O mundo pós-pandemia: pesquisadores abordam novas tecnologias e novos modos de produção e de consumo
Os impactos sociais e econômicos da pandemia de Covid-19, a disputa por insumos, respiradores, máscaras e vacinas, em âmbito global, as desigualdades que se acirraram, em um cenário no qual os dez homens mais ricos do mundo dobraram sua fortuna, neste período, enquanto a renda de 99% da humanidade caiu, e o entendimento da área da Saúde como caminho para inserção do Brasil no cenário produtivo global foram alguns dos temas em pauta no podcast Pandemia, novas tecnologias, novos modos de produção e consumo, produzido pela Associação de Funcionários do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Afipea). Esse é o sétimo episódio da série O mundo pós-pandemia e contou com a participação do coordenador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, Carlos Gadelha, ao lado dos pesquisadores José Eduardo Cassiolato, professor do Instituto de Economia da UFRJ, Cristina Reis, professora de Economia e Relações Internacionais da UFABC, e Pedro Villardi, coordenador de Equidade em Saúde da Internacional de Serviços Públicos.
“Não fosse o Brasil, pela Fiocruz e o Butantan na produção de vacinas, teríamos uma parcela ínfima da população vacinada contra a Covid-19”, observa Carlos Gadelha no podcast, destacando que o processo se deu em parceria com o setor privado, mas orientado por uma visão de Estado. “Isso é algo central. A vacinação é feita nas unidades de atenção básica. É SUS puro sangue!”.
Como analisa o coordenador do CEE, sem uma base econômica e industrial, o país fica vulnerável e dependente. “É o que alertávamos há 20 anos na Fiocruz e estamos avisando de novo: no contexto da quarta revolução tecnológica, sem essa base, não vamos conseguir fazer uma vigilância preditiva, que aponte onde vai surgir uma nova pandemia, como podemos chegar na frente, antes da doença”, aponta. “Estamos propondo que o sistema produtivo da saúde e seus diversos níveis tecnológicos seja uma grande vocação do Brasil. Temos o primeiro sistema universal criado nos trópicos. E olhem a resposta que está sendo dada na pandemia!”.
Para José Cassiolato, a pandemia explicita uma crise que já havia sido prevista por analistas de diversas matrizes ideológicas, como consequência da “globalização dominada pelas finanças”. Conforme analisa o professor, o Brasil posicionou-se bem após a crise de 2007-2008, mas não soube aproveitar as boas condições de que dispunha – decorrentes das políticas sociais em curso –, em favor dos aspectos industrial, produtivo e tecnológico. “Tínhamos uma classe média em ascensão”, lembra. “De 2005 para cá, os principais mercados consumidores do mundo ficam estagnados e as grandes transnacionais começam a olhar com olhos de aves de rapina cada vez mais para países como o nosso, em termos de mercado real e potencial”.
Cassiolato avalia que o país passou a contar com boa estrutura científica, em especial em torno dos anos 2013 e 2014, mas com uma política de inovação “muito modesta”, à exceção da área da Saúde, em determinado período. “No mais, copiamos manuais do OCDE, com ações infrutíferas”, considera, defendendo que o país alcance “o mínimo de autonomia” para dar conta de forma mais autônoma das transformações tecnológicas e das possibilidades trazidas pelas novas tecnologias. “Ou continuamos a ser bons consumidores, isto é, pagando direitinho, deixando nossas informações brasileiras irem todas para fora, para ficar alguma nuvem, ou tentamos mudar esse quadro e trazer para dentro do país as possibilidades tanto de produção quanto de consumo mais inteligente”, conclama.
Cristina Reis observa que a dependência do país à tecnologia já parecia vir aumentando desde antes da pandemia, acentuando-se na crise sanitária. “Isso, na contramão do que se vê nos países desenvolvidos e em alguns países em desenvolvimento de maior porte que, no momento em que o comércio internacional apresentava dificuldades e rupturas, buscaram alternativas de readensamento produtivo, de reconversão industrial e de reindustrialização”.
De acordo com a pesquisadora, esse movimento dos países, que se mostrava já delineado antes da pandemia, foi acelerado no atual cenário. “Ainda não temos dados concretos que apontem nessa direção, mas caso tenha ocorrido, de fato, esse movimento mundialmente, não foi o nosso caso, pelo pouco fôlego que a indústria brasileira vem apresentando, de acordo com os últimos indicadores (2020-2021). Ou seja, não está acontecendo o readensamento industrial no Brasil, muito pelo contrário”, considera.
Pedro Villardi aponta como “um dos grandes debates” da atualidade o tema da transferência de tecnologia e o enfrentamento das dificuldades impostas pelos segredos industriais. “Na pandemia, a possibilidade de licenciamento compulsório de patentes ligadas à Covid-19 foi um dos pontos mais debatidos, com vistas a aumentar a capacidade produtiva de bens essenciais à batalha contra a doença”. Em sua avaliação, o momento levou “a avanços no debate nacional, mas ainda aquém das necessidades”.
Em relação ao receio de que esse movimento provocasse uma retirada das empresas do país, Villardi lembra que o Brasil é um dos maiores mercados consumidores do mundo. “Um mercado público de demanda constante. Nenhuma empresa é doida de abandonar o mercado brasileiro”, afirma, expressando a força e importância do SUS demonstrada durante a atual crise sanitária. “Na pandemia da Covid-19, foi o setor público e as promessas de compra antecipada que financiaram as pesquisas para o desenvolvimento de novas tecnologias”.
Como analisa Pedro, “patentes não são o único empecilho para que uma tecnologia seja replicada e chegue ao mercado na sua forma genérica ou biossimilar”. Conforme observa, “existem informações, principalmente de dados clínicos, que a empresa detentora submete para registro na Anvisa e que são importantes para a replicação de uma tecnologia”. Outra dificuldade apontada por Villardi diz respeito ao material biológico necessário para a reprodução da tecnologia em questão. “Muitas vezes, a empresa detentora da patente controla toda a cadeia produtiva, ou seja, não há material biológico disponível no mundo para que reprodução seja possível”. Ele aborda, ainda, a questão dos segredos industriais, informações úteis e necessárias para a efetiva e rápida reprodução, também “um tipo de transferência de tecnologia”.
Na avaliação do pesquisador, o enfrentamento desses empecilhos faria o Brasil avançar e daria ao país uma das legislações mais avançadas do mundo, no que diz respeito à licença compulsória, e ferramentas para que seja rápido e ágil o desenvolvimento de versões genéricas e biossimilares para atender as demandas do país.