas para mitigar o impacto da pandemia de Covid-19 em curso e cooperação em saúde e CT&I.
Coordenaram posições à luz da cúpula do G20, marcada para 21 e 22 de novembro; defenderam um sistema internacional multipolar mais justo, equitativo e representativo, baseado na igualdade de todos os Estados e no respeito mútuo pelos interesses e preocupações comuns; anotaram as participações da África do Sul (2019-2020); regozijaram-se com a eleição da Índia para o biênio 2021-2022 e declararam apoio à candidatura do Brasil para 2022-2023 no Conselho de Segurança da ONU.
Bela sequência, para quem já tem seus outros dois Estados-membros – China e Rússia – como membros permanentes. Ainda assim, reiteraram o Documento Final da Cúpula Mundial de 2005, reafirmando “a necessidade de uma reforma abrangente da ONU, incluindo seu Conselho de Segurança, com vistas a torná-lo mais representativo, eficaz e eficiente e aumentar a representação dos países em desenvolvimento, de modo que possa responder adequadamente aos desafios globais”.
Os líderes, ainda, reafirmaram o compromisso com o multilateralismo. Continuarão trabalhando para fortalecer e reformar a governança internacional com vistas a torná-la mais inclusiva e representativa com significativa e maior participação de países em desenvolvimento nas tomadas de decisão internacionais, mais sintonizadas às realidades contemporâneas. Identificaram que os atuais desafios internacionais devem ser tratados por meio de cooperação internacional fortalecida por um sistema multilateral revigorado e reformado, incluindo a ONU, a OMC, a OMS, o FMI e outras organizações internacionais. Reconheceram o papel do sistema das Nações Unidas, incluindo a OMS, na coordenação da resposta global abrangente à pandemia da Covid-19.
Os líderes do Brics coordenaram posições à luz da cúpula do G20, marcada para 21 e 22 de novembro; defenderam um sistema internacional multipolar mais justo, equitativo e representativo, baseado na igualdade de todos os Estados e no respeito mútuo pelos interesses e preocupações comuns; anotaram as participações da África do Sul (2019-2020); regozijaram-se com a eleição da Índia para o biênio 2021-2022 e declararam apoio à candidatura do Brasil para 2022-2023 no Conselho de Segurança da ONU
Atribuíram importância ao intercâmbio de informações sobre as medidas adotadas nacionalmente, bem como pacotes de estímulo de curto e médio prazo com o objetivo de mitigar as consequências da crise atual e a plena implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável.
Portanto, os louvores às Nações Unidas, nos seus 75 anos, e a reafirmação da adesão aos propósitos e princípios da organização coadunam-se com a litania tradicional, reiterativa e, muitas vezes, retórica de países e arranjos como o Brics nos seus textos declarativos. Nada de novo!
Ao abordar a pandemia, reconheceram o papel da ampla imunização contra a Covid-19 na prevenção, contenção e interrupção da transmissão de modo a erradicar a enfermidade. Declaram apoio às iniciativas da OMS, governos, organizações sem fins lucrativos, institutos de pesquisa e indústria farmacêutica para agilizar a P&D e a produção da vacina, assim como abordagens cooperativas nesse particular. Irão se empenhar para garantir que, quando disponível, seja disseminada de forma justa, equitativa e acessível. Nesse sentido, apoiam a iniciativa Acelerador de Acesso às Ferramentas contra a Covid-19 (ACT-A).
Mais uma vez, recordaram a decisão da Declaração de Johanesburgo (2018) de estabelecer o Centro de P&D de Vacinas do Brics (ver aqui) e incentivaram sua efetiva operacionalização.
Destacaram a necessidade de fortalecer a cooperação do Brics nas áreas de propriedade intelectual e enalteceram a colaboração entre seus escritórios de Propriedade Intelectual nacionais.
Saudaram o Programa-Quadro (PQ) de CT&I do Brics, que atraiu agências de financiamento dos países do grupo com mais de cem projetos apoiados em diferentes áreas temáticas, o que facilitou a rede de organizações de pesquisa desses países a trabalharem juntos. Reconheceram a importância da cooperação do Brics em CT&I no combate à disseminação e aos impactos da Covid-19, inclusive o lançamento de uma chamada conjunta de P&D no âmbito do PQ de CT&I do BRICS e intercâmbios de especialistas online.
O Novo Banco de Desenvolvimento forneceu recursos financeiros para reduzir as perdas humanas, sociais e econômicas causadas pela epidemia e para restaurar o crescimento econômico em seus países. O Programa de Assistência Emergencial pode fornecer até US$ 10 bilhões em empréstimos emergenciais aos países membros.
Comentários dos líderes dos países do Brics durante a Cúpula
Putin pediu um esforço conjunto do Brics no desenvolvimento de vacinas contra o coronavírus e propôs que fosse acelerada a criação de um Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de vacinas pelo grupo.
