Nelson Rodrigues dos Santos: a conjuntura de 30 anos de domínio financeiro especulativo e perspectivas para 2018
A Globalização Financeira
Permanecemos desafiados a manter lucidez e coragem de avaliar a real profundidade e consequências da maior e mais bem engendrada das ditaduras conhecidas, que há 30 anos vem se estendendo às nações e povos: a ditadura do capital financeiro especulativo nas entranhas da relação Sociedade-Estado. Iniciou-se nos anos 80 nas democracias políticas ocidentais e a seguir globalizou-se. As variações estratégicas na intensidade e formas desse engendramento entre os países centrais e periféricos e nestes, segundo seu peso geopolítico, só atestam que “um espectro destrutivo e poderoso ronda a humanidade”. Uma espiral de concentração de renda e riqueza de intensidade e métodos virtuais jamais previstos e concebidos, avoluma-se geometricamente há mais de 30anos e coloca nas mãos dos 1 a 2% mais ricos, o acesso e controle do poder de Estado em detrimento da autonomia da relação Sociedade-Estado. Desse controle decorrem: a) os rumos do processo produtivo global, das commodities, da pesquisa em ciência e tecnologia especiais, da automação e robótica, das relações de trabalho, das macroempresas, dos conglomerados, dos superconglomerados, e dos próprios continentes, países, povos e classes sociais, e b) a definição de quais gastos públicos devem ser objeto de austeridade para o necessário equilíbrio fiscal, para eles, exclusivamente os investimentos públicos na infraestrutura do desenvolvimento e nos direitos sociais de cidadania, estratégia conhecida como financeirização dos orçamentos públicos. Para tanto, esses 1 a 2% cercam-se desde o início de seus intelectuais orgânicos, as grandes redes bancárias e o top de executivos, estrategistas e comunicadores.
O estabelecimento dessa hegemonia no seio das sociedades vem se valendo da imposição de escolas econômicas ortodoxas com complexas econometrias, impostas midiaticamente às sociedades. Com métodos e dogmas ortodoxos pseudocientíficos, essa hegemonia impõe midiática e diuturnamente o endeusamento do mercado, uma nova divindade onipotente intocável: o mercado de capitais, o mercado financeiro, o mercado imobiliário, o mercado do empreendedorismo, as agências de risco, o mercado exige, o mercado avalia, o mercado propõe, o mercado pensa, o mercado desconfia, o humor do mercado, etc. Essa ortodoxia imposta midiaticamente, até o momento não se abala com as realidades demonstradas pelas evidências científicas reveladas por pesquisas de elevado nível tanto em países centrais como periféricos. Pelo contrário, vem se estendendo e se estabilizando no “em torno” do núcleo dominante dos 1 a 2% mais ricos e envolve aspirações da classe média-alta e parte importante da classe média-média, visando à reprodução do sistema.
A Globalização Financeira no Brasil
No Brasil a “modernidade” da gigantesca acumulação especulativa aliançou desde os anos 80 as oligarquias regionais mais atrasadas em engendramento estratégico de captura do Estado, centrado nos poderes Executivo, Legislativo e grande capital financeiro e empresarial. Mantem o nosso sistema tributário entre os mais regressivos do mundo, nossos 1 a 2% mais ricos, mais ricos que seus pares em vários países centrais. A renda dos nossos 5% mais ricos equivale à dos 95% restantes, nossos 1% mais ricos concentram perto de 25% da renda há 15 anos, nossos 0,1% mais ricos concentraram 11% da renda em 2001, 16% em 2007 e 14% nos últimos anos, fortemente favorecidos pela especulação financeira. A riqueza das nossas seis pessoas mais ricas equivale à dos 50% mais pobres. Ocupamos o 4º lugar no mundo em volume de depósitos em paraísos fiscais, e disponibilizamos mais da metade do nosso orçamento geral da União para os serviços de dívida pública impagável e nunca auditada. Desvinculamos 30% de nossas contribuições sociais da previdência social, saúde e assistência social, para o sorvedouro da austeridade definida pelos 1-2% mais ricos, visando o equilíbrio fiscal. E permanecemos campeões em sonegação fiscal e renúncias fiscais pesadamente desviadas da produção para a especulação. Esses macrogastos públicos, em nenhum momento assumidos pelos intelectuais orgânicos, estrategistas e comunicadores dos 1-2% mais ricos, como objeto da necessária austeridade fiscal, o que somente poderia ocorrer sob uma relação Sociedade-Estado realmente autônoma.
