Célia Landmann: ‘É necessário avaliar e dimensionar as diferenças da situação de saúde em uma sociedade’
Do Observatório de Análise Política em Saúde
A edição especial do International Journal for Equity in Health sobre as desigualdades em saúde no Brasil e a importância da realização de inquéritos populacionais em saúde no país são temas da entrevista do mês de fevereiro do Observatório de Análise Política em Saúde (OAPS) com Célia Landmann Szwarcwald. A doutora em Saúde Pública, que fez graduação e mestrado na área de matemática e estatística, destaca dados da publicação científica, que apresenta um panorama de contrastes no país, e a insuficiência na análise das informações oriundas de inquéritos. “As informações ainda são pouco trabalhadas e subsidiam, insatisfatoriamente, a formulação de políticas públicas”.
Diante do cenário imposto pela PEC 55 e o consequente agravamento do subfinanciamento do SUS, a pesquisadora ressalta o papel exercido pela pobreza e como a desigualdade reflete na deterioração das condições de saúde: “Os moradores de comunidades carentes têm de enfrentar as consequências sociais de viver em um ambiente onde os seus vizinhos são igualmente pobres, padecem de males semelhantes e têm as mesmas demandas por serviços de natureza diversa. Os efeitos sobre a saúde refletem a agregação de formas acumuladas de desvantagens sociais, intensificadas pela exposição ampliada às doenças infecciosas”.
Para Célia, que também fala sobre políticas públicas de prevenção e de tratamento às pessoas com HIV/Aids no Brasil, é importante que os estudos levem em conta os determinantes sociais em saúde.
O blog do CEE-Fiocruz reproduz a entrevista, abaixo. Confira.
Ao lado de James Macinko, você foi editora da edição especial do International Journal for Equity in Health, que apresenta um panorama das desigualdades em saúde no Brasil e mostra o papel das condições sociais nesse quadro. Por que é importante estudar os determinantes sociais em saúde e quais as consequências de não considerá-los?
A importância de estudar e caracterizar as desigualdades em saúde está em avaliar e dimensionar as diferenças da situação de saúde em uma sociedade, etapas consideradas indispensáveis à formulação de políticas dirigidas à superação da exclusão social e à implementação de ações baseadas em evidências empíricas e passíveis de execução. O principal argumento para a redução das desigualdades da saúde baseia-se no princípio de equidade, que incorpora a dimensão de justiça social. Conforme conceituado por Whitehead ainda na década de 1990, a equidade em saúde representa proporcionar a todos os indivíduos da sociedade a justa oportunidade de atingir todo o seu potencial de saúde. Entretanto, embora a meta de redução das desigualdades em saúde seja alicerçada nos fundamentos de justiça social, teorias de justiça não se traduzem, necessariamente, em ações concretas de redução destas desigualdades. Desde os anos 90, a determinação social da saúde vem sendo uma grande preocupação de organismos internacionais, particularmente da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em vários países desenvolvidos, a equidade em saúde é, atualmente, considerada como um componente fundamental de avaliação do sistema de saúde. As ações e os programas de saúde são avaliados quanto ao seu desempenho em reduzir os efeitos dos determinantes sociais da saúde, considerados como os fatores socioeconômicos, demográficos, culturais, comportamentais e ambientais que influenciam a saúde. O estudo das desigualdades permite identificar os subgrupos populacionais aos quais devem ser dirigidas as intervenções e como as ações podem provocar maior impacto, contribuindo para elevar os níveis médios do estado de saúde da população como um todo. Por outro lado, as consequências de não considerar os determinantes sociais vão além do desfavorecimento da população de pior nível socioeconômico. Se as intervenções atingem apenas aqueles de melhores condições sociais, há aumentos nas disparidades em saúde, que são prejudiciais a todos os membros da sociedade, não se restringindo aos segmentos menos privilegiados.
Em vários países desenvolvidos, a equidade em saúde é, atualmente, considerada como um componente fundamental de avaliação do sistema de saúde
O contexto brasileiro torna o estudo dos determinantes sociais em saúde ainda mais necessário?