Neste momento, as empresas chinesas estão trabalhando com parceiros russos e brasileiros em ensaios clínicos de fase III de vacinas e estão preparados para cooperar também com a África do Sul, Índia e outras nações no desenvolvimento dos imunizantes contra a Covid-19.
O presidente Xi disse que a China está disposta a fornecer vacinas aos Brics, se necessário (ver aqui). Para apoiar o desenvolvimento do Centro de P&D de Vacinas do Brics, a China designou seu próprio centro nacional. Estão dispostos a trabalhar com outros países do BRICS para promover pesquisas e testes coletivos de vacinas, estabelecer fábricas, autorizar a produção e o reconhecimento mútuo dos padrões dos países do grupo. Propôs que seja convocado um simpósio do Brics sobre medicina tradicional para explorar seu papel na prevenção e tratamento da Covid-19, visando aumentar o arsenal global contra a doença.
A Declaração da Cúpula cita cabalmente que “trabalharemos para garantir que, quando disponível, (a vacina) seja disseminada de forma justa, equitativa e acessível. Nesse sentido, apoiamos a iniciativa Acelerador de Acesso às Ferramentas contra o Covid-19 (ACT-A)”. Contudo, para ser efetivo nessa proposição, o Brics deveria ter proposto um mecanismo concreto, forte e empoderado para acompanhar esse suposto desejo de equidade no acesso à vacina, o que não ocorreu
A China aderiu aos mecanismos da Covax-OMS, uma plataforma comum para aquisição de vacinas, em particular aqueles em desenvolvimento, para permitir que sua vacina seja um bem público global.
O PM indiano, Narendra Modi, abordou a questão da cooperação entre os países do Brics na produção de vacinas para Covid-19. Introduziu o conceito de Aatmanirbhar Bharat (Índia autossuficiente), apontando que o país pode fornecer contribuições sólidas para as cadeias de valor globais. Sob esta campanha, a Índia distribuiu medicamentos essenciais para mais de 150 países devido à capacidade de sua indústria farmacêutica.
O presidente do Brasil destacou que a cooperação no grupo precisa ser fortalecida e disse que os países do Brics podem desempenhar um papel fundamental no combate à Covid-19 e impulsionar o crescimento econômico.
A Declaração da Cúpula cita cabalmente que “trabalharemos para garantir que, quando disponível, (a vacina) seja disseminada de forma justa, equitativa e acessível. Nesse sentido, apoiamos a iniciativa Acelerador de Acesso às Ferramentas contra o Covid-19 (ACT-A)”. Contudo, para ser efetivo nessa proposição, o Brics deveria ter proposto um mecanismo concreto, forte e empoderado para acompanhar esse suposto desejo de equidade no acesso à vacina, o que não ocorreu
Importância da Cúpula para Índia e China e a implementação da Agenda 2030
A Cúpula do Brics teve significado importante para Índia e China, por oferecer aos líderes daqueles países mais uma oportunidade de trocar ideias sobre as principais prioridades em um contexto de tensão contínua ao longo de suas fronteiras; a anterior foi na cúpula da Organização de Cooperação de Xangai OCX.
Para o presidente chinês, o desenvolvimento é a chave para a maioria dos problemas. Todos os esforços, desde a eliminação do impacto da Covid-19 e o retorno a uma vida normal dependem do desenvolvimento centrado nas pessoas[1]. De acordo com as previsões do Banco Mundial, a renda per capita global pode cair 3,6% este ano, e cerca de 88 milhões a 115 milhões de pessoas podem ser empurradas para a pobreza extrema devido à pandemia. Portanto, além do desafio da Covid-19, é preciso apelar à comunidade internacional para que coloque a implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável no centro da cooperação internacional para o desenvolvimento[2].
Contudo, as disputas latentes (e às vezes cruentas) entre China e Índia, as constantes estocadas de segmentos de governo e de políticos brasileiros à China, a perda de legitimidade e liderança do Brasil na ALC, uma Rússia que busca reassumir um lugar proeminente no mundo, e uma África do Sul em crise de liderança no Continente Africano, além de outras rusgas menores no interior do bloco, podem reduzir substancialmente a agenda comum do Brics e sua ação conjunta no cenário internacional, o que é lamentável em um palco no qual as peças do jogo diplomático internacional se movem rapidamente, buscando encontrar seu lugar, numa conjuntura em que os Estados Unidos da América prometem voltar com apetite à arena internacional.
* Assessora e pesquisadora do Centro de Relações Internacionais em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Cris/Fiocruz)
[1] https://news.cgtn.com/news/2020-11-18/Full-text-Xi-Jinping-s-speech-at-1...
[2] https://news.cgtn.com/news/2020-11-18/Full-text-Xi-Jinping-s-speech-at-1...