Saúde ‘é’ Economia: seminário discute soberania, bem-estar e equidade como alavancas para a retomada do crescimento
Novos pactos sociais voltados à sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde; fortalecimento de uma base econômica, tecnológica e material, que garanta a soberania do país; e definição de políticas sociais e ambientais sustentáveis, voltadas à equidade e à inclusão foram alguns pontos debatidos no evento Saúde e Economia, realizado, em 13/7/2022, no âmbito dos Seminários Avançados em Saúde Global, do Centro de Relações Internacionais em Saúde (Cris/Fiocruz).
A mesa reuniu o coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz), Carlos Gadelha; o diretor da Divisão de Desenvolvimento Social da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), Alberto Arenas; o consultor regional de Governança, Liderança, Políticas e Planejamento em Saúde da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), Ernesto Báscolo; e a pesquisadora Claudia Chamas, do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS/Fiocruz), com moderação de Paolo Balatelli, diretor da Opas para a América do Sul.A mesa contou, ainda, com a participação do diretor do Cris, Paulo Buss.
“Em 2020, quando teve início a pandemia de Covid-19, mais de 4 bilhões de pessoas no mundo não contavam com proteção social, evidenciando um problema que precisa ser enfrentado de forma estrutural e sustentável”, observou Balatelli, em sua fala de abertura. Ele destacou a vulnerabilidade das pessoas que vivem na pobreza extrema e que são as mais ameaçadas pelos distúrbios sociais e econômicos. “O impacto da pandemia de Covid-19 acentuou-se pelo acesso desigual a vacinas e testes, tratamentos e equipamentos de proteção individual, seja na comparação entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento, seja no interior dos próprios países da América Latina e do Caribe”, acrescentou.
Balatelli destacou o aspecto “bidirecional” que se observa entre economia e saúde, visível durante a pandemia e importante no pós-pandemia. Ele se referiu à questão da propriedade intelectual, enfatizando o quanto a “solidariedade internacional” e um “novo contrato social, baseado nos direitos humanos” são indispensáveis para alcançar os objetivos da Agenda 2030.
Sabemos que, na medida em que aumentam os gastos públicos, diminui o gasto individual e vice-versa. Isso requer condições estruturais (Ernesto Báscolo/Opas)
De modo a mostrar que economia e saúde se relacionam “não como mundos separados, mas de forma entrelaçada”, em diálogo, Ernesto Báscolo, da Opas, abordou o desempenho dos sistemas de saúde nos diferentes países e o lugar da economia nesse cenário. “A economia tem relação com uma das funções importantes dos sistemas de saúde, quando nos referimos ao financiamento”, disse, destacando a importância do contexto, no fortalecimento e na resiliência desses sistemas. “O contexto funciona como um guarda-chuva, envolvendo questões econômicas, políticas e culturais e os determinantes sociais”, considerou.
Como caminho para o fortalecimento dos sistemas de saúde, Báscolo defendeu o financiamento da proteção social de forma sustentável, por “sua capacidade redistributiva e sua capacidade de gerar condições de solidariedade”. Ele chamou atenção para três aspectos, o primeiro deles referindo-se ao desenvolvimento de capacidades e competências por parte do Estado, de modo a garantir investimentos para o “exercício das funções essenciais em saúde pública”.
O segundo aspecto foi relacionado à ênfase estratégica na atenção primária à saúde, assim como à necessidade de ações intersetoriais, que ganhou ainda mais relevância durante a pandemia de Covid-19, conforme observou. E, por fim, um terceiro ponto referiu-se ao acesso da população, sobretudo, a mais vulnerável aos serviços de saúde.
Se, por um lado, disse Báscolo, foi possível destacar, nas duas últimas décadas “avanços nas condições de cobertura em saúde”, os desafios são ainda “imensos”. Como exemplo, ele citou que um terço da população da região da América Latina e Caribe não tem acesso aos serviços de saúde quando necessita, relacionando esse cenário a aspectos da economia da saúde. “Uma das barreiras de acesso tem a ver com o gasto individual. Sabemos que, na medida em que aumentam os gastos públicos, diminui esse gasto individual. Isso requer condições estruturais”, observou, lembrando que poucos países da América Latina contam têm esse perfil como Uruguai, Costa Rica e Cuba.
