Inteligência artificial e cooperação internacional: elementos para construção de uma agenda brasileira

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Inteligência artificial e cooperação internacional: elementos para construção de uma agenda brasileira



POR CEE – Fiocruz

PUBLICADO 17/11/2025

Por Bernardo Bahia Cesário e Claudia Chamas

A crescente volatilidade geopolítica, marcada por disputas por minerais, semicondutores, fragmentação de cadeias de suprimentos e dissociação estratégica em tecnologias críticas, impõe avaliar as estratégias de construção de uma agenda brasileira para cooperação internacional no campo da inteligência artificial. Quando a diplomacia dos grandes emergentes vincula inteligência artificial à soberania, desenvolvimento sustentável e inclusão, fica patente que esfera do conhecimento deixou de ser adereço de eficiência administrativa: trata-se agora de uma questão geopolítica de primeira ordem para esses países, inclusive o Brasil1.

Nesse sentido, o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) 2024–2028 posiciona ações estratégicas de colaboração internacional como uma de suas premissas fundamentais que orientam sua estruturação e implementação e prevê internacionalização por meio de intercâmbio científico, atração de investimentos, cooperação em normas éticas e regulatórias, participação ativa em fóruns multilaterais, além do estímulo à pesquisa aplicada em setores estratégicos como saúde, meio ambiente e segurança cibernética. Isso tudo deve ser capilarizado em instituições e empresas brasileiras.

Essa urgência fica ainda mais nítida quando se examinam três fragilidades em rápida expansão. A primeira é a concentração infraestrutural e cognitiva: os Estados Unidos detêm cerca de um terço dos 500 supercomputadores mais potentes e mais da metade do desempenho computacional agregado. Essa supremacia se explica pela dominância de mercado de empresas como a Apple, Nvidia, e Microsoft, e com o fato de que apenas cem corporações, metade delas sediadas nos EUA e 13% na China,  respondem por 40% de todo o investimento mundial em P&D corporativo2. O resultado não é apenas escala: são consequências geopolíticas, seja como oportunidades de cooperação e aquisições, por um lado, ou exposição a sanções, interrupção de serviços críticos e imposição de padrões proprietários que elevam o custo de inovar a partir de países ou regiões com recursos limitados3.

A segunda fragilidade é a prática de apropriação, controle e exploração de dados produzidos por diversas comunidades e países, especialmente os mais fragilizados ou negligenciados: atualmente 83% das instituições públicas de ensino superior brasileiras mantêm seus e-mails em servidores estrangeiros, sendo 74% sob jurisdição da Alphabet/Google4. Entre junho de 2024 e junho de 2025, o setor público brasileiro desembolsou mais de R$ 10 bilhões em licenças de software, nuvem e cibersegurança5. Nesse cenário de “interdependência armada”6, chaves criptográficas, corredores principais por onde trafegam nossos dados na internet e algoritmos de classificação permanecem fora do nosso alcance, transformando a infraestrutura pública em uma alavanca de pressão contratual e técnica.

A terceira fragilidade é a externalização de custos ambientais do digital. Estudos de pegada de carbono estimam que, se nada mudar, o setor de tecnologias de informação e comunicação poderá responder por até 14% das emissões globais de gases de efeito estufa em 20407. Muitos governos do Sul atraem megadatacenters com energia competitiva e incentivos; o desafio é exigir contrapartidas ambientais claras. Contratos devem fixar metas de eficiência hídrica e energética, transparência e repartição de valor (P&D, formação e capacidade para serviços essenciais); sem salvaguardas, a renda e o controle saem, e os custos ficam.

Em conjunto, essas três dimensões mostram que a dependência deixou de ser apenas industrial ou financeira; ela agora se estende aos fluxos de bits, aos algoritmos, aos megawatts e à própria arquitetura dos ecossistemas digitais. O aprisionamento tecnológico, ou lock-in de plataformas, visível em licenças que se renovam automaticamente, APIs proprietárias, formatos de dados não interoperáveis e custos crescentes de migração, transforma usuários em cativos de feudos tecnológicos que capturam renda e limitam escolhas.

A superação da dependência exige uma estratégia fundamentada em três frentes interdependentes: infraestrutura; capacitação humana e padrões abertos; e coordenação estratégica e cooperação internacional. A capacitação local, quando bem-preparada e estrategicamente orientada, deve servir de base para cooperação internacional equilibrada, evitando relações assimétricas de dependência.

Investir em infraestrutura digital soberana, inclusiva e ambientalmente responsável é central. Isso inclui a construção de data centers nacionais ou regionais, a expansão de redes de alta velocidade e a adoção de padrões abertos8. Esses investimentos reduzem a divisão digital ao ampliar o acesso da população aos serviços on-line e, graças a avanços recentes, permitem “saltar etapas” ao adotar redes 5G em vez de extensos cabos terrestres9. Para que a soberania não se converta em passivo ambiental, os projetos devem nascer com metas de eficiência hídrica e energética10, evitando que o país se torne repositório da pegada de carbono das plataformas do Norte Global.

Projeções setoriais indicam que, entre 2021 e 2025, serão necessários quase 800 mil novos profissionais de tecnologia no país8. Cobrir esse déficit exige um esforço nacional de formação interdisciplinar que inclua competências técnicas, éticas e de governança, garantindo a permanência de cientistas e técnicos em áreas críticas como cibersegurança, bioinformática, gestão de dados e desenvolvimento de IA3. Em paralelo, a adoção de padrões interoperáveis como os promovidos pela Open-WHO11 é estratégica para evitar o aprisionamento tecnológico (vendor lock-in) e facilitar a integração de sistemas, fortalecendo em vez de fragmentá-los em soluções proprietárias. A soberania digital, em última instância, depende da capacidade de inovar e adaptar tecnologias às necessidades locais7. Nesse ponto, a cooperação internacional pode apoiar programas conjuntos de capacitação, cátedras de IA em universidades brasileiras e intercâmbio de talentos, com cláusulas que assegurem a difusão das competências adquiridas e reduzam a fuga de cérebros.