Reconhecidamente, o Brasil é um país de contrastes, com grandes desigualdades sociais e enormes disparidades na distribuição de renda. A falta de equidade social manifesta-se tanto nos diferenciais encontrados nas taxas de morbi-mortalidade, no adoecimento mais precoce das camadas menos favorecidas, como também no acesso e utilização dos serviços de saúde. As desigualdades se expressam, igualmente, no padrão geográfico de saúde, seja no persistente gradiente Norte-Sul, nas diferenças de acesso aos recursos de saúde entre os moradores dos grandes e pequenos municípios, ou nas condições de saúde da população residente em áreas de extrema pobreza, como as favelas das metrópoles brasileiras. Nos últimos trinta anos, o Brasil vivenciou transformações intensas em termos de desenvolvimento socioeconômico, urbanização e assistência de saúde. A ampliação do acesso à infraestrutura urbana e a melhora no nível geral de educação mostraram impacto importante na situação de saúde. Nos anos 2000, os programas de transferência de renda resultaram no aumento da renda média, que, acompanhado de melhoras na distribuição de renda, acarretaram, por sua vez, a redução das desigualdades em saúde. Em termos de assistência em saúde, o país evoluiu para o Sistema Único de Saúde, com profundas modificações nas políticas de assistência.
Nos últimos trinta anos, o Brasil vivenciou transformações intensas em termos de desenvolvimento socioeconômico, urbanização e assistência de saúde
Na década de 1990, as intervenções foram redirecionadas, investindo-se, particularmente, nas ações básicas de saúde, em estratégia dirigida à superação da exclusão social. Um conjunto de programas foi formulado pelo Ministério da Saúde (MS) com foco na expansão da cobertura da atenção primária por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), sendo estabelecido um direcionamento geográfico da atenção às áreas e aos subgrupos populacionais mais pobres, resultando na ampliação do acesso aos serviços de saúde pela população carente. Por meio de uma combinação de políticas públicas e de assistência de saúde, o acesso à assistência médica melhorou significativamente para uma ampla camada da população brasileira. Contudo, os benefícios do progresso social ainda não são experimentados de forma equitativa pela população brasileira e o SUS carece, ainda hoje, de mecanismos, de fato, eficientes, de modo a fazer com que determinados serviços, disponíveis em municípios de maior porte, possam se tornar também acessíveis à população residente em municípios de menor porte e de pior nível socioeconômico. No atual cenário brasileiro, é essencial dar continuidade às análises das desigualdades sociais em saúde, de modo a acompanhar as tendências dos determinantes sociais em saúde no país e contribuir para a formulação de políticas públicas de redução das desigualdades no âmbito do setor saúde, por meio de iniciativas objetivas e exequíveis, ainda que em contexto de restrição orçamentária.
Um total de 14 artigos e três comentários que abordam temas relacionados ao acesso e à utilização de serviços de saúde, doenças crônicas, saúde materna, saúde mental e violência, entre outros, fazem parte do panorama apresentado pelo ‘International Journal for Equity in Health’ (IJEqH). De forma geral, que cenário os artigos apresentam? Algum achado dessa produção te surpreendeu, de forma positiva ou negativa, ou você destacaria como fundamental para pensar políticas públicas futuras?
De uma forma geral, os artigos apresentados no suplemento do IJEqH mostram os avanços alcançados na redução das desigualdades no estado de saúde e no acesso à assistência em saúde, mas destacam, igualmente, aspectos importantes que permanecem como desafios a serem superados. No que se refere ao estado de saúde, os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em 2013, revelaram proporção alta (66%) de percepção boa da própria saúde, bem maior que a proporção observada em 2003 pela Pesquisa Mundial de Saúde (53%). Tendo em vista o envelhecimento da população brasileira e o crescimento expressivo das doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), esse resultado é surpreendente. Uma provável explicação para o aumento na proporção de brasileiros que avalia sua saúde como muito boa ou boa está na melhora na qualidade de vida da população brasileira em termos das condições socioeconômicas e da assistência em saúde. Todavia, ao se considerar o indicador denominado de esperança de vida saudável, que estima o número esperado de “anos saudáveis” para os indivíduos de uma população em uma determinada idade, foram encontradas grandes disparidades por região geográfica, com os piores indicadores nas regiões mais desfavorecidas socialmente.
