Por Bernardo Bahia Cesário e Claudia Chamas
A crescente volatilidade geopolítica, marcada por disputas por minerais, semicondutores, fragmentação de cadeias de suprimentos e dissociação estratégica em tecnologias críticas, impõe avaliar as estratégias de construção de uma agenda brasileira para cooperação internacional no campo da inteligência artificial. Quando a diplomacia dos grandes emergentes vincula inteligência artificial à soberania, desenvolvimento sustentável e inclusão, fica patente que esfera do conhecimento deixou de ser adereço de eficiência administrativa: trata-se agora de uma questão geopolítica de primeira ordem para esses países, inclusive o Brasil1.
Nesse sentido, o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA) 2024–2028 posiciona ações estratégicas de colaboração internacional como uma de suas premissas fundamentais que orientam sua estruturação e implementação e prevê internacionalização por meio de intercâmbio científico, atração de investimentos, cooperação em normas éticas e regulatórias, participação ativa em fóruns multilaterais, além do estímulo à pesquisa aplicada em setores estratégicos como saúde, meio ambiente e segurança cibernética. Isso tudo deve ser capilarizado em instituições e empresas brasileiras.
Essa urgência fica ainda mais nítida quando se examinam três fragilidades em rápida expansão. A primeira é a concentração infraestrutural e cognitiva: os Estados Unidos detêm cerca de um terço dos 500 supercomputadores mais potentes e mais da metade do desempenho computacional agregado. Essa supremacia se explica pela dominância de mercado de empresas como a Apple, Nvidia, e Microsoft, e com o fato de que apenas cem corporações, metade delas sediadas nos EUA e 13% na China, respondem por 40% de todo o investimento mundial em P&D corporativo2. O resultado não é apenas escala: são consequências geopolíticas, seja como oportunidades de cooperação e aquisições, por um lado, ou exposição a sanções, interrupção de serviços críticos e imposição de padrões proprietários que elevam o custo de inovar a partir de países ou regiões com recursos limitados3.
A segunda fragilidade é a prática de apropriação, controle e exploração de dados produzidos por diversas comunidades e países, especialmente os mais fragilizados ou negligenciados: atualmente 83% das instituições públicas de ensino superior brasileiras mantêm seus e-mails em servidores estrangeiros, sendo 74% sob jurisdição da Alphabet/Google4. Entre junho de 2024 e junho de 2025, o setor público brasileiro desembolsou mais de R$ 10 bilhões em licenças de software, nuvem e cibersegurança5. Nesse cenário de “interdependência armada”6, chaves criptográficas, corredores principais por onde trafegam nossos dados na internet e algoritmos de classificação permanecem fora do nosso alcance, transformando a infraestrutura pública em uma alavanca de pressão contratual e técnica.
A terceira fragilidade é a externalização de custos ambientais do digital. Estudos de pegada de carbono estimam que, se nada mudar, o setor de tecnologias de informação e comunicação poderá responder por até 14% das emissões globais de gases de efeito estufa em 20407. Muitos governos do Sul atraem megadatacenters com energia competitiva e incentivos; o desafio é exigir contrapartidas ambientais claras. Contratos devem fixar metas de eficiência hídrica e energética, transparência e repartição de valor (P&D, formação e capacidade para serviços essenciais); sem salvaguardas, a renda e o controle saem, e os custos ficam.
Em conjunto, essas três dimensões mostram que a dependência deixou de ser apenas industrial ou financeira; ela agora se estende aos fluxos de bits, aos algoritmos, aos megawatts e à própria arquitetura dos ecossistemas digitais. O aprisionamento tecnológico, ou lock-in de plataformas, visível em licenças que se renovam automaticamente, APIs proprietárias, formatos de dados não interoperáveis e custos crescentes de migração, transforma usuários em cativos de feudos tecnológicos que capturam renda e limitam escolhas.
A superação da dependência exige uma estratégia fundamentada em três frentes interdependentes: infraestrutura; capacitação humana e padrões abertos; e coordenação estratégica e cooperação internacional. A capacitação local, quando bem-preparada e estrategicamente orientada, deve servir de base para cooperação internacional equilibrada, evitando relações assimétricas de dependência.
Investir em infraestrutura digital soberana, inclusiva e ambientalmente responsável é central. Isso inclui a construção de data centers nacionais ou regionais, a expansão de redes de alta velocidade e a adoção de padrões abertos8. Esses investimentos reduzem a divisão digital ao ampliar o acesso da população aos serviços on-line e, graças a avanços recentes, permitem “saltar etapas” ao adotar redes 5G em vez de extensos cabos terrestres9. Para que a soberania não se converta em passivo ambiental, os projetos devem nascer com metas de eficiência hídrica e energética10, evitando que o país se torne repositório da pegada de carbono das plataformas do Norte Global.
Projeções setoriais indicam que, entre 2021 e 2025, serão necessários quase 800 mil novos profissionais de tecnologia no país8. Cobrir esse déficit exige um esforço nacional de formação interdisciplinar que inclua competências técnicas, éticas e de governança, garantindo a permanência de cientistas e técnicos em áreas críticas como cibersegurança, bioinformática, gestão de dados e desenvolvimento de IA3. Em paralelo, a adoção de padrões interoperáveis como os promovidos pela Open-WHO11 é estratégica para evitar o aprisionamento tecnológico (vendor lock-in) e facilitar a integração de sistemas, fortalecendo em vez de fragmentá-los em soluções proprietárias. A soberania digital, em última instância, depende da capacidade de inovar e adaptar tecnologias às necessidades locais7. Nesse ponto, a cooperação internacional pode apoiar programas conjuntos de capacitação, cátedras de IA em universidades brasileiras e intercâmbio de talentos, com cláusulas que assegurem a difusão das competências adquiridas e reduzam a fuga de cérebros.