A cooperação internacional deve ocorrer em múltiplas frentes – Norte-Sul, Sul-Sul e em arranjos complementares multialinhados, com vista a ganhos de escala e redução das vulnerabilidades. No plano doméstico, o Estado deve agir como orquestrador e investidor, direcionando a inovação por meio de uma variedade de instrumentos de incentivo, inclusive compras públicas e encomendas tecnológicas12. A transformação da demanda estatal em sinal de mercado previsível, reduz o risco privado e integra toda cadeia produtiva.

No plano externo, a coordenação pode facilitar acesso conjunto à infraestrutura, treinamento de recursos humanos e adoção de padrões abertos. Enquanto as economias avançadas somaram 2.580 incentivos industriais entre 2020 e 202313, os países de renda média precisam combinar seus esforços para criar escala, negociar padrões e compartilhar infraestrutura. Iniciativas latino-americanas voltadas ao prontuário eletrônico interoperável, discutidas no âmbito do PROSUL, começam a delinear um espaço de dados em saúde menos dependente de provedores externos14. A conjunção entre poder de compra coordenado e integração pode criar volume de mercado, diluindo custos de P&D e fortalecendo a resiliência coletiva do setor digital.

A cooperação internacional também precisa incorporar cláusulas de sustentabilidade, exigindo que megadatacenters e grandes operações digitais no Brasil sejam pautados por energias renováveis, eficiência hídrica e transparência. Dessa forma, o país não apenas reduz sua vulnerabilidade, mas também projeta padrões que podem influenciar a agenda regulatória global.

A transformação digital é um campo de disputas políticas e econômicas a ser moldado. Para o Brasil, ir além de modelos extrativistas significa adotar a tecnologia como pedra angular de um projeto civilizatório enraizado na equidade e na dignidade humana. A resiliência sanitária em particular depende de bases digitais próprias, inclusivas e auditáveis. Promover inovação que sirva ao bem-estar coletivo requer mais do que acesso; implica redistribuir poder, repensar modelos de governança e investir em capacidades que permitam ao país ser arquiteto ativo de seu futuro tecnológico e social. Nesse percurso, a cooperação internacional, ao mesmo tempo pragmática e orientada por valores de inclusão, soberania e defesa do multilateralismo, é o caminho para a redução das assimetrias. Assim, o Brasil poderá transformar sua posição atual em protagonismo regulatório, científico e social no campo da inteligência artificial, promovendo também seu crescimento econômico.

Referências

  1. BRICS. Declaração dos Líderes sobre Governança Global da Inteligência Artificial. Rio de Janeiro, 6 jul. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-dos-lideres-do-brics-sobre-governanca-global-da-inteligencia-artificial
  2. UNCTAD. Tecnology and Innovation Report 2025. Disponível em: https://unctad.org/system/files/official-document/tir2025_en.pdf
  3. Laboratório Livre. Carta-Programa pela Soberania Digital. 2022.
  4. Observatório da educação vigiada. Mapeamento da plataformização da educação pública superior: América latina e África. 2024. Disponível em: https://zenodo.org/records/11243189
  5. Silva, E. C. M.; Rocha, I.; Vaz, J. C.; Veneziani, J. R. A.; Modanez, C. C. Contratos, Códigos e Controle. A influência das Big Techs no Estado Brasileiro.
  6. Farrell, H., & Newman, A. L. Underground Empire: How America Weaponized the World Economy. Henry Holt and Co. 2023.
  7. Furtado, H., & Cunha, R. IA, Data center e colonialismo digital. 2024.
  8. PWC Brasil. O abismo digital no Brasil. Como a desigualdade de acesso à internet, a infraestrutura inadequada e a educação deficitária limitam nossas opções para o futuro. 2022.
  9. Korinek, A.; Stiglitz, J. E. Artificial intelligence, globalization and strategies for economic development. No. w28453. National Bureau of Economic Research, 2021.
  10. European Comission. Assessment of the energy performance and sustainability of data centres in EU. 2025.
  11. WHO. WHO and HL7 collaborate to support adoption of open interoperability standards. 2023. Disponível em: https://www.who.int/news/item/03-07-2023-who-and-hl7-collaborate-to-support-adoption-of-open-interoperability-standards
  12. Mazzucato, M. Mission Economy: A Moonshot Guide to Changing Capitalism. 2021.
  13. ABIFINA. “Compras públicas tecnológicas e soberania digital”. Revista Facto, n.º 4, 2024.
  14. SNOMED International. RACSEL collaboration strengthens digital health transformation and interoperability across Latin America and the Caribbean. 2024. Disponível em: https://www.snomed.org/news/racsel-collaboration-strengthens-digital-health-transformation-and-interoperability-across-latin-america-and-the-caribbean
  15. Cassiolato, J. E.; Lastres, H. M. Economia Política de Dados e Soberania Digital. Contracorrente, 2025.

Claudia Chamas é pesquisadora do CDTS/Fiocruz.
Bernardo Bahia é pesquisador do grupo de pesquisa Desenvolvimento Sustentável, CT&I e Complexo Econômico-Industrial da Saúde (GPCEIS/CEE-Fiocruz).

Artigo divulgado originalmente no Boletim Panorama Internacional da Saúde, vol. 2, nº 10, em outubro de 2025.

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