Na situação de necessidade de ajuda, a proporção de idosos ricos que receberam cuidados formais foi duas vezes maior que a encontrada entre os idosos pobres, que tiveram que contar, em geral, com cuidados informais de familiares e amigos
Estudo enfocando a população idosa mostrou limitações funcionais em 30% dos brasileiros de 60 anos ou mais de idade, com um quarto dos idosos precisando de ajuda para realizar pelo menos uma atividade de vida diária, como se alimentar, tomar banho, ir ao banheiro, se vestir, andar pelo quarto ou sala, se levantar da cama. Os idosos de melhor nível socioeconômico relataram menos necessidade de ajuda. Na situação de necessidade de ajuda, a proporção de idosos ricos que receberam cuidados formais foi duas vezes maior que a encontrada entre os idosos pobres, que tiveram que contar, em geral, com cuidados informais de familiares e amigos. Os estudos dirigidos às DCNT mostraram que um em cada dois idosos tem o diagnóstico de pelo menos uma DCNT. Foram evidenciadas desigualdades significativas por nível de instrução, com maior prevalência de alguma doença crônica e maior grau de limitação consequente à doença entre os indivíduos com ensino fundamental incompleto. Foram observados avanços na diminuição das desigualdades por grau de escolaridade nas prevalências de hipertensão e doença do coração no período 1998-2013, porém a disparidade na prevalência de diabetes não diminuiu. Ao contrário, mostrou tendência crescente, com indivíduos não escolarizados apresentando prevalência de duas a três vezes maior do que aqueles com melhor nível educacional, em 2013. Apesar dos esforços recentes dirigidos à promoção dos comportamentos saudáveis na atenção básica, os achados da PNS mostraram desigualdades importantes nos comportamentos saudáveis, com maior prevalência de fumo, menor frequência de atividade física no lazer e maior sedentarismo, consumo de leite integral e baixa ingestão de vegetais, legumes e frutas entre os indivíduos com baixo nível de instrução, não brancos, e que não possuem plano de saúde. Os resultados da PNS que merecem destaque referem-se aos progressos alcançados na assistência de saúde materno-infantil. As coberturas de quatro ou mais consultas de atendimento pré-natal e de parto hospitalar alcançaram valores maiores do que 90% e a prevalência de uso de contraceptivos atingiu 83%, resultados esses considerados excelentes. Houve também redução das disparidades por nível socioeconômico para todas as intervenções consideradas. Já em relação à cobertura dos exames preventivos de câncer cervical e de mama na população feminina brasileira, evidenciouse uma melhor cobertura do exame Papanicolau (78,8%) do que da mamografia (54,5%). Nítidas desigualdades de acesso foram encontradas, com maiores proporções de realização dos exames entre mulheres residentes nas regiões mais desenvolvidas, Sul e Sudeste. No tocante às desigualdades na utilização dos serviços de saúde, comparativamente aos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2008, mostrou-se aumento na proporção de pessoas que se consultaram com médico e com dentista, enquanto a proporção de internações hospitalares decresceu. Em 2013, a desigualdade por nível socioeconômico na proporção de consultas médicas e odontológicas aumentou, em favorecimento dos mais ricos, tendo como fatores associados o grau de instrução, um indicador de riqueza, e a posse de plano de saúde. A necessidade de assistência, entretanto, foi um fator determinante da utilização de serviços, independentemente de uso de serviços do SUS ou privados. A análise sobre a procura usual de um serviço de saúde quando o indivíduo está doente ou precisa de assistência de saúde mostrou percentual elevado (74,4%), com mais de um terço dos usuários respondendo que procura, usualmente, a atenção básica quanto tem um problema de saúde. A i n d a n o q u e s e re fe re à u t i l i z a çã o d o s s e r v i ço s de saúde, considero que o resultado negativo mais impressionante foi obtido a partir da associação entre o nível socioeconômico (NSE) e um desfecho de subutilização do sistema de saúde, composto pelos indivíduos que nunca foram ao médico, nunca se consultaram com dentista, nunca mediram a pressão arterial, e nunca se testaram quanto à glicemia no sangue. O estudo mostrou que apenas 2,8% são classificados na classe de pior NSE (classe E), mas 44% desses subutilizam o sistema de saúde. Em contraste, na classe de melhor NSE (A), foram classificados 3,8% de indivíduos, mas somente 2,8% desses subutilizam o sistema de saúde. Esperamos, portanto, que os resultados apresentados no suplemento do IJEqH chamem à atenção para os avanços conseguidos e levem os brasileiros a dar a devida valorização ao SUS, como também apontem para a necessidade do investimento contínuo em criar uma sociedade mais justa em benefício do bem-estar da totalidade da população.
Os resultados da PNS que merecem destaque referem-se aos progressos alcançados na assistência de saúde materno-infantil
A edição especial do ‘International Journal for Equity in Health’ usa dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) 2013, da qual você foi coordenadora. Tendo em vista a necessidade de avaliar as condições de saúde da população, os determinantes sociais, o acesso à saúde e o desempenho do sistema de saúde, a realização de inquéritos populacionais no Brasil atende a necessidade do país?
Os inquéritos populacionais de saúde vêm sendo utilizados de forma crescente não só para avaliar o funcionamento da assistência de saúde do ponto de vista do usuário, mas também como meio de se obter informações sobre a morbidade referida e os estilos de vida saudáveis. Repetidos com determinada periodicidade, os inquéritos permitem consolidar as informações coletadas como uma base de referência populacional para o estabelecimento da vigilância de várias doenças crônicas e seus determinantes. Nos países desenvolvidos, os inquéritos de base populacional são utilizados desde a década de 1960, enquanto nos países em desenvolvimento, a aplicação de inquéritos para avaliação das políticas públicas é uma prática mais recente. No caso do Brasil, o Ministério da Saúde (MS) tem feito investimentos substanciais na área, a partir dos anos 90, tais como o financiamento do Suplemento Saúde da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) em 1998, 2003 e 2008. No âmbito da Secretaria de Vigilância em Saúde, o MS tem coordenado a construção e a implantação de um sistema de vigilância específico para as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), de modo a se apropriar da magnitude e fatores de risco associados, bem como acompanhar as tendências sócio-espaciais ao longo do tempo, por meio de outras pesquisas, como o Vigitel [ Vigilância de fatores de risco e proteção para doenças crônicas por Inquérito Telefônico] e a Pense[Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar]. Outros inquéritos nacionais de base domiciliar são a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) e a Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS). Em 2013, foi realizada a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), em projeto conjunto do Ministério da Saúde, Fiocruz e IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A pesquisa faz parte do Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares do IBGE, mas foi independente da PNAD. Com desenho próprio, elaborado, especificamente, para coletar informações de saúde, a PNS foi planejada para a estimação de vários indicadores em diferentes níveis de desagregação geográfica e para assegurar a continuidade no monitoramento da grande maioria dos indicadores do Suplemento Saúde da PNAD, mantendo-se assim, a série histórica de 1998, 2003 e 2008.
A comunidade científica brasileira se apropriou, gradualmente, da metodologia de inquéritos, seja na elaboração dos desenhos amostrais, no desenvolvimento dos questionários e na análise dos resultados
Um avanço importante da PNS foi a possibilidade de aprofundamento do questionário de saúde. Dentre os novos módulos, destaca-se o de morbidade referida, que em conjunto com as medidas antropométricas, de pressão arterial e exames laboratoriais, possibilitou dimensionar o acesso ao diagnóstico e à assistência prestada às doenças crônicas, com maior detalhamento para hipertensão arterial, diabetes e depressão. Outra parte do questionário que foi aprimorada na PNS foi o módulo sobre estilos de vida. Incorporando questões do Vigitel, teve a vantagem de suprir informações para monitorar os comportamentos saudáveis e avaliar o desempenho das ações de promoção da saúde para o Brasil como um todo, e não apenas para as capitais das Unidades da Federação. A aferição de pressão arterial, peso, altura e perímetro abdominal, e a coleta nos domicílios de amostras biológicas para realização de exames complementares trouxeram novas informações, possibilitando aprofundar o conhecimento de graves problemas que se apresentam, hoje, no Brasil. Além disso, durante esses anos, a comunidade científica brasileira se apropriou, gradualmente, da metodologia de inquéritos, seja na elaboração dos desenhos amostrais, no desenvolvimento dos questionários e na análise dos resultados. Iniciativas locais, como o ISACAMP e o ISASP, pesquisas específicas para certos agravos, como a Pesquisa de Conhecimentos, Atitudes e Práticas da População Brasileira, dirigida a investigar as práticas de risco à infecção pelo HIV, e o Projeto Nascer, que estudou uma amostra de puérperas em âmbito nacional, são exemplos de inquéritos que trouxeram insumos importantes para a avalição dos programas e para subsidiar o desenvolvimento de novas estratégias de intervenção.
Nestes últimos 20 anos, a ampliação do conhecimento a partir de informações coletadas em inquéritos de saúde foi expressiva e merece destaque
Sendo assim, nestes últimos 20 anos, a ampliação do conhecimento a partir de informações coletadas em inquéritos de saúde foi expressiva e merece destaque. No meu entendimento, o problema maior não está na suficiência das informações, mas sim na insuficiência de análise das informações existentes. Me parece que as informações ainda são pouco trabalhadas e subsidiam, insatisfatoriamente, a formulação de políticas públicas. É preciso lembrar que a partir da análise dos dados, percebem-se as lacunas das informações existentes, o que leva à proposição de novos temas de interesse e ao maior detalhamento e ou aperfeiçoamento de certos aspectos já abordados. Outro problema refere-se ao respeito à periodicidade. A POF foi realizada em 2002-2003 e depois, pela última vez, em 2008-2009. Mudanças muito grandes nos orçamentos familiares ocorreram nesse período e não foram captadas. O mesmo pode ser dito em relação à Pesquisa Nacional de Demografia em Saúde, cuja última aplicação data de 2006. A pesquisa deveria ter sido realizada em 2016, mas não foi, o que traz dificuldades para o monitoramento de diversos indicadores de assistência materno-infantil. A integração dos dados coletados em diferentes inquéritos é outro grande problema. Por exemplo, a PNS e a POF fazem parte do Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares (SIPD) do IBGE, isto é, as amostras das duas pesquisas são subamostras da Amostra Mestre da PNAD. Entretanto, até o momento, não foi feita a integração das pesquisas. A PNS ganharia muito ao ter acesso às informações sobre o padrão de alimentação das famílias (POF) e às informações detalhadas sobre as condições de vida (PNAD), relacionando-as às informações de saúde em algum nível de agregação geográfica, como o estrato. Adicionalmente, um dos nossos grandes desafios é a realização de pesquisas longitudinais de base domiciliar em âmbito nacional, aptas a mensurar a exposição e os agravos de saúde ao longo do tempo. Devido às grandes dificuldades encontradas nesse tipo de estudo, o relacionamento dos dados coletados em inquéritos com os sistemas de informações de saúde já é uma prática adotada nos países europeus. Todavia, o Brasil ainda carece de tais procedimentos, por questões relacionadas ao sigilo dos dados. Mecanismos de proteção ao sigilo dos dados, como a criptografia, ou a substituição dos nomes por códigos de identificação dos indivíduos pesquisados, poderiam ser utilizados para dar margens a estudos longitudinais e trazer subsídios importantes para a melhoria da saúde da população brasileira. OAPS: Você crê que o contexto de contingenciamento, com recentes cortes de recursos e bolsas na área de pesquisa, ameaça a continuidade de estudos sobre a saúde da população brasileira ou ainda o desenvolvimento de novas iniciativas nesse sentido? Célia Landmann: Definitivamente, eu acredito que vamos ter muitos cortes de recursos na área de pesquisa, que poderão ter consequências graves, como as dificuldades em dar continuidade aos estudos populacionais de saúde ou ao desenvolvimento de novas pesquisas. É preciso fazer ver, se é que isso é possível, que o desmonte de um sistema de vigilância de doenças crônicas e fatores associados, construído desde a década de 1990 e aperfeiçoado ao longo desses anos, seria uma perda de muita relevância no que diz respeito à investigação da saúde da população brasileira e à avaliação do desempenho do sistema nacional de saúde.