“Como podemos chegar a esses níveis? Isso tem a ver não apenas com vontade política, mas com o tecido institucional dos sistemas, e eu me refiro à arquitetura e às diversas fontes de financiamento envolvidas”, avaliou. “O problema não é a combinação de fontes financiamento, mas a desarticulação de mecanismos de solidariedade entre elas”.
As políticas públicas, daqui para frente, devem ser definidas de forma integral – políticas de saúde, políticas de proteção social e políticas econômicas e produtivas (Alberto Arenas/Cepal)
Alberto Arenas, da Cepal, destacou o cenário econômico de “alta incerteza” gerado pela pandemia de Covid-19, no qual a região da América Latina e Caribe mostrou-se muito vulnerável e que evidenciou “os pontos fracos estruturais dos sistemas de saúde”. Para ele, no entanto, o momento mostra-se também como “oportunidade histórica” para impulsionar reformas nesses sistemas. “Estamos convencidos de que investir em saúde é fundamental em qualquer estratégia de desenvolvimento inclusivo e sustentável”, afirmou.
Arenas trouxe dados da Cepal sobre a taxa de crescimento econômico na região, apontando para um cenário de recessão: de acordo com levantamento realizado entre 2014 e 2019, observou-se um crescimento econômico de apenas de 0,3%, indicando que, mesmo antes da pandemia o índice era baixo. “Com a pandemia, houve uma contração econômica de 6,8%, em 2020, e de 6,3%, em 2021. Mas, mesmo depois dessa pequena melhora, o crescimento estimado pela Cepal para 2022 é de 1,8%”, contabilizou, acrescentando que as estimativas dos diversos organismos internacionais, aí incluída a Cepal, é que esse índice irá piorar.
Ele apontou, ainda, o aumento de preços registrado desde o início da pandemia de Covid-19 e um processo de inflação que vem se acentuando e que se mostrou maior no setor de alimentos, expressando-se em aumento da pobreza extrema, em 2022. “São 7,8 milhões de pessoas que se somam aos 86 milhões que já estão em insegurança alimentar na região, infelizmente”.
As mortes por Covid também foram destacadas por Arenas, na conformação dos impactos da crise sanitária. Ele lembrou que, de acordo com cálculos da OMS, a região da América Latina e Caribe contabilizou cerca de 2,3 milhões de mortes “em excesso” na pandemia de Covid-19, o equivalente a 15,3% do registrado no âmbito mundial. “É nesse contexto que se torna necessário avançar em sistemas universais de saúde”.
Como analisou diretor da Cepal, “a crise, tanto econômica, quanto social e sanitária, levou a retrocessos importantes no que diz respeito à pobreza e à miséria, que aumentaram pelo segundo ano consecutivo em 2021”. Para ele, o “impacto catastrófico” que a pandemia teve na região ficou evidente nos déficits registrados no sistema de saúde e de proteção social. “As políticas públicas, daqui para frente, devem ser definidas de forma integral – políticas de saúde, políticas de proteção social e políticas econômicas e produtivas, de modo a se enfrentar a pandemia”, considerou.
O aspecto transversal do setor Saúde também foi abordado. “Estamos falando em um seminário de economia e saúde, porque a discussão sobre a reforma da saúde abrange outros setores, e isso está muito vinculado à questão macroeconômica”, avaliou. “É fundamental consolidar novos pactos sociais que venham junto com novos contratos sociais e garantam a sustentabilidade financeira dos sistemas de saúde, num contexto econômico de incerteza, para podermos avançar de forma decidida para um Estado de bem-estar”.
