Dois ciclos (e uma transição difícil)
José Maurício Domingues analisa o momento pelo qual passa o país: fim de um longo ciclo, iniciado nos anos 1970, que culminou com o processo de modernização conservadora ao manter a grande propriedade e o poder de seus detentores, também marcado, em seus últimos estágios, por uma democratização significativa.
José Maurício Domingues*
Os períodos de transição na história dos países são sempre complexos, até mesmo confusos, difíceis de decifrar. O passado se dissolve aos poucos ou, mais raramente, de modo abrupto, e o futuro anuncia seus contornos apenas paulatinamente, inclusive porque sujeito à intervenção dos indivíduos e de coletividades que buscam impulsionar a transição em uma ou outra direção. Mas não podem controlar, mesmo quando poderosos, os resultados do processo de forma absoluta, movendo-se assim na cacofonia e intransparência típicas desse tipo de situação, para as quais eles mesmos contribuem.
O Brasil vive um momento como esse. Toca-nos assistir hoje ao fim de um longo ciclo, iniciado ainda nos anos 1970, que culminou o processo de modernização do país, “conservadora” ao manter a grande propriedade e o poder de seus detentores, mas que também foi marcado, em seus últimos estágios, por uma democratização significativa. Esta teve seu ápice na Constituinte de 1987-88 e na Constituição de 1988. Alguns querem ver na transição à democracia que teve lugar nos anos 1980 um processo pelo alto. A verdade é que uma ampla participação popular a impulsionou. Se o processo de fato encontrou ponto de passagem em negociações entre o regime ditatorial e as forças de oposição – como de resto ocorre em qualquer transição, a menos que feita de modo revolucionário – isso de modo algum impediu que a mobilização popular incidisse fortemente, ainda que sem alcançar tudo que se desejava, sobre o desenho das futuras instituições nacionais e dar lugar a uma projeção rica de futuro, com em especial a promessa de ampliar direitos sociais.
Esse ciclo se esgotou e apenas entrevemos o futuro na hora presente. Ele está condicionado, porém, pelos avanços do ciclo anterior e em particular pelos governos do PSDB e do PT que o concluíram, mas também por como essa nova transição transcorrerá e se completará.
Neoliberalismo e estabilização da vida econômica e política nacionais, no caso dos governos do PSDB, avanços sociais nos limites do social liberalismo, ensaio neodesenvolvimentista e chegada ao poder dos movimentos sociais, com pautas com frequência particularizantes, no caso do PT: eis os resultados fundamentais dos governos pós-transição democrática. O fim daquele ciclo foi acompanhado de uma grande passividade da sociedade brasileira, que reencontrou, de forma atabalhoada e bastante caótica, sua tradição de mobilização nas manifestações massivas de 2013.
O que temos hoje não é no imediato alvissareiro. O governo Dilma Rousseff vive uma crise permanente e muito possivelmente insuperável, que se arrasta desde seu início há poucos meses. A esquerda enfrenta uma crise ainda mais profunda, pois composta pela baixa renovação de seus quadros, a ausência de uma estratégia (a política se esgotando no taticismo crônico) e a falta de uma agenda concreta. Por seu turno, a oposição parece nada ter de substantivo para dizer ao país – mesmo porque sua política econômica foi sequestrada pelo governo e ela não ousa afirmar suas ambições mais amplas –, comportando-se em grande medida de modo aventureiro em uma situação que demanda inteligência e responsabilidade. O centro político inclinou-se para a direita no parlamento, embora a população em muitos aspectos de não comungue de muitas das decisões tomadas recentemente pela Câmara dos deputados (por exemplo, a questão do financiamento empresarial de campanha, que recusa), ainda que em outros casos a consonância seja real e lamentável (sobretudo quanto à redução da maioridade penal). Além do mais, a crise econômica ainda não teve os efeitos brutais que se espera para este segundo semestre, sendo que novas manifestações estão convocadas para agosto e setembro, sem que se possa antecipar sua dimensão e evolução nos próximos meses, tudo se complicando em função dos desdobramentos da operação Lava Jato.
A conjuntura vem assim, neste enorme clima de instabilidade, mudando quase semanalmente. A presidenta já pareceu mais frágil e vulnerável a tentativas de impeachment, em seguida o ambiente parecia desanuviar devido às limitações das manifestações contrárias ao governo e a partir das acusações contra o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e o presidente do Senado, Renan Calheiros. Nem por isso movimentos subterrâneos deixaram de ter lugar e agora, com a volta do recesso parlamentar, a nova prisão de José Dirceu e a visível tentativa de trazer o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva para o centro das investigações da Lava Jato, o clima volta a pesar. Às questões orçamentária de sua gestão anterior no TCU e eleitoral mais recente no STE, pendentes e que a oposição tenta instrumentalizar, se junta a popularidade cada vez mais baixa da presidenta para consolidar sua fragilidade.
Por outro lado, se o PSDB se viu inibido inicialmente, pois contava e conta com Cunha para operar sua política de impeachment em algum momento, voltou à carga, comandado por seu presidente Aécio Neves, que necessita pessoalmente de eleições no mais curto espaço possível de tempo para voltar a ser candidato. Parecia que o governo poderia se livrar de Cunha, personagem que o atormentou nos últimos meses, mas não parece provável que este venha a ser o caso. Além do mais, embora sua força tenha em parte se dissipado e corra o risco de ser afastado de seu cargo, ao aliar-se à oposição agora abertamente, Cunha pode mesmo fazer muitos estragos, relativos ao impeachment e mesmo a novas investigações por CPIs, das quais simplesmente exclui o PT.
