Salo de Carvalho defende mudança na cultura judicial: ‘O problema é a descarcerização mental’
Quando se trata da temática das drogas, a intervenção jurídica é “trágica” e torna-se um entrave à condução saudável do problema. Com essa avaliação o advogado e professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro Salo de Carvalho, abriu a palestra Política de drogas e encarceramento no Brasil, da série Futuros do Brasil, realizada pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz (CEE-Fiocruz), em parceria do Centro de Estudos Giuliano de Oliveira Suassuna, do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural (DIHS/Ensp), em 30/3/2017. “Estamos há três décadas operando em cima da mesma política punitivista, sem obter nenhum dos efeitos a que ela política se propôs”, observou Salo. “Nós, os juristas, só atrapalhamos, com esses temas que deveriam ser exclusivamente da saúde pública, atravessados em determinados momentos, pelo Direito Penal”.
Para Salo de Carvalho, pensar uma alternativa ao modelo de guerra às drogas é algo cuja urgência já foi ultrapassada, “não é algo para amanhã, é algo para ontem”. Ele propôs, ampliar o discurso por uma política de drogas efetiva, sem intervenção jurídica, pautada pelos direitos humanos e pela saúde pública, de modo a quebrar “o ciclo vicioso em que nós ingressamos”, que tem como efeito um encarceramento que chega a níveis insustentáveis. “No Brasil, encarceramos muito e encarceramos muito mal. Gastamos muito dinheiro para tornar as pessoas piores”, considerou.
O professor observou que a representação que a sociedade civil tem do tráfico não espelha o que a legislação criminal trata como “tráfico de entorpecentes”, isso gera uma lacuna discursiva que as pessoas falam sobre a mesma categoria, mas falam de coisas distintas”.
No Brasil, encarceramos muito e encarceramos muito mal
Apresentando dados oficiais relacionados ao encarceramento no Brasil nos últimos 14 anos, Salo destacou que, no ano 2000, havia 232 mil pessoas presas no Brasil, e, em 2014, último ano em que foi publicado o relatório penitenciário, o número subiu para 622 mil, e deve estar, hoje, em cerca de 650 mil. Ele explicou que antes de 2000 não existiam dados anuais oficiais sobre encarceramento no país. Ainda assim, a partir de de determinados cálculos, foi possível verificar que, em 1994, o número era estimado em 150 mil. “É difícil pensar em políticas públicas para essa área se sequer a gente sabe o número de pessoas que estão encarceradas. Isso nos fala da carência de uma análise mais sofisticada do problema, de como as políticas na área não têm continuidade e se dão muito mais com base em inspirações, muitas vezes, trágicas, do que efetivamente em dados concretos”, analisa, acrescentando que os dados disponíveis não são dinâmicos, isto é, não levam em conta a circulação de pessoas nos presídios anualmente. “Se uma pessoa for presa agora e sair da prisão em novembro, não vai constar nos dados de encarceramento oficias”.
Salo contestou o discurso da impunidade recorrente no país. “A qualidade de nosso encarceramento é péssima, mas nós encarceramos”. Pelos dados disponíveis, pondera, é possível concluir que, “bem ou mal, nossas instituições punitivas estão funcionando, a polícia está prendendo, o Ministério Público está denunciando, o Judiciário está condenando e mantendo as pessoas presas, os tribunais estão mantendo essas decisões de primeiro grau, e o STJ e STF estão mantendo as decisões dos tribunais, que, por sua vez, mantêm a decisões dos juízes”.
A qualidade de nosso encarceramento é péssima, mas nós encarceramos
O professor destacou, ainda, que 20% da população carcerária nacional estão presos por delitos sem violência, tais como furtos e crimes patrimoniais. “São 150 mil pessoas que não precisariam estar encarceradas, porque existem outras opções de punição. Daria para converter essas penas restritivas de liberdade, em penas restritivas de direito, em penas cautelares, mas optamos pelo modelo político-criminal do encarceramento”, apontou, informando ainda que o encarceramento feminino ultrapassa 60% e que encarceramos mais mulheres do que homens, pelo crime de drogas. “E mais grave ainda, encarceramos hoje mais adolescentes do que adultos. Em 2011, tínhamos nove adultos para um adolescente. Em 2015, a proporção passou a três para um”.
