A queda da gerontocracia cleptocrata e a revolução democrático-liberal no Brasil
O ciclo democratizador que se iniciou na década de 1970 e se fechou no início dos anos 2000 não foi capaz de dar fim ao neopatrimonialismo – a corrupção é seu outro nome – que assola o Estado brasileiro. Ao que tudo indica, ele cresceu e distorceu as mínimas práticas e regras democráticas de nosso sistema político formal. São hoje homens velhos que governam hoje o Brasil – uma gerontocracia de fato, embora alguns velhos mais jovens figurem nela com destaque, aprofundando as taras do sistema. Uma gerontocracia de cleptocratas e mesmo cleptômanos.
Tem lugar neste momento, porém, uma verdadeira revolução democrático-liberal, na qual o Judiciário, com cada vez mais apoio popular, tem papel decisivo. Desmancha-se um sistema político estatal podre e que não foi capaz – em parte por suas desavenças internas, em parte pela ascensão dos órgãos de controle definidos pela Constituição de 1988, sobretudo o Ministério Público e a Polícia Federal – de frear o ímpeto moralizador do Judiciário. Felizmente. Lamentavelmente grande parte da esquerda partidária está envolvida nas práticas e é parte da gerontocracia cleptocrata, que tenta sobreviver e seguir mandando a todo custo. Uma parte do sistema político joga em reformas neoliberais, exigidas pelo grande empresariado como condição de seu apoio, outra parte fala nos pobres e contra essas reformas, mas recusa-se a assumir uma autocrítica minimamente efetiva.
O que houve, como chegamos a este ponto? Como se construiu um sistema político tão corrupto e afastado da população, o que incluiu mesmo setores políticos societais que se mostraram cegos para o que se passava ou acabaram disso participando? O financiamento empresarial de campanha foi certamente decisivo, aprovado no governo de Fernando Henrique Cardoso, mas a adaptação de Lula da Silva e do PT a esse mundo político importa também muito, pois ele deixou de ser o que poderia pôr o sistema em cheque. Pelo Ministério Público e o Judiciário o ataque foi finalmente desferido, atingindo agora o coração Michel Temer e seu governo.
O que houve, como chegamos a este ponto? Como se construiu um sistema político tão corrupto e afastado da população, o que incluiu mesmo setores políticos societais que se mostraram cegos para o que se passava ou acabaram disso participando?
Os setores conservadores tentam bloquear a renovação e tentarão de tudo para apressar a saída de Temer (no tempo que lhes convém), elegendo um tapa-buraco indiretamente por um Congresso putrefato e desmoralizado. Dificilmente isso dará certo, pois a população rechaça essa saída e quer eleições diretas já. O risco de uma explosão maior que a de junho de 2013 é real e brinca com fogo quem não reconhece isso. Por ora, o exército somente observa. Mas até quando? Seja como for, o Brasil retoma, de maneira diferente e menos controlada, o processo de democratização que parecia estancado e retrocedia. O futuro não está garantido em seus aspectos positivos e pagaremos um preço econômico e social alto por um tempo ainda por conta do caos que tende a se estabelecer no curto e talvez no médio prazo. A mudança tende de todo a ser para melhor no fim do processo, o que ainda está longe de ocorrer. Um novo ciclo político se iniciou e nele a visão liberal, marcadamente democrática neste caso, tem centralidade. Ela se conecta claramente com o republicanismo neste momento e por isso mesmo tem de ser apoiada. Pode mesmo desenvolver-se, se ajudada, em direção de direitos mais amplos e com perspectiva decisivamente progressista.
Seja como for, o Brasil retoma, de maneira diferente e menos controlada, o processo de democratização que parecia estancado e retrocedia
É isso que o conjunto da esquerda tem que entender, deixando para trás suas velhas peles e a vitimização que uma parte dela (não apenas no PT) insiste em cultivar, interessadamente por vezes, com ingenuidade e um marxismo limitado, por outras. O PSDB e o PMDB virarão suco, outros podem seguir pelo mesmo caminho se não acordarem a tempo. Seja como for, a renovação virá, pela Rede, pelo PSOL, talvez por setores que não eram centrais nos aparelhos de seus partidos, que os precisam renovar. É nisso que precisamos apostar.
José Maurício Domingues é professor do IESP-UERJ e pesquisador associado ao CEE Fiocruz, autor de Esquerda: crise e futuro (Mauad, 2017).