Uma agenda que não em enfrente as assimetrias econômica, científica e tecnológica não é uma agenda de sistemas universais (Carlos Gadelha/CEE-Fiocruz)
Ao se referir ao tema do webinário, o pesquisador Carlos Gadelha, coordenador do CEE-Fiocruz, enfatizou que “saúde é economia” e que, sem uma base econômica produtiva, de conhecimento tecnológico, a região da América Latina e do Caribe não terá saúde pública como direito universal. Gadelha orientou sua exposição pela ideia de que a saúde, para além de sua articulação com a economia, é uma “possibilidade de resposta para retomada do desenvolvimento econômico, de forma mais equânime, capaz de gerar um novo padrão tecnológico e industrial, inclusivo e sustentável”.
Tomando o economista Celso Furtado (1920-2004) como referência, Gadelha destacou a centralidade das pessoas e do planeta no processo de desenvolvimento. E lembrou que Furtado definia o desenvolvimento econômico como processo de inovação e de diferenciação do sistema produtivo, para atender as necessidades humanas, ou seja, “a economia a serviço da vida e não a vida a serviço da economia”, como definiu.
O pesquisador chamou atenção para o contexto atual de “disputa geopolítica e econômica”, em que as vacinas tornam-se o segundo mercado farmacêutico mais importante do mundo, só superado pelo da área oncológica, e no qual temos que lidar com tendo como foco uma “redução das assimetrias produtivas e tecnológicas globais, para tornar possível o acesso”.
Para Gadelha, não existe Economia da Saúde descolada do contexto histórico e da realidade social, sendo a transformação econômica e produtiva, a ciência, a tecnologia e a inovação indissociáveis da transformação política, social e ambiental. “Se não integrarmos esses dois mundos pela saúde, não haverá padrão de desenvolvimento digno da visão que marca a trajetória e o pensamento latino-americanos. O bem-estar pode ser alavanca para retomada do crescimento, com mudança estrutural”, considerou.
Conforme contabilizou, o setor Saúde representa 10% do PIB mundial e, só no Brasil, gera 20 milhões de empregos diretos e indiretos. “A saúde é a chave do mundo”, resumiu. “Não podemos mais tratar da Saúde sem pensar em sistema de informação e conectividade, em estratégias tecnológicas ligadas a big data, a inteligência artificial, nas grandes empresas de informação e de dados que invadem o setor, desde a atenção básica até a indústria tecnológica de ponta, na área de equipamentos ou farmacêutica”.
De modo a enfatizar a importância do investimento interno em ciência, tecnologia e inovação, o pesquisador trouxe dados que mostram o grau de dependência externa registrado pelo país: “As importações brasileiras, no meio da pandemia, em 2021, chegaram a 20 bilhões de dólares; o gasto total em saúde no Brasil equivale ao que o país importa, sem gerar um emprego, uma renda, uma inovação e um conhecimento”, alertou, apontando, que se trata de dependência que afeta não apenas a economia, como o Sistema Único de Saúde e a possiblidade de acesso universal.
“Vemos discursos meritórios, pela equidade, mas, no mundo real, o que houve foi uma altíssima concentração da vacinação e da capacidade produtiva global”, comparou, abordando também o campo das patentes: “Costumo dizer que a patente de hoje é a dependência de amanhã. São 88% de todas as patentes em saúde concentradas em apenas dez países”.
Ao apresentar um mapa do Brasil, com a indicação de produtos exportados nos diferentes estados brasileiros – minério, em Minas Gerais; açúcar, em São Paulo; petróleo cru, no Rio de Janeiro, entre outros –, o pesquisador observou: “Estamos nos transformando, e transformando a América Latina, numa grande fazenda primário-exportadora do mundo”.
Para Gadelha, a saúde apresenta-se como alternativa a esse modelo. “Como podemos ter desenvolvimento sustentável com esse padrão produtivo, que tem no seu DNA a insustentabilidade ambiental e social?”, indagou, defendendo a economia a serviço de políticas públicas convergentes, para viabilizar o acesso universal à produção e à inovação voltadas ao bem-estar. Ele vê no Complexo Econômico-Industrial da Saúde parte de uma estratégia de recuperação e reconstrução das economias da região.
Gadelha citou as experiências do Brasil com a produção de vacinas para a Covid-19 pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan, em que o mercado público foi articulado com a área de ciência e da tecnologia e com empresas privadas, para atender demandas sociais. “Não há país soberano sem soberania econômica”, afirmou. “A ideia é que a saúde seja, ao mesmo tempo, produção, inovação, crescimento do PIB, direitos sociais, meio ambiente e cidadania”.