Salo observa que o quadro encarcerador no Brasil, em especial no que diz respeito às delegacias especializadas, não reflete os índices criminais do país, e sim a política criminal, que acaba por determinar o que é relevante. “Temos em todo o Brasil inúmeras delegacias especializadas. Por que temos delegacia de roubos e furtos de cargas? Há determinados estados da federação com mais delegacias especializadas em drogas do que em homicídio. No entanto, só 10% dos homicídios são resolvidos no país. As delegacias especializadas em homicídio seriam chave contra a violência”.
O Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Nos últimos dez anos, encarceramos proporcionalmente mais que os Estados Unidos, um dos países que mais encarceram
Citando dado do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Salo destacou que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. “Nos últimos dez anos encarceramos proporcionalmente mais que os Estados Unidos, é um dos países que mais encarceram no mundo”.
Ao tratar de modelos alternativos de pena, o professor apresentou a diferença entre pena alternativa e medida alternativa. Pela pena alternativa, o sujeito não deixa de ser condenado, apenas recebe uma pena substitutiva ao encarceramento. A medida alternativa não pressupõe processo, condenação e absolvição e, em alguns casos pode se traduzir em prestação de serviço à comunidade. Nem uma nem outra, no entanto, explicou Salo, fizeram efeito no Brasil, uma vez que a curva de encarceramento nacional seguiu crescendo. “As penas e medidas alternativas no Brasil foram alternativas à liberdade e não a prisão. Os juízes continuaram encarcerando por força da cultura punitivista quem eles sempre encarceraram”.
O professor observou que o público-alvo do sistema penal continua o mesmo. “Existem estudos que atestam a ocorrência de extermínio da população pobre e negra, legitimado por essa lógica punitivista do Judiciário. Cabe às instituições, incluindo o Judiciário, produzir um contra-efeito a esses sistemas, deslegitimando-os”. Para Salo, a estrutura normativa do país permite a descarcerização. “O problema não é a descarcerização legal, é a descarcerização mental. Precisamos, sobretudo, de uma mudança da cultura judicial”, afirma.
O público-alvo do sistema penal continua o mesmo. “Existem estudos que atestam a ocorrência de extermínio da população pobre e negra, legitimado por essa lógica punitivista do Judiciário
Salo também fez uma crítica à Lei nº 11.343/2006 [Lei de Drogas] e à sua funcionalidade, estabelecendo uma comparação entre os artigos 28 e 33. O artigo 28 regula o porte e consumo de drogas e a pena não prevê privação de liberdade, mostrando-se a menor resposta punitiva na legislação penal brasileira; o artigo 33, que trata do tráfico, em contrapartida, é a maior resposta punitiva, prevendo pena de cinco a 15 anos. No entanto, as cinco ações passíveis de pena descritas no artigo 28 – adquirir, guardar, ter em depósito, transportar ou trazer consigo [para consumo pessoal] – estão também citadas no artigo 33, a não ser pela especificidade de se tratar de consumo pessoal. “Quais os indícios externos para isso? Circunstâncias sociais e pessoas e os antecedentes. Mesmo no caso de um policial de boa-fé, embriagado pela política punitivista, não fica difícil saber quem vai ser imputado como traficante”.
Ele defende uma alteração legislativa, mesmo que ainda na lógica proibicionista, para dar conta dos vácuos que facilitam não só o punitivismo como uma violência estrutural. “Temos na experiência ocidental textos legislativos de vários países que contemplam modalidades de tráfico, com penas distintas. Isso estabelece variações na incriminação, tetos, patamares razoáveis”, propôs, declarando-se ao final da palestra favorável “à ampla legalização e à descriminalização não só do consumo, como da produção, distribuição e venda de drogas. Para Salo de Carvalho a intervenção punitiva na área da saúde interdita as pessoas em seu acesso ao sistema de saúde. “Ou seja, o direito penal não resolve o problema, o direito penal é um problema em si”. (Daiane Batista/CEE-Fiocruz)