Drogas, legalização e descriminalização: desfazendo mitos
Às vésperas de entrar em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) o recurso que questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei nº 11.343), que fixa o porte de drogas como crime, cabe desfazer alguns mitos que envolvem o debate em torno da legalização e da descriminalização. A votação está prevista para a próxima quinta-feira, 13/8/2015, quando os ministros discutirão a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. O processo tramita no Supremo desde 2011.
Pelo artigo 28 da Lei de Drogas, comete crime aquele que "adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal". As penas não envolvem prisão, mas o acusado sofre todas as consequências de um processo penal e, se condenado, deixa de ser réu primário. Os defensores da descriminalização argumentam que impedir o indivíduo de portar droga para o uso próprio viola o princípio da intimidade e da vida privada, ferindo o que está expresso na Constituição.
No seminário Maconha: Usos, Políticas e Interfaces com a Saúde e Direitos, realizado em julho, no Rio de Janeiro, pela Fiocruz em parceria com a Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), uma conclusão foi unânime: o modelo repressivo às drogas produziu efeitos opostos àqueles a que se propunha. Em vez de preservar vidas, vem causando mais mortes do que poderia causar o consumo dessas substâncias. O caminho defendido por legisladores, gestores, estudiosos, pesquisadores, integrantes de movimentos sociais é o da legalização e da descriminalização, não só da cannabis, mas das outras drogas consideradas ilícitas. Um passo pode ser dado nesse sentido, com a votação da inconstitucionalidade do artigo 28.
Veja o que é preciso saber para desfazer alguns mitos e integrar esse coro (informações extraídas das exposições dos participantes do seminário Maconha: Usos, Políticas e Interfaces com a Saúde e Direitos).
1 – Não há evidências científicas de que o consumo de drogas aumentará e acarretará mais mortes, com a descriminalização.
2 – A violência decorrente da guerra às drogas mata muito mais do que o uso de drogas. Por conta da repressão às drogas morrem usuários, traficantes, policiais e aqueles que nada têm a ver com isso.
3 – Apesar da guerra e das mortes, o consumo e o tráfico nunca diminuíram. Desde a promulgação da Lei 11.343/2006, o comércio e o consumo de entorpecentes e o número de pessoas presas por tráfico vêm aumentando.
4 – Entre os consumidores adultos, somente uma parcela muito pequena faz o que se chama de uso problemático de drogas, com prejuízos à saúde.
5 – A classificação das drogas entre lícitas e ilícitas não obedece a qualquer evidência científica. Trata-se de critérios políticos ou, simplesmente, de falta de critérios. As drogas consideradas ilegais foram assim classificadas em uma convenção das Nações Unidas, em 1961, sem base na ciência.
6 – A maioria das drogas em circulação é legal (como exemplo, o tabaco, o álcool e medicamentos como a ritalina, os ansiolíticos e antidepressivos, entre outros). As drogas ilícitas são uma minoria.
7 – Descriminalizar o consumo é apenas um ponto de partida. A legalização e a regulação devem envolver também a produção e a comercialização. Na Holanda, onde o consumo é descriminalizado desde os anos 1970, a origem da droga não é regulada.
8 - Em Portugal, que descriminalizou o uso de todas as drogas, em 2001, estudos mostram que o consumo diminuiu justamente na faixa etária em que o consumo se inicia, dos 15 aos 24 anos.
9 – No Uruguai, onde, a partir de 2012, passou-se a regular todo o processo, da produção ao consumo, cerca de 3 mil pessoas já estão cultivando a cannabis e consumindo o que cultivam. Um dos efeitos da regulação é que menos dinheiro circula no narcotráfico, não foi registrado aumento do consumo de drogas e, entre adolescentes, o consumo caiu.
10 – Indicadores apontam que, em uma comparação com o álcool, este causa muito mais prejuízos, seja sobre a saúde do usuário, seja no que diz respeito à violência, doméstica, no trânsito, decorrente do seu uso.
11 – Há estudos buscando a utilização na cannabis como droga substituta para o álcool, nos casos de tratamento de alcoólicos, com menos danos, menor custo econômico e redução de índices de violência.
12 – A descriminalização e a legalização possibilitam controle do Estado sobre a oferta, a circulação e a qualidade do produto a ser consumido.
13 –A atual legislação brasileira não estabelece critérios objetivos para diferenciar usuário e traficante. A decisão fica, na prática, na mão do policial que faz a abordagem.
14 – Há um perfil preferencial de quem é considerado traficante – jovem, pobre, negro ou pardo – e um perfil preferencial dos que são tidos como usuários – brancos, de classe média, com maior poder aquisitivo.
15 – A maior parte das pessoas detidas por envolvimento com entorpecentes é flagrada sozinha e desarmada, tendo como única testemunha do caso o policial que faz a prisão e cuja palavra é valorizada pelo Judiciário.
16 – Na maior parte dos casos, ainda, a pessoa apreendida porta pequena quantidade de drogas.
17 – A atual política de drogas criminaliza a pobreza e deixa em último plano a promoção de políticas sociais de acesso a equipamentos educacionais, sanitários e de serviço social.
18 – A abordagem penal marginaliza pessoas que poderiam procurar auxílio se a aproximação se desse do ponto de vista social, caracterizando-se uma violação ao direito à informação, previsto na Constituição (art. 5º).