A cooperação internacional deve ocorrer em múltiplas frentes – Norte-Sul, Sul-Sul e em arranjos complementares multialinhados, com vista a ganhos de escala e redução das vulnerabilidades. No plano doméstico, o Estado deve agir como orquestrador e investidor, direcionando a inovação por meio de uma variedade de instrumentos de incentivo, inclusive compras públicas e encomendas tecnológicas12. A transformação da demanda estatal em sinal de mercado previsível, reduz o risco privado e integra toda cadeia produtiva.
No plano externo, a coordenação pode facilitar acesso conjunto à infraestrutura, treinamento de recursos humanos e adoção de padrões abertos. Enquanto as economias avançadas somaram 2.580 incentivos industriais entre 2020 e 202313, os países de renda média precisam combinar seus esforços para criar escala, negociar padrões e compartilhar infraestrutura. Iniciativas latino-americanas voltadas ao prontuário eletrônico interoperável, discutidas no âmbito do PROSUL, começam a delinear um espaço de dados em saúde menos dependente de provedores externos14. A conjunção entre poder de compra coordenado e integração pode criar volume de mercado, diluindo custos de P&D e fortalecendo a resiliência coletiva do setor digital.
A cooperação internacional também precisa incorporar cláusulas de sustentabilidade, exigindo que megadatacenters e grandes operações digitais no Brasil sejam pautados por energias renováveis, eficiência hídrica e transparência. Dessa forma, o país não apenas reduz sua vulnerabilidade, mas também projeta padrões que podem influenciar a agenda regulatória global.
A transformação digital é um campo de disputas políticas e econômicas a ser moldado. Para o Brasil, ir além de modelos extrativistas significa adotar a tecnologia como pedra angular de um projeto civilizatório enraizado na equidade e na dignidade humana. A resiliência sanitária em particular depende de bases digitais próprias, inclusivas e auditáveis. Promover inovação que sirva ao bem-estar coletivo requer mais do que acesso; implica redistribuir poder, repensar modelos de governança e investir em capacidades que permitam ao país ser arquiteto ativo de seu futuro tecnológico e social. Nesse percurso, a cooperação internacional, ao mesmo tempo pragmática e orientada por valores de inclusão, soberania e defesa do multilateralismo, é o caminho para a redução das assimetrias. Assim, o Brasil poderá transformar sua posição atual em protagonismo regulatório, científico e social no campo da inteligência artificial, promovendo também seu crescimento econômico.
Referências
- BRICS. Declaração dos Líderes sobre Governança Global da Inteligência Artificial. Rio de Janeiro, 6 jul. 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/declaracao-dos-lideres-do-brics-sobre-governanca-global-da-inteligencia-artificial
- UNCTAD. Tecnology and Innovation Report 2025. Disponível em: https://unctad.org/system/files/official-document/tir2025_en.pdf
- Laboratório Livre. Carta-Programa pela Soberania Digital. 2022.
- Observatório da educação vigiada. Mapeamento da plataformização da educação pública superior: América latina e África. 2024. Disponível em: https://zenodo.org/records/11243189
- Silva, E. C. M.; Rocha, I.; Vaz, J. C.; Veneziani, J. R. A.; Modanez, C. C. Contratos, Códigos e Controle. A influência das Big Techs no Estado Brasileiro.
- Farrell, H., & Newman, A. L. Underground Empire: How America Weaponized the World Economy. Henry Holt and Co. 2023.
- Furtado, H., & Cunha, R. IA, Data center e colonialismo digital. 2024.
- PWC Brasil. O abismo digital no Brasil. Como a desigualdade de acesso à internet, a infraestrutura inadequada e a educação deficitária limitam nossas opções para o futuro. 2022.
- Korinek, A.; Stiglitz, J. E. Artificial intelligence, globalization and strategies for economic development. No. w28453. National Bureau of Economic Research, 2021.
- European Comission. Assessment of the energy performance and sustainability of data centres in EU. 2025.
- WHO. WHO and HL7 collaborate to support adoption of open interoperability standards. 2023. Disponível em: https://www.who.int/news/item/03-07-2023-who-and-hl7-collaborate-to-support-adoption-of-open-interoperability-standards
- Mazzucato, M. Mission Economy: A Moonshot Guide to Changing Capitalism. 2021.
- ABIFINA. “Compras públicas tecnológicas e soberania digital”. Revista Facto, n.º 4, 2024.
- SNOMED International. RACSEL collaboration strengthens digital health transformation and interoperability across Latin America and the Caribbean. 2024. Disponível em: https://www.snomed.org/news/racsel-collaboration-strengthens-digital-health-transformation-and-interoperability-across-latin-america-and-the-caribbean
- Cassiolato, J. E.; Lastres, H. M. Economia Política de Dados e Soberania Digital. Contracorrente, 2025.
Claudia Chamas é pesquisadora do CDTS/Fiocruz.
Bernardo Bahia é pesquisador do grupo de pesquisa Desenvolvimento Sustentável, CT&I e Complexo Econômico-Industrial da Saúde (GPCEIS/CEE-Fiocruz).
Artigo divulgado originalmente no Boletim Panorama Internacional da Saúde, vol. 2, nº 10, em outubro de 2025.