Para os setores hoje alinhados com o conservadorismo liberal, em particular o PSDB, as alternativas giram em torno a três possibilidades. A primeira, patrocinada por Aécio Neves, seria o impeachment da presidenta e de seu vice Michel Temer. Isso não poderia assumir senão cunho golpista, em particular pelos argumentos esgrimidos, não obstante o precedente do afastamento de Fernando Collor nos anos 1990. Isso levaria a novas eleições imediatas, após breve período com o presidente da Câmara na presidência da república. A segunda, o afastamento apenas da presidenta, o que levaria ao reforço do poder do PMDB e eleições somente em 2018. Finalmente, a terceira, ao que parece a preferida de Geraldo Alckmin, governador de São Paulo e candidato a candidato em 2018, seria o desgaste contínuo do governo Rousseff, que provavelmente contribuiria para inviabilizar a candidatura de Lula (sem garantir, porém, a eleição de um quadro do PSDB). O parlamentarismo segue no ar, mas voando baixo.
Dilma mostra-se sem capacidade real de iniciativa, embora desfrute de algum refresco que o início do calvário de Cunha lhe proporciona (a reunião com os governadores lhe rendeu a superficial reiteração das prerrogativas políticas e institucionais presidenciais). Dizia-se que correria o país, restando saber que notícias positivas poderia dar à população. É Lula que realmente costura a linha de defesa do governo e do PT – e a esta altura dele próprio. Parece jogar em duas direções.
Por um lado, garantiu o controle total de seu próprio partido no congresso recentemente realizado, “passando o rodo” e esmagando sua ala esquerda (com a qual sabe contudo que contará se a onça beber água). Ao mesmo tempo, tentava negociar com o PMDB uma recomposição que o afastasse das tentações golpistas que Neves e setores do PSDB estimulam, além de buscar os empresários e tentar recompor os laços que o governo de Dilma rompeu. Tarefas difíceis. Com uma resolução não catastrófica d atual crise e o governo ao menos em parte se recuperando, Lula seria então candidato em 2018, a menos que a derrota se desenhe provável, caso no qual outro seria o candidato do PT – para perder com certa dignidade e tentar manter parte de seu eleitorado. Uma frente de movimentos ou algo assim lhe apoiaria, em parte escondendo o PT, cuja imagem está por definitivamente danificada. Isso tudo, claro, se as tentativas de imbricá-lo na Lava Jato não surtirem efeito. A esta altura, por outro lado, já não se pode saber qual seria a capacidade de mobilização da esquerda, petista ou não.
Por outro lado, Lula articula um frente de esquerda, neste momento com mais baixo perfil, pois caso a situação se deteriore e realmente venha o impeachment de Dilma e Temer, com uma nova eleição em curto prazo, poderia ser candidato do contragolpe, podendo contar com o apoio de grande parte da esquerda e de outras forças democráticas, já no primeiro e mais ainda em um segundo turno. A fluidez da conjuntura não permite dizer que seja cenário descartado. Outras correntes na esquerda articulam frentes semelhantes, mesmo se ainda não ficaram claros os objetivos que efetivamente perseguiriam e quem delas participaria. Pode tentar pessoalmente também se proteger com isso.
Obviamente, há outras forças que esperam que a crise avance e se decante, como Marina Silva, que em sua posição centrista e mantendo boa popularidade, recusa a política de impeachment. Possivelmente outros candidatos, menos institucionais, que se farão viáveis em um cenário de desgaste contínuo dos partidos e candidatos mais tradicionais da política brasileira. Nem a resolução da crise conjuntural favorável ao governo, a Lula e ao PT, nem um encaminhamento aparentemente benéfico para o PSDB, significam que a crise do próprio sistema político esteja superada. Partidos menores, como o PSB e a Rede, que podem compor um novo centro, ou que querem renovar a esquerda, como o PSOL, ainda se mostram débeis, pouco capazes de oferecer uma alternativa ao país. O sistema político segue girando em torno a suas próprias questões, embora sob a pressão do judiciário. As ruas ou o voto mais adiante voltarão, todavia, a pesar na definição dos rumos do país.
É nessas coordenadas que um novo ciclo se iniciará na história do Brasil. Ele pode vir de forma mais virtuosa, com novas agendas e, finalmente, mais participação popular, o que depende também da renovação do tecido associativo da vida nacional, num processo que se desdobra no longo prazo. Ou pode acabar reproduzindo fundamentalmente a patente perversidade do sistema político institucionalizado, até porque se vê pouca renovação, seja dos partidos, das instituições ou na organização da sociedade. Se for este o caso, qualquer cenário será ruim. Em um deles mesmo que a economia volte a crescer, ainda que somente em 2018, e o consumo coopte grandes parcelas da população, com avanços marginais nas políticas sociais e a reiteração de nossas incapacidades industriais e tecnológicas, novas crises estarão à espreita. Em outro, poderemos estar em um quadro de regressão pela reversão de políticas sociais, em especial em termos da relação salarial e dos direitos constitucionais. Sem um longo prazo mais substantivo, teríamos poucas razões para comemorar, pois seria um declínio e deterioração geral da política o que se verificaria. Se o novo não nasce e desloca o velho, este contamina o ambiente e pode produzir-lhe danos cada vez mais significativos. Há outros cenários possíveis? Quem pode hoje verdadeiramente portar o novo?
*Professor e pesquisador de Sociologia do Iesp/Uerj e pesquisador-associado ao CEE/Fiocruz