Propaganda de medicamentos faz mal à saúde
“Meu sonho, há muito tempo, é produzir medicamento para as pessoas saudáveis. Assim, a minha empresa poderá vender produtos para todo mundo”. (Henry Gadsden, Diretor da Merck).
A frase de Henry Gadsden reflete bem a dimensão que passou a ter o medicamento nas últimas décadas. De insumo essencial à prevenção, manutenção e recuperação de problemas de saúde, a produção farmacêutica passou a ocupar o lugar de apenas mais um produto de consumo, objeto de monopólios mundiais e de concentração de renda via mecanismos inaceitáveis como, por exemplo, as famigeradas patentes farmacêuticas, que merecem um debate específico de viés civilizatório.
A propaganda de medicamentos para grande público no Brasil – abusiva e repleta de irregularidades, como vários estudos científicos disponíveis na base do Scielo demonstram – é resultado desse lugar que passou a ser ocupado por estes insumos. Sofre o impacto e mexe com poderosos interesses de pelo menos três grandes setores com enorme poder econômico e político em nosso país: a indústria farmacêutica, as poucas empresas monopolistas da área de comunicação e o comércio varejista.
O quadro de permissividade marqueteira com um insumo que incorpora, dependendo de seu uso racional e correto, sérios riscos à saúde, é agravado por mecanismos pretensamente reguladores, que, nos países-sede das maiores multinacionais farmacêuticas que aqui se encontram, já foram descartados e substituídos
O quadro de permissividade marqueteira com um insumo que incorpora, dependendo de seu uso racional e correto, sérios riscos à saúde, é agravado por mecanismos pretensamente reguladores, que, nos países-sede das maiores multinacionais farmacêuticas que aqui se encontram, já foram descartados e substituídos, há décadas, por controles mais eficazes e rígidos, como a anuência prévia das peças publicitárias, mas que aqui são taxados, por estas mesmas indústrias, de "censura à liberdade comercial".
O modelo regulador da propaganda de medicamentos no Brasil incorpora pelo menos cinco significativas fragilidades.
1a – As ações da Anvisa (com base em Resoluções de Diretorias Colegiadas que há quase 20 anos implementam um arremedo regulador baseado na máxima "eu finjo que te regulo, você finge que é regulado"), pretensamente tomadas no campo da proteção à saúde, são feitas a posteriori, meses após a veiculação dos milhares de peças publicitárias pelos mais variados meios de comunicação e quando o risco sanitário já se estabeleceu. Assim, entre a veiculação da publicidade de determinado medicamento no mercado e a tomada de eventuais medidas coercitivas no âmbito do modelo regulador, transcorre um período de tempo que transforma mesmo a frágil ação reguladora em uma atividade que desconsidera a importância da prevenção ao agravo.
2a – Essa fragilidade tem sua magnitude agravada pela grande quantidade de infrações cometidas pelos responsáveis por veicular peças publicitárias de medicamentos. Estudos da própria Anvisa indicaram que mais de 90% das peças publicitárias de medicamentos continham irregularidades de todo tipo, sendo que o artigo mais infringido é o que obriga a citação das contraindicações que aquele determinado produto possui.
3a - As multas efetivamente arrecadadas pela Anvisa, quando ocorrem as irregularidades, têm valor irrisório frente ao total de gastos com propaganda realizados pelo setor, o que transforma a ação punitiva em mera formalidade. Isso quando as multas são efetivamente pagas, já que é comum a abertura de processos administrativos e até judiciais contestando a cobrança.
4 a - Não há mecanismos que impeçam que mesmo os valores irrisórios cobrados nas multas aplicadas pela Agência sejam transferidos pela indústria para o preço dos medicamentos (prática comum relativa ao conjunto dos demais gastos com publicidade de seus produtos), sendo finalmente pagos pelo próprio consumidor.
5 a - Ao tornar obrigatória a inserção da frase AO PERSISTIREM OS SINTOMAS O MÉDICO DEVERÁ SER CONSULTADO ao final de cada propaganda, o atual modelo regulador estimula pelo menos o primeiro consumo incorreto, inconsciente ou irracional de medicamentos. Na verdade, a mensagem inserida após cada anúncio publicitário deseduca a população, no sentido de que fortalece a já existente cultura da automedicação, pois transmite a mensagem de que primeiro tente por si mesmo encontrar o medicamento que lhe traga a cura, comprando o produto que julgar mais conveniente; caso não obtenha sucesso, procure o prescritor competente para ajudá-lo. Essa lógica contida no modelo regulador presta, na verdade, um inestimável papel à indústria, às empresas de mídia e ao comércio de medicamentos, e não à sociedade a quem deveria proteger.
A superação do problema está na suspensão da propaganda de medicamentos para grande público no Brasil ou, em última instância, na adoção de mecanismos de anuência prévia das peças publicitárias pelo sistema nacional de vigilância sanitária
A superação do problema (que contribui de forma decisiva para que os medicamentos sejam campeões de intoxicação humana, segundo o Sinitox/Fiocruz) está na suspensão da propaganda de medicamentos para grande público no Brasil ou, em última instância, na adoção de mecanismos de anuência prévia das peças publicitárias pelo sistema nacional de vigilância sanitária, com o objetivo de proteger a população dos anúncios perigosos e abusivos, prevenindo, assim, o uso incorreto, irracional, inconsciente, perigoso e, muitas vezes, desnecessário de medicamentos.
Em relação às alegações de que esta proibição representaria um atentado à liberdade de manifestação e informação e censura à liberdade comercial, vale frisar que a anuência prévia das peças publicitárias de medicamentos já é norma praticada, há mais de uma década, em países democráticos como Espanha, França, Reino Unido, Austrália, Suíça, México e Equador, onde as mesmas empresas farmacêuticas aqui sediadas se submetem às suas legislações nacionais.
* Jornalista, escritor, ex-editor do Programa Radis/Ensp/Fiocruz, mestre (2003) e doutor (2007) em Políticas, Planejamento e Administração em Saúde pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj).