Na mesma toada da crise – mesmos acordes, mas vozes mais nítidas
Depois de um janeiro e fevereiro que vagamente se assemelharam à normalidade, o mês de março evidenciou o aprofundamento da crise nacional. Boa hora para voltar a olhar a conjuntura, cujos contornos não mudaram, mas aos poucos se decantam.
Se a economia parece estar estabilizada – muito por baixo –, o desemprego cresceu mais, atingindo 13,5 milhões de pessoas. A operação Lava-Jato, apesar da mui tempestiva morte de seu relator, Teori Zavascki, e de alguns passos em falso, retoma sua força. Se tudo indica que Lula, Dilma e o PT, bem como mais uma vez o PMDB, em especial o presidente e seus ministros, constam das delações da Odebrecht, o PSDB foi finalmente lançado no olho do furacão pela Procuradoria Geral da República, segundo os pedidos de investigações enviados por Rodrigo Janot ao STF. Aécio Neves, José Serra e Geraldo Alkmin confrontam o precipício. O desespero é visível entre os políticos em Brasília, enquanto no Rio de Janeiro a extensão da pilhagem do Estado realizada pelos ocupantes do sistema político e seus comparsas (empresas e setores do judiciário) se mostra pior do que qualquer um poderia imaginar.
Em outros estados o Judiciário desvenda outros esquemas também brutais, embora dificilmente comparáveis à selvageria praticada naquele estado, cuja população paga preço amargo por ter vivido sob essa quadrilha e agora sofre ainda mais a chantagem de Temer e seu ministro da Fazenda. Mais que nunca fica claro como a corrupção distorce não apenas o sistema político, mas também as próprias decisões de investimento, arrecadação e gastos do Estado. Ao mesmo tempo avança o processo de cassação da chapa Dilma-Temer no STE, tortuosamente.
Terrível segue sendo, aguçada até, neste momento de crise e desgoverno, a bestialidade que se abate sobre pretos e brancos quase pretos de tão pobres e outros que com eles compartilham a sina de fazer parte das classes populares. Isso se evidencia com requintes de desfaçatez e crueldade no Rio de Janeiro de assassinatos cotidianos pelo Estado, mas se expressa por outro lado em uma crise prisional aguda, em um país que encera muito – e mal: pequenos traficantes, jovens e mulheres, sobretudo.
Os protestos contra as medidas de Temer têm se mostrado mais fortes recentemente, mas, afora o desmoronamento da base do governo no Congresso – algo não impossível, vide a defecção do astutíssimo senador Renan Calheiros –, ele seguirá honrando (sic) seu compromisso com o empresariado e a mídia que o ajudaram a chegar mediante um golpe parlamentar à Presidência e o sustentam. Caso caia, um arreglo com figuras como Nelson Jobim, costurando do PMDB e o DEM ao PT, é possível, via eleição indireta. Neutralizar-se-iam os impulsos mais neoliberais de Temer e se empurraria o país com a barriga rumo a 2018. Observe-se que, ao mesmo tempo em que a esquerda tenta sair do isolamento e superar minimamente sua desmoralização – com os jovens vindo para a militância em diversas correntes e partidos, algo que é indubitavelmente fruto de junho de 2013 –, Lula e a ala majoritária do PT seguem discretamente as articulações para a retomada da aliança com o PMDB. Visam inclusive às eleições de 2018.
Aliás, se fala já demasiado dessas eleições, como se os candidatos disponíveis fossem aqueles que realmente importarão, inclusive com factoides como Doria e como se a popularidade de Lula – real, mas fruto também de continuada exposição – lhe garantisse uma óbvia eleição. Muitos dos possíveis candidatos sequer se puseram, e muita água correrá por debaixo da ponte até lá, outros são fortíssimos e provavelmente favoritos, mas aparentemente não se decidiram por lançar-se.
Na verdade, por ora o processo é ainda de desagregação, na direita, no centro e na esquerda, o próprio PT se segurando somente com uma unidade em torno à figura de Lula, que terá de encontrar força e argumentos, cada vez mais difíceis, para justificar suas reais opções políticas. Afinal, uma coisa é aproveitar as brechas que as tensões no governo produzem e jogar em suas contradições para fustigá-lo. Bem diferente é apostar – aberta ou veladamente – na retomada da aliança com o PMDB, o que não poderá senão produzir confusão no partido, como as reações à entrevista conciliatória do senador Humberto Costa à revista Veja demonstraram. O PMDB, de resto, manterá força relativa, sobretudo no interior, mas sairá infinitamente menor das próximas eleições, em particular, mas não somente no Rio de Janeiro e outras grandes cidades.
Outras agremiações emergirão do processo de reorganização e renovação do sistema político que inevitavelmente se articula ao início de mais um ciclo, cuja duração e conteúdo ainda não é possível prever. Pelo andar da carruagem, o que desponta no horizonte, muito mais que o espantalho do fascismo que muitos gostam de utilizar para justificar sua verborragia vazia, é um liberalismo inclinado à centro-esquerda o que desponta em médio prazo ao menos. Ele deverá se apoiar nas classes médias, sempre influentes, a despeito de ilusões petistas recentes, e em um novo e jovem proletariado que se torna cada vez mais relevante no setor de serviços do país, o qual, por seus vínculos com os setores mais empobrecidos da população, terá capacidade significativa de influenciar a política. Goste-se ou não, o tema da corrupção, mesclado ou não ao dos direitos e do aprofundamento da democracia – que precisam ser sintetizados em uma nova pauta da esquerda –, estará no centro da agenda de médio prazo desse novo ciclo político.
Seguimos entrementes navegando no meio do nevoeiro que os fins dos ciclos democratizador aberto em meados dos anos 80, de hegemonia do PT na esquerda e dos governos petistas nos impuseram, tudo simultaneamente. Uma renovação virá, em todos os quadrantes. Resta saber, ainda e mais uma vez, se a esquerda terá lucidez para dela ser parte e renovar suas alianças, apostando que o país quer alterar seu rumo, sem que ela tenha força para conduzir, sozinha essas mudanças. Ou se o isolamento. Ou, ainda mais, se preferirá voltar às escolhas em que quase sua parte majoritária cortejou seu holocausto. Tudo depende de nossa capacidade de entendimento e lucidez política, não do destino cego.
* Professor e pesquisador de Sociologia do Iesp/Uerj e pesquisador-associado ao CEE/Fiocruz; autor do livro O Brasil entre o presente e o futuro (Mauad, 2015, 2ª edição).