Enquanto seu lobo não vem – as lutas entre os de cima no Brasil de hoje

Enquanto seu lobo não vem – as lutas entre os de cima no Brasil de hoje

Já leu

O pesquisador José Maurício Domingues analisa o que está ocorrendo no "andar de cima", com "as classes dominantes brasileiras", dada a atual conjuntura, em que a burguesia do país mantém-se vigorosa, mas dividida, como se pode observar pelas prisões de empreiteiros envolvidos nos esquemas de corrupção, fartamente registradas pelas grandes corporações midiáticas. Um cenário que se orienta pelo "capitalismo de laços", em que Estado e empresas encontram-se imbricados.

Acompanhar a conjuntura de maneira consistente é no momento quase impossível, dadas as reviravoltas que não param de se produzir diariamente. Mas há certas linhas de força que se destacam em meio a essa turbulência. Já assinalei neste blog que a principal se refere ao fim de um ciclo político de longo prazo, que se esgotou sem que outro se haja ainda iniciado. Os sintomas de morbidez perpassam toda a vida política, e mesmo social, nacional. A autodestruição da esquerda e o risco de que se torne irrelevante são outras linhas de força, assim como a inacreditável incompetência da presidente reeleita Dilma Rousseff, seja política, seja economicamente. Mas precisamos nos deter um momento para analisar o que está ocorrendo entre os de cima, as classes dominantes brasileiras, ou qualquer outro conceito que se prefira para enquadrar essas coletividades altamente poderosas.

Um elemento a se destacar no cenário atual é evidentemente a prisão dos donos e diretores de empreiteiras envolvidos nos esquemas de corrupção da Petrobras, com o apoio aberto da grande mídia e o silêncio de outros setores. Trata-se assim de considerar as relações entre as próprias frações da burguesia muito trincadas neste momento.

Seria difícil imaginar há não muito tempo – essencialmente até a chegada de Lula à Presidência da República – que essas empreiteiras estariam na berlinda por corrupção. Mais ainda, seria quase impossível supor que o Grupo Globo (anteriormente Organizações Globo), o principal intelectual orgânico hoje de grande parte da burguesia brasileira e de fato seu principal partido político (como em geral é o caso com os meios de comunicação na América Latina contemporânea – ver Domingues, 2008, cap. 3), daria suporte às operações da justiça e promoveria a exposição permanente na mídia dos donos e diretores dessas empresas.[1] Afinal, são eles alguns dos principais representantes do capital nacional e tudo indica que soem realizar este tipo de operações de apropriação da renda nacional por meio de obras superfaturadas desde há muito tempo (alguns localizam na construção de Brasília o impulso fundamental para o estabelecimento desse tipo de relação neopatrimonial entre Estado e empreiteiras). Também é conhecido que no Brasil temos o que se poderia chamar de “capitalismo de laços” (Lazzarini, 2011), em que Estado e empresas encontram-se imbricados, neste caso mediante contratos de construção civil, porém de modo mais geral inclusive pela ação decisiva do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), sem que se deva sempre supor corrupção, vale frisar, ainda que esta esteja presente em variadas operações, como o caso da Petrobras evidencia. Foram muitas as empresas que recentemente se beneficiaram desse tipo de esquema, que inclui também os fundos de pensão dos funcionários das empresas estatais, desde os governos Fernando Henrique Cardoso, seguindo pelos governos de Lula e Rousseff. Nesse sentido, não há solução de continuidade, ainda que os volumes de crédito e o envolvimento do BNDES na propriedade e direção das empresas tenha aumentado de modo acentuado durante os governos capitaneados pelo PT, com um impulso aos setores capitalistas nacionais, o que inclui em alguns casos a escolha de “campeões nacionais” e sua internacionalização. Na verdade, ainda que alguns setores da economia tenham sido desnacionalizados com os processos de privatização do período Cardoso e um processo de compra de empresas siga em curso em várias áreas, a burguesia interna brasileira permanece vigorosa (ver Gonçalves, 1999; Rocha, 2002; Lazzarini, 2011). Mas dividida, claramente.

Sabe-se que o setor de engenharia civil, tendo à frente a Odebrecht e outras gigantescas empresas, teve grande apoio dos governos Lula, que os programas de grandes obras e de infraestrutura o favorecem e que ele se apresenta como uma das faces mais internacionalizadas do capitalismo brasileiro, com contratos milionários na América Latina e na África, e ainda em outras regiões do mundo. Seria isso por si só capaz de gerar um clima de belicosidade contra ele por parte de frações do capital que não recebem o mesmo tratamento e apoio? Talvez. Mas o fato é que a hegemonia do capital financeiro não foi realmente tocada (embora Dilma Rousseff tenha se lançado a alguns embates mal preparados com ele durante seu primeiro mandato, nos quais terminou derrotada). Por sua parte, a agroindústria e as mineradoras recebem tratamento cada vez mais favorável. Isso ocorre mediante toda a política agrícola e de terras do governo federal, inclusive no que tange aos indígenas, que vêm sendo massacrados como nunca desde a abertura democrática; mas também pelo apoio do BNDES e a proposta do Código da Mineração, que entrega vastos espaços às grandes companhias nacionais e estrangeiras. Isso sem falar das desastradas desonerações (que acompanharam a argumentação neoliberal de que o problema do país seriam os custos que o setor privado enfrenta, ainda que isso não tenha incidido em restrições à elevação do preço da força de trabalho). Elas poderiam ter amplamente favorecido a indústria, se sua contrapartida fosse de fato o investimento por parte dos empresários que tomaram dinheiro barato em especial junto ao BNDES, o que não ocorreu.[2] A questão parece ser, no entanto, sobretudo política.

Se todos de alguma maneira vêm se beneficiando do apoio do BNDES, parece ser na ideia de uma aliança mais profunda entre governos liderados pelo PT e as empreiteiras que o problema se localiza. Uma coisa é aproveitar-se de crédito barato e dos esquemas de desvio de dinheiro das empresas estatais e do Estado de maneira geral. Outra, construir a partir disso uma aliança de cunho político mais sistemática e duradoura, inclusive do ponto de vista de um projeto nacional em que ambos teriam centralidade. Essa opção se mostra inaceitável para outras frações burguesas. Pode-se tentar encontrar o dedo dos Estados Unidos no ataque às empreiteiras, que poderiam estar ocupando espaços que em princípio estariam reservados a empresas daquele país, mas não há evidência concreta disso. São as empreiteiras chinesas que ademais podem mais facilmente neste momento ocupar os espaços que as brasileiras venham a perder em particular na América Latina e na África.

Assim, parece ser antes a dinâmica política interna que explica por que se aceita e promove sua criminalização e exposição midiática. A linha está claramente traçada: aproveitar oportunidades e lucrar, sim; alianças profundas, de modo algum, pois configuraram uma perspectiva de organização da sociedade e do Estado que contraria o que os setores burgueses com mais capacidade de liderança projetam para o país, isto é, ao que tudo indica, o retorno a um neoliberalismo mais puro-sangue e radical.

Resta saber quais serão os desdobramentos disso. Ao passo que as empreiteiras menores, ou não tão centrais econômica e politicamente, vêm aceitando a pressão do Judiciário e da mídia, a Odebrecht resolveu lutar e responder a ambos. Obviamente, têm elementos para enlamear a todos os governos da república desde sua fundação em 1944, em Salvador. Seja como for, dificilmente seus donos e dirigentes escaparão ilesos das acusações que se lançam sobre eles, sequer se entregarem Lula, como parece ser o desejo das forças do Judiciário e dos agentes políticos que vêm conduzindo o processo. No longo prazo, porém, há que se ver quais serão os desdobramentos desse duplo ataque, judiciário e midiático, que estão sofrendo. Essas empresas não deixarão de ser um dos pilares do capital nacional, permanecerão econômica, social e politicamente poderosas. Terão duas opções: assimilar que lhes está vetado papel de liderança política nos rumos do capitalismo brasileiro ou buscar retomar protagonismo, seja lá como for, em que projeto seja. Em especial é certo que profundas cicatrizes ficarão e que as relações entre essas frações burguesas jamais serão as mesmas. Trincaram-se.

Não há como saber o que se passa efetivamente nos altos círculos do capital nacional, cujas tratativas se realizam em esferas totalmente vedadas ao conhecimento público. O que pensam disso os capitães da indústria e os banqueiros, por exemplo? Não é plausível, de todo modo, que vinganças e cobranças futuras não se coloquem na agenda ao menos dos herdeiros dessas empreiteiras, ainda que o velho Odebrecht talvez tenha que engolir sua raiva e orgulho, amargar o silêncio e legar a seus descendentes estes acertos de contas.

Por sua vez, o que alguns poderiam classificar como “ilusão de classe” por parte do PT, sejam seus quadros oriundos do sindicalismo, seja a esquerda um dia armada, se mostra em todo o seu risco e fragilidade. Acreditaram que controlando uma parte do poder de estado podiam jogar como sócios em um pacto de igual para igual (mesmo em algum momento supuseram, segundo relatos como o Senador Requião, que a Globo estava com eles). Obviamente, como descobriram amargamente, este não era o caso. Além do mais, seu pragmatismo autorizava muito mais do que seria razoável em uma suposta aliança. Até onde irão os estragos não está totalmente definido por ora. Mas isso é assunto para outra ocasião, quando devemos nos perguntar sobretudo, isto posto, para onde e como deve ir a esquerda.

* Professor do Iesp-Uerj, pesquisador associado ao CEE-Fiocruz e autor de O Brasil entre o passado e o futuro (Rio de Janeiro: Mauad, 2015, 2ª  edição).

 

[1] A família Marinho, proprietária do Grupo (ou Organizações) Globo, é, segundo a Forbes, a mais rica do Brasil, com patrimônio de 28,9 bilhões de dólares, seguida pelos donos do Banco Safra e Ermírio de Moraes; e, mais adiante, por, sobretudo, banqueiros (Salles, Villela, Aguiar, Setúbal), donos de construtoras (Camargo, Odebrecht) e representantes do agronegócio (Maggi, Batista – não relacionado a Eike Batista, vale notar). Ver www.valor.com.br/empresas/3547766/familia-marinho-e-mais-rica-do-brasil-diz-forbes.

[2] Para a posição da burguesia brasileira em suas diversas expressões nos governos Lula e Dilma, ver Boito, 2006; Pinto, 2010; Teixeira e Pinto, 2012. Esses dois últimos textos utilizam a evolução setorial do PIB como proxy (isto é, uma representação aproximada) para o favorecimento, via políticas públicas, das frações burguesas pelos governos Lula e Dilma e, assim, seu peso no bloco do poder. Trata-se de procedimento na melhor das hipóteses muito imperfeito. Por outro lado, Teixeira e Pinto assinalaram um declínio da força do capital financeiro no primeiro governo Dilma. Se foi este o caso, a situação foi totalmente revertida neste segundo mandato. A questão permanece, de todo modo, muito mal estudada. Para a evolução da política econômica de Lula a Dilma, a fonte fundamental é, sem dúvida, a revista Plataforma social.