A estabilidade e seu preço
José Maurício Domingues analisa a Agenda Brasil e observa "uma estranha situação" em que o risco de a presidenta Dilma Rousseff ser alvo de um processo de impeachment encontra-se temporariamente suspenso. O custo dessa suspensão é, porém, "um aprofundamento da pauta brutalmente reacionária que setores de seu próprio governo e a maioria do PMDB querem impor ao país".
José Maurício Domingues*
Estabilidade institucional e governo Dilma até 2018: nada menos do que isso hoje seria comprometer o processo de democratização duramente conquistado pelos brasileiros. Mas o preço no momento está salgado.
Imediatamente após ser reeleita presidenta em uma campanha em que atacou seus adversários pela esquerda e mobilizou uma militância que acreditava em mais mudanças, Dilma Rousseff anunciou que mudava sim de direção, adotando um programa neoliberal de ajuste fiscal. Desde então foram vários meses difíceis, em que sua fragilidade, que vinha já de antes, agravada pela crise econômica e pelo espaço que foi progressivamente cedendo a seus adversários, levou a uma situação em que a incerteza quanto à duração de seu mandato se instalou inarredavelmente. Articulações incessantes, patrocinadas pelos mais variados agentes políticos, inclusive pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, deságuam agora em uma estranha situação em que o risco de ser alvo de um processo de impeachment se encontra temporariamente suspenso. O custo dessa suspensão é, porém, um aprofundamento da pauta reacionária que setores de seu próprio governo e a maioria do PMDB querem impor ao país, ao menos em parte com o beneplácito momentâneo de Lula.
A Agenda Brasil foi anunciada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, como antídoto contra a instabilidade institucional e programa de superação positiva da crise econômica. Isso foi precedido de um afastamento das Organizações Globo da campanha pelo impeachment. Mas é evidente que essa agenda significa a rendição do governo às forças eleitoralmente derrotadas em 2014 e um estranhamento ainda maior em relação àquelas que até outro dia foram suas bases políticas. A esta altura a destruição imediata do SUS, mediante a cobrança por serviços prestados em particular à classe média, foi adiada (mas é significativo que tenha estado na pauta, o que implica que pode voltar a qualquer momento). O restante do pacote é, no entanto, estarrecedor. Regulação, ao que parece, ampla da terceirização (embora Dilma e Calheiros tenham já afirmado que não a aceitam em relação a atividades-fim), mudanças restritivas das aposentadorias do setor privado, blindagem jurídica dos planos de saúde mesmo quando na prática descumprirem contratos, avanços do agronegócio, das grandes obras e da mineração sobre as áreas indígenas (questão em que os dois governos Dilma têm um histórico já trágico), abertura para projetos de mineração ainda mais predatórios (o que de todo modo já estava na agenda do próprio governo federal desde seu primeiro mandato), licenciamento ambiental minimalista e rápido, e daí por diante. É evidente o peso dos interesses empresariais nesta agenda, em especial favorecendo aqueles que se sobressaem no processo em curso de reprimarização da economia brasileira, ao lado de ajustes fiscais que pertencem aos próprios pacotes do governo (fim das desonerações, mudanças no PIS, etc.). A taxação de heranças provavelmente ficará, no fim das contas, como algo passageiro na pauta, para inglês ver neste momento, suavizando o caráter conservador da agenda. Somada à aprovação em segundo turno pela Câmara dos Deputados da reforma política, mantendo a inserção do financiamento empresarial na Constituição, e o chocante projeto de tipificação legal do “terrorismo” de acordo com projeto do próprio governo, a situação de retrocesso democrático, econômico e social é tremenda.
Para setores do PMDB, em especial no Senado, isso soa como música. Embora se deteriore a situação do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, com a recondução, além do mais, de Rodrigo Janot ao cargo de procurador-geral da República, e o vice Michel Temer tenha se complicado com o passo em falso de, intencionalmente ou não, propor-se como a solução da crise, a ascensão de Calheiros é patente. Prova sua argúcia e capacidade de sobrevivência desde seus tempos com Fernando Collor, talvez mesmo frente ao processo da Lava-Jato, na qual já não é certo que seja denunciado. Demonstrando sua força, o presidente do Senado garantiu inclusive o adiamento da decisão do TCU sobre as contas do primeiro governo Dilma. De quebra, a decisão do STF de que as contas das gestões presidenciais têm de ser julgadas conjuntamente pelo Senado e a Câmara arrefece a situação de Dilma, mas não deixa de reforçar o poder do PMDB do Senado.
Para Aécio Neves e seu grupo no PSDB isso não é obviamente bom, pois apostavam no aprofundamento da crise, mas não chega a ser definitivo, ao passo que para o PT a situação alcança ambiguidade insuportável, pois ao ajuste neoliberal que resiste a apoiar se vai somando uma agenda de retirada de direitos e de avanços dos setores empresariais em especial ligados ao agronegócio e à mineração.
Para os movimentos sociais próximos ao PT, trata-se de um novo baque, ainda mais que é o próprio Lula que patrocina a estratégia, com o partido recusando-se mesmo a firmar documentos que contenham críticas ao ajuste fiscal. Se Lula especificamente procura os movimentos como parte de uma estratégia mais ampla, de defesa imediata e talvez parcial ofensiva futura, por outro lado estimula e costura os avanços de Calheiros, para garantir estabilidade ao governo. Este por sua vez tenta garantir, antes de tudo, suas políticas imediatas, ganhando tempo quanto ao restante da agenda, que em parte tem a simpatia da presidenta e acima de tudo de seu ministro Joaquim Levy.
Não se trata, porém, de solução totalmente assentada. Calheiros, as Organizações Globo e o empresariado em geral mantêm a faca no pescoço de Dilma, inclusive com suas contas de governo como tema em aberto, para não falar de suas contas de campanha no TSE, quaisquer que sejam as eventuais maiorias que se formem em seu julgamento. A qualquer momento tudo pode, mais uma vez, se alterar. Dizia Tancredo Neves que política é como as nuvens, muda cada vez que se a contempla. No momento é como se a ventania fosse forte e incessante. A política deve assim continuar mudando e se redesenhando, ainda que haja chance de uma estabilização altamente conservadora do cenário atual. A ver quem banca o que nos próximos lances.
O sistema político gira em torno a si mesmo e, ainda que se mostrem significativas, as manifestações próximas não devem alterar muito a situação, em que grupos políticos e econômicos jogam seus jogos próprios e exclusivos (de olho ademais nos direitos consagrados pela Constituição de 1988, que no fundo são seu alvo a médio prazo). Sem o apoio da mídia e de grupos políticos fortes, protestos mais à direita tendem a não prosperar, enquanto que grande parte da esquerda se encontra atônita e emparedada, inclusive pela movimentação de Lula. Resta saber se mudanças de programa, blindagem de políticos, promoção de interesses empresariais contra a população e o meio ambiente não terão efeitos tão desmoralizantes para a democracia e sobretudo para as forças progressistas do país quanto tentativas mais diretas de virada de mesa institucional.
*Professor e pesquisador de Sociologia do Iesp/Uerj e pesquisador-associado ao CEE/Fiocruz