É importante entendermos esses impulsos vindos da Ásia, refletindo geração de inovação intensa e crescente, para entendermos também a complexidade do cenário atual e que o mundo que tomou decisões em Doha, em 2001, não é o mesmo em que vivemos hoje (Claudia Chamas/CDTS-Fiocruz)
A pesquisadora da Fiocruz Claudia Chamas trouxe para o seminário um resgate da movimentação global no que diz respeito à regulação da propriedade intelectual para o enfrentamento da Covid-19, com vistas à recuperação econômica. Ela apresentou dados da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Wipo, na sigla em inglês), mostrando que houve aumento de depósitos de patentes em 1,6%, em 2020, em especial, pela China, Coreia do Sul e Índia.
“É importante entendermos esses impulsos vindos da Ásia, refletindo geração de inovação intensa e crescente, para entendermos também a complexidade do cenário atual e que o mundo que tomou decisões em Doha, em 2001, não é o mesmo em que vivemos hoje”, alertou referindo-se à IV Conferência Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), realizada em Doha, Catar, em 2001, que resultou na Declaração de Doha, afirmando o direito dos países em desenvolvimento de utilizar as disposições do Acordo Trips, sobre flexibilidades, para proteger a saúde pública.
Claudia observou, ainda, que, de janeiro de 2020 a setembro de 2021, China, Estados Unidos, Rússia, Reino Unido, Índia e Alemanha responderam por mais de 95% dos pedidos de patentes de vacinas contra Covid-19. “Praticamente, quase todos os pedidos de patentes para várias plataformas tecnológicas”, ressaltou.
Como “grande marco” da discussão sobre propriedade intelectual durante a pandemia, ela destacou a comunicação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em outubro de 2020, conhecida como IP Waiver [suspensão temporária da propriedade intelectual], em que Índia e África do Sul, especialmente, consideraram que os membros da OMC devem trabalhar juntos para garantir os direitos de propriedade intelectual, como patentes e outros, sem barreiras ao acesso a produtos médicos – incluindo vacinas e medicamentos – no combate à Covid-19.
Foi um processo de aprovação demorado, em relação à urgência de resposta que a pandemia exigia, conforme relatou Claudia, e marcado por contrapropostas e impasses entre os países, que só se concluiu em 17 de junho de 2022, durante a 12ª conferência ministerial da OMC. “Essa decisão, do Waiver, é consequência do vínculo entre PI e acesso, inclusive, no que diz respeito a produção local e preço acessível. Vimos isso na epidemia Global do HIV e, agora, na Covid”, observou, destacando que, no entanto, “os ministros [da Saúde] aprovaram a decisão com escopo mais limitado, com foco apenas neste momento e nas patentes da vacina contra Covid, excluindo-se os outros aspectos de propriedade intelectual".
No conjunto de acordos firmados no âmbito da OMC, prosseguiu a pesquisadora, ficou estabelecido que, em relação à exportação, esta pode se dar em qualquer proporção dos produtos fabricados. “Por exemplo, podemos produzir o IFA [Ingrediente farmacêutico ativo] em um país e envasar em outros, permitindo, assim, que países com expertises complementares possam trabalhar em conjunto”, citou, lembrando que está ainda pendente a extensão dos acordos a medicamentos e diagnósticos. “A aprovação desse conjunto de acordos deu novo impulso à OMC, em meio às tensões geopolíticas do sistema de comércio multilateral”, avaliou.
No que diz respeito à propriedade intelectual, observou Claudia, a medida foi tomada em consenso, porém seu real impacto vai depender da implementação. “Será que essa medida vai contribuir para a redução das assimetrias?”, indagou. “A gestão da propriedade intelectual deve ser marcada pelo protagonismo da Agenda 2030 e contribuir para a promoção da inovação, para o acesso a produtos essenciais e para a recuperação econômica. Uma gestão baseada na solidariedade”.
Assista à integra do seminário:
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