Note-se que esse engendramento estratégico desenvolve-se sem alardes desde os anos 80 e início dos 90, e já exercendo comprovada hegemonia, enquanto a sociedade estava eufórica com a vitória da Constituição voltada para o bem estar social. Simultaneamente a essa euforia efetivavam-se políticas econômicas com base na financeirização do nosso orçamento público, e de políticas sociais com base no sucateamento dos serviços próprios públicos e compra ou subvenção de serviços privados no mercado. A grande e justa euforia da sociedade com a vitória do Título da Ordem Social na Constituição cidadã de 1988, explicitando inequívoca hegemonia no debate democrático, no rumo de pacto social para a implementação do Estado de bem estar social, redundou em equivocado sentimento de que essa hegemonia seria de alguma maneira estendida, a seguir, para o interior dos aparelhos de Estado no Executivo e Legislativo para sua implementação. Mas esse interior complexo do Estado estava hegemonizado pelo referido engendramento iniciado nos anos 80, consolidado nos 90, e que desenvolveu-se e vem sendo exercido até nossos dias, sob estratégias e adequações ao perfil de cada novo ciclo governamental e de coligação partidária: 1990/1993, 1994/2002, 2003/2010, 2011/14, 2015/2016 e 2016/2018. Com a radicalização dessa hegemonia a partir de 2015/2016 (impeachment e EC-95), retroagimos à periferização mundial que nem os militares na ditadura ousaram tocar: na Telebrás, Eletrobrás, Embraer, Petrobrás, CSN, CLT, LOPS, etc.
Saiba mais: Assista à integra do seminário Políticas sociais e a austeridade da agenda neoliberal
Ciclo 2016/2018: Sequência e responsabilidades dos ciclos anteriores
As várias formas e impactos de deterioração nas entranhas do Estado, que acumularam — por igual sem interrupção — em todos os ciclos anteriores, devem ser tomados como geradores maiores do período 2016/2018. Notamos que esses fatores geradores não foram arrefecidos, pela notável inclusão social no mercado de consumo, registrada a partir de 2004. Exemplos de fatores geradores : a) a não abertura de amplo debate com a sociedade (afora a campanha eleitoral de 2002), de informações e alternativas de formulação e construção de projeto de nação e sociedade, com destaque à política econômica e às políticas públicas de cidadania, assim como da democratização do Estado, b) o não compartilhamento e parceria com pesquisas e formulações — internacionais e nacionais – com vistas a pactuação social por projetos alternativos de austeridade para o equilíbrio fiscal, vinculados ao nosso desenvolvimento e direitos sociais, c) nossa adesão subliminar à triangulação: – mega-superfaturamentos por grandes empreiteiras licitadas e de bancos privados/financiamentos eleitorais por caixas II e III/fidelidade de bancada situacionista majoritária para chancelar políticas econômicas antinacionais e antissociais, corrompendo o orçamento público e d) a recusa de identificar, suspender ou excluir de suas funções, os dirigentes de Estado e de Partidos, comprovadamente participantes ou coniventes com a triangulação e corrupção referidas no item anterior e outros fatores geradores do período 2016/2018. Frisando que essa recusa não pode ser justificada pela injustiça de dois pesos e duas medidas que parte do MP e do sistema judiciário cometeram entre os partidos políticos mais expressivos, protagonistas da captura do Estado, acionando a mesma tipologia de desmandos de poder às custas do orçamento público.
Conjecturamos que a crítica e autocrítica consistentes, com os equívocos, distorções e crimes de dirigentes de governo e partidos, em todos os ciclos que geraram o impeachment/2016, é patamar inabdicável para a refundação partidária, de plataforma eleitoral e de estratégia governamental, debatidas aberta e amplamente como alternativa às exercidas até então. O que muito ampliará a adesão social e do eleitorado, com repercussão em 2018. Opinamos que a predominância do corporativismo, revanchismo e culto à personalidade, ofuscam e distorcem a construção dos caminhos libertários. E como sempre, lembremos que nossa caminhada, na ânsia de contribuir no processo histórico, permanece desafiada a balizas e prazos do próprio processo, muito mais que às nossas balizas e processos pessoais e grupais. E permanece uma caminhada sem fim, bela e instigante. Persistamos.
* Diretor do Centro Brasileiros de Estudos de Saúde (Cebes), professor aposentado pela Unicamp. Artigo publicado em 4/1/2018.