Rivaldo Venâncio: ‘Estamos vacinando contra febre amarela pessoas que não estão, de fato, em risco agora'
Embora mais vulneráveis à contaminação por febre amarela, as populações próximas às áreas silvestres não estão sendo alcançadas pela vacinação devido à concentração dos postos e das equipes no ambiente urbano, o que pode vir a provocar uma escalada na ocorrência dos casos. A análise é do infectologista, professor titular da Famed/UFMS e pesquisador associado do CEE-Fiocruz Rivaldo Venâncio, que explica neste comentário ao blog, que, atualmente, há um deslocamento da ocorrência de casos de febre amarela do ambiente silvestre para o urbano.
Segundo Rivaldo, a febre amarela, como outros problemas de saúde pública, tem origem multifatorial e seu desenvolvimento difere do das outras arboviroses, como a dengue. “Por estarmos lidando com uma epidemia cujo foco surge em áreas silvestres, a influência marcante que fatores urbanos, como o abastecimento regular de água para consumo doméstico e a coleta regular do resíduo sólido urbano, têm nas epidemias de dengue não é a mesma nas epidemias de febre amarela silvestre, devido às diferentes características dos mosquitos transmissores”.
Leia a seguir a análise completa de Rivaldo Venâncio.
“Todos os principais problemas de saúde pública são sempre de origem multifatorial. O que observamos nos últimos anos, por razões ainda desconhecidas, é o deslocamento da ocorrência de casos dessa febre amarela provocada dentro do ciclo silvestre. A febre amarela tem dois ciclos: o silvestre e o urbano. No ciclo silvestre, o vírus da febre amarela circula entre macacos e outros mamíferos não humanos, que estão nas áreas silvestres, por meio de mosquitos que compartilham o mesmo habitat e vivem na copa das árvores, os Sabethes e os Haemagogus. Nesse ciclo, o ser humano se infecta acidentalmente, seja a atividades de trabalho ou de lazer. No ciclo urbano de febre amarela, por sua vez, o vírus é transmitido para seres humanos por meio do mosquito aedes aegypti. No entanto, não se registram casos característicos desse ciclo desde 1942.
O anúncio do ciclo de febre amarela silvestre é dado pela morte de macacos que foram infectados pelos mosquitos. Quando há o deslocamento desse ciclo silvestre para próximo daquela população que não era originalmente e obrigatoriamente vacinada – em uma faixa estreita no Sudeste e Nordeste –, há a necessidade de se estender a proteção a essa população com a vacina. Por isso, foi ampliada a área na qual a vacina contra a febre amarela passa a ser aplicada.
Por estarmos lidando com uma epidemia cujo foco surge em áreas silvestres, a influência marcante que fatores urbanos, como o abastecimento regular de água para consumo doméstico e a coleta regular do resíduo sólido urbano, por exemplo, têm nas epidemias de dengue não é a mesma nas epidemias de febre amarela silvestre, devido às diferentes características dos mosquitos transmissores.
Um enfrentamento tardio no último surto pode ter contribuído para o ressurgimento, mas não deve ser o único fator envolvido no surto atual em ascendência que estamos observando. Nós não sabemos dimensionar a influência do clima, do desastre ecológico de Mariana, do uso de agrotóxicos em larga escala ou da ampliação da fronteira agrícola do país, incluindo parte da região Sudeste e da região Nordeste. Ainda não sabemos dizer até que ponto essa fronteira que se estendeu deslocou animais junto com eles. Ou seja, há uma gama muito grande de possibilidades interferindo na maior ou menor ocorrência desse surto.
As pequenas comunidades rurais, sítios e fazendas mais afastados não estão sendo alcançados por essa campanha de intensificação da vacinação na medida que seria necessária
Há hoje uma dificuldade, que me parece maior em algumas regiões, de se identificar e alcançar a principal população para a vacinação de febre amarela. Estamos vacinando, em boa parte, pessoas que não estão, de fato, em risco neste momento, isto é, pessoas que vivem em áreas extremamente urbanizadas. Nossos postos e equipes de vacinação estão majoritariamente no asfalto. As pequenas comunidades rurais, sítios e fazendas mais afastados não estão sendo alcançados por essa campanha de intensificação da vacinação na medida que seria necessária.
Por não haver em estoque uma capacidade imediata de fornecimento de vacina em tão larga escala – por se tratar de regiões muito populosas, como a região metropolitana de São Paulo –, se optou, em comum acordo entre o Ministério da Saúde e os secretários estaduais e municipais de Saúde dessas localidades, por fazer o fracionamento da vacina. Ou seja, cada dose da vacina padrão será transformada em cinco outras doses. Um frasco que contenha cinco doses da sua formulação padrão, vai fornecer, em tese, 25 doses da vacina. Isso está permitindo que haja um bloqueio imediato e essa preocupação da proximidade do vírus do ambiente silvestre com o ambiente urbano é interrompida e bloqueada por essa proteção da vacina.
Em resumo, a tendência neste momento é de haver uma escalada na ocorrência desses casos de febre amarela. Me parece que há uma certa deficiência no número e na mobilidade de equipes volantes que pudessem estar caminhando nesses sítios e lugarejos em busca das populações que estão mais vulneráveis à doença”. (Comentário à Luiza Medeiros/CEE-Fiocruz)