Paulo Amarante: resolução do Ministério da Saúde é retorno à política manicomial e atende ao mercado
Paulo Amarante, coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/ENSP/Fiocruz) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme), critica, em entrevista à ENSP TV, resolução baixada ontem (14/12) pelo ministro da Saúde, Ricardo Barros, que extingue mecanismos que permitem transferir recursos dos manicômios para novos serviços comunitários, cujo programa terá suas verbas congeladas, e aumenta a dotação orçamentária dos hospitais psiquiátricos.
Paulo Amarante denuncia que a proposta do governo é o retorno do modelo manicomial, com convênios do SUS com hospitais privados, o que é claramente "uma demanda de prestadores de serviços, de setores que não são exatamente conservadores, mas mercantilistas, com vistas a seus interesses". Não se trata de uma outra política de saúde pública, observa, mas de uma política de mercado. "É um modelo que não produz tratamento nem cidadania". A resolução do ministro também causou indignação em três psiquiatras que estiveram à frente da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, entre 1991 e 2013. Em artigo publicado no jornal A Folha de São Paulo, eles afirmam que a portaria é um retrocesso que coloca em risco a atual política, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde, que foi pactuada por usuários, familiares e profissionais de serviços de saúde mental em quatro grandes conferências nacionais e esteve em discussão por 11 anos no Congresso Nacional. Leia abaixo o artigo e veja o vídeo.
Retrocesso na saúde mental?
Por Domingos Sávio Nascimento Alves*, Pedro Gabriel Delgado**, Roberto Tyaknori Kinoshita***, publicado no jornal A Folha de São Paulo
Nos últimos 30 anos, o Brasil construiu uma política de Estado para portadores de transtornos mentais que ganhou o reconhecimento da Organização Mundial da Saúde.
Essa política abriu quase 3.000 serviços de saúde mental comunitários, redirecionando recursos antes gastos em manicômios, que excluíam sem tratar. Muitos, aliás, violaram direitos humanos, como denunciado pela imprensa e pelo Ministério Público.
O Orçamento federal, que antes subvertia a lógica ao priorizar internações, hoje destina 75% de seus recursos para serviços extra-hospitalares, que ajudam homens e mulheres a encontrar saúde mental e felicidade lá onde ela pode estar, no cotidiano da vida em comunidade.
Tais serviços evitam internações e substituem os hospitais, com vantagem, quando elas são necessárias. Nos Centros de Atenção Psicossocial mais estruturados, que tem até dez vagas de internação, pessoas são cuidadas nas crises e fora delas pela mesma equipe, no mesmo local, sem quebra de continuidade ou perda de sua identidade.
Residências terapêuticas ofertam moradia apoiada e inserida na comunidade a quem tem menos autonomia.
Essa política, que conjuga saúde mental e direitos humanos com eficiência na gestão pública, é filha do processo de redemocratização do país.
Suas diretrizes foram pactuadas por usuários, familiares e profissionais de serviços de saúde mental em quatro grandes conferências nacionais. Ela atravessou todas as gestões do Ministério da Saúde desde 1990 e foi inscrita na legislação federal com a Lei 10.216/2001, após 11 anos de debates no Congresso.
Foi com espanto que nós, ex-coordenadores de saúde mental do Ministério da Saúde, soubemos que o atual ministro pretende mudar, por meio de uma portaria, a política de saúde mental.
O ministro propõe extinguir mecanismos legais que permitem transferir recursos dos manicômios para novos serviços comunitários. E mais: em um cenário de corte orçamentário, quer reajustar repasses a manicômios, com impacto estimado em R$ 140 milhões, sem reajustar nenhum serviço comunitário.
Pior, o ministério propõe destinar R$ 120 milhões para internações em comunidades terapêuticas para dependentes químicos. Esses estabelecimentos, que fogem das normativas do SUS como o diabo da cruz, formam um universo heterogêneo, desregulado, contra quem sobram denúncias de violação de direitos e cujo financiamento público foi questionado por estudo do Ipea.
Por fim, a proposta ressuscita o financiamento de ambulatórios de saúde mental, sobrepostos aos serviços comunitários existentes. O conjunto das propostas privilegia a internação e duplica serviços. Como os recursos são escassos e decrescentes, o resultado será o sucateamento da rede comunitária de saúde mental.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão questionou a legalidade das propostas por contrariarem a priorização dos serviços comunitários, consagrada na lei 10.216. O Conselho Nacional de Direitos Humanos alertou que a mudança ameaça a cidadania dos portadores de transtornos mentais.
O ministro da Saúde não pode desfazer numa canetada uma política de Estado amparada pela legislação federal, pelo controle social do SUS e mundialmente reconhecida por seus resultados. Resta um longo caminho para melhorar a atenção à saúde mental no Brasil, mas as medidas propostas pelo atual ministro nos levam de volta ao passado e nos afastam desse caminho.
* neurologista, foi coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde em 1991-1992 (governo Collor) e 1995-1996 (governo FHC)
** Psiquiatra, é professor da UFRJ; foi coordenador de Saúde Mental entre 2000 e 2010 (governos FHC e Lula)
*** Psiquiatra, é professor da Unifesp; foi coordenador de Saúde Mental de 2011 a 2015 (governo Dilma)
Subscrevem este artigo:
Eliane Maria Fleury Seidl, psicóloga, é professora da UnB; foi coordenadora de Saúde Mental do Ministério da Saúde em 1993-1994 (governo Itamar Franco); Alfredo Schechtman, médico, foi coordenador de Saúde Mental em 1997-1998 (governo FHC); Ana Maria Fernandes Pitta, psiquiatra e professora aposentada da USP, foi coordenadora de Saúde Mental entre 1998 e 2000 (governo FHC); Leon Garcia, psiquiatra, foi coordenador-adjunto de Saúde Mental em 2011 e 2013 (governo Dilma)
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