Transtornos mentais não são ‘distúrbios cerebrais’, defendem pesquisadores

Transtornos mentais não são ‘distúrbios cerebrais’, defendem pesquisadores

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Por  Peter Simons *

A revista Behavioral and Brain Sciences (da Cambridge University Press) reúne, em sua última edição, artigos de pesquisadores que desmentem a noção de que problemas de saúde mental sejam decorrentes de distúrbios cerebrais. A edição começa com um artigo de pesquisadores holandeses argumentando que a neurobiologia nunca explicará de forma convincente quaisquer problemas de saúde mental. O restante da edição inclui dezenas de comentários de pesquisadores, alguns apoiando a premissa inicial e outros tentando argumentar contra ela. Em resposta, os primeiros apontam que nenhum dos argumentos fornece qualquer evidência de que o reducionismo neurobiológico tenha tido sucesso de maneira significativa.

O artigo principal e a resposta aos comentários são de Denny Borsboom, da Universidade de Amsterdã, Angélique Cramer, da Universidade de Tilburg, e Annemarie Kalis, da Universidade de Utrecht, todos na Holanda. O que eles observam, nesse periódico de alto perfil, é que a hipótese do reducionismo biológico não explica suficientemente a experiência humana. Em vez disso, uma variedade de outras explicações funciona tão bem quanto, se não melhor.

Borsboom e seus colegas sugerem que a psiquiatria deve concentrar-se na intencionalidade – no significado das experiências –, pois essa é a característica definidora, única, de toda abordagem dos problemas mentais e emocionais dos seres humanos. Concentrar-se na neurobiologia tem sido, segundo os pesquisadores, um fracasso, por ignorarem-se esses aspectos fenomenológicos da experiência. Perde-se, essencialmente, o cerne dos problemas com a saúde mental. “É altamente improvável que a sintomatologia associada à psicopatologia possa ser conclusivamente explicada em termos de neurobiologia”, escrevem Borsboom, Cramer e Kalis. “Portanto, manter a ideia de que os transtornos mentais são distúrbios cerebrais pode ser contraproducente e pode levar a um programa de pesquisa míope”, consideram.

Os pesquisadores afirmam, também, que nunca serão encontradas explicações simples, que reduzam estados mentais a diferenças biológicas, por várias razões. Os diagnósticos de saúde mental são baseados em grupos de sintomas, que, por sua vez, são ligados à cultura e mudam com o tempo (como em cada nova edição do DSM – Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais –, a bíblia da Psiquiatria), o que torna impossível supor que encontraríamos um correlato biológico para uma lista arbitrária de sintomas muito diferentes. A depressão, por exemplo, pode incluir ganho de peso, perda de peso, insônia, fadiga, sono excessivo, e vários estados emocionais que podem ou não estar presentes. Assumir que todas essas características contraditórias podem ser devidas aos mesmos substratos biológicos é falso.

Além disso, como se não pode provar a causalidade, é mais provável que quaisquer alterações neurobiológicas detectadas sejam o resultado de um estado mental, e não a causa. Ou seja, mudanças nos níveis de neurotransmissores de uma pessoa seriam realmente esperadas após mudanças drásticas nos estados de sono, alimentação e humor – as alterações biológicas poderiam ser causadas por mudanças de rotina como essas, ou ambas poderiam ser parte de algum outro processo.

Os pesquisadores defendem que identificar os sintomas em diagnósticos psiquiátricos requer atenção ao contexto ambiental e à experiência da pessoa. Por exemplo, os critérios para diagnosticar depressão, tais como “sentimentos de culpa excessiva ou inadequada”, requerem que o clínico contextualize a fonte da culpa e decida se é inadequada.

Em um dos comentários ao artigo de Borsboom, Cramer e Kalis, o influente cientista de Stanford John Ioannidis defende que a pesquisa sobre problemas com a saúde mental deve prosseguir, dado o que ele chama de “beco sem saída” da agenda neurobiológica.

Ele sugere que as intervenções em saúde mental devem se concentrar nas mudanças ambientais. Ou seja, o contexto da vida de uma pessoa tem muito mais impacto sobre a saúde mental do que a neurobiologia. “Nossas sociedades precisam considerar mais seriamente o impacto potencial sobre a saúde mental de decisões trabalhistas, educacionais, financeiras e outras dos âmbitos social e político, nos níveis local, estadual, nacional e global”.

Borsboom e seus co-autores vão mais longe: “No esquema atual, o reducionismo explicativo não é um alvo de pesquisa realista. Não temos biomarcadores suficientemente confiáveis e preditivos para uso em diagnóstico. Não identificamos genes específicos de distúrbios que expliquem uma quantidade apreciável de variação. Não obtivemos informações suficientemente seguras sobre vias patogenéticas no cérebro, para informar o tratamento. Deveríamos nos perguntar por que os investimentos massivos em pesquisa, que deveriam ter descoberto esses fatores, não elevaram a prevalência de transtornos mentais comuns em um único ponto percentual”. Para eles, as explicações biológicas reducionistas sobre saúde mental “não devem ser entendidas como ciência, mas como ficção científica”.

* Artigo publicado em 22/4/2019, no site Mad in Brasil.