Estudos recentes têm demonstrado a importância de considerar a distribuição da riqueza como característica essencial do desenvolvimento
O orçamento federal para a saúde tem sofrido cortes, especialmente nos últimos dois anos, e o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde deve ser agravado com a aprovação da PEC 55, que impõe um teto de gastos pelos próximos 20 anos. Quais impactos devemos esperar no enfrentamento às desigualdades em saúde e garantia da equidade no SUS?
Sem dúvida, estamos vivenciando um contexto de contingenciamento, em que a meta do governo federal é manter o controle financeiro, ainda que com cortes das políticas sociais. Contudo, para a retomada do crescimento, precisamos de melhor distribuição de renda e mais equidade social. Precisamos ampliar as políticas sociais para expandir a educação e prover melhores oportunidades de emprego a uma fatia maior da população brasileira, no sentido de superar a exclusão social. Estudos recentes têm demonstrado a importância de considerar a distribuição da riqueza como característica essencial do desenvolvimento, diante do papel exercido pela pobreza relativa em excluir pessoas, social e materialmente, das oportunidades proporcionadas pela sociedade. A falta de investimento em programas sociais traz impactos importantes para a infraestrutura social, resultando em educação pública e assistência médica insuficientes, habitação inadequada e capacitação profissional deficiente. Como reflexo das desigualdades de acesso aos serviços coletivos necessários ao bemestar social, espera-se uma deterioração das condições de saúde e um aumento das iniquidades em saúde. Outro problema que já ocorre na sociedade brasileira e que pode se agravar é a concentração geográfica da pobreza. A acentuação da desigualdade na distribuição de renda no país foi acompanhada de um importante crescimento na concentração residencial da pobreza, com profundas implicações sobre a vida social. Os moradores de comunidades carentes têm de enfrentar as consequências sociais de morar em um ambiente onde os seus vizinhos são igualmente pobres, padecem de males semelhantes e têm as mesmas demandas por serviços de natureza diversa. Os efeitos sobre a saúde refletem a agregação de formas acumuladas de desvantagens sociais, intensificadas pela exposição ampliada às doenças infecciosas. Um exemplo recente é a epidemia pelo vírus zika, que espelha a desigualdade social brasileira.
A acentuação da desigualdade na distribuição de renda no país foi acompanhada de um importante crescimento na concentração residencial da pobreza, com profundas implicações sobre a vida social
Os casos em gestantes se concentram no Nordeste, entre mulheres com baixa escolaridade, e elevadas taxas de fecundidade. A associação com a microcefalia trouxe um agravamento à saúde das crianças, resultando em novos problemas sociais. O ressurgimento da febre amarela e o risco de espalhamento para as áreas urbanas com altos índices de infestação por Aedes aegypti são sinais claros da falta de investimento em saneamento em áreas que agregam comunidades carentes. Aspectos associados à expansão de comunidades faveladas nas grandes metrópoles mostram efeitos adversos claros sobre a situação de saúde, como o aumento da criminalidade, relacionado ao uso e ao tráfico de drogas ilícitas. O domínio das favelas pelo crime organizado, que cresceu no vácuo das políticas públicas, traz, por sua vez, dificuldades cada vez maiores às ações governamentais, seja na melhoria da infraestrutura urbana, seja na integração social das comunidades à sociedade como um todo, provocando, cada vez mais, a fragmentação socioespacial nas grandes cidades brasileiras. O envelhecimento populacional, que vem ocorrendo de maneira acentuada no Brasil, traz também novos desafios. As doenças dos idosos são, em geral, crônicas e necessitam de assistência de saúde contínua, exames periódicos e medicamentos, além de internações hospitalares com maior frequência, aumentando a demanda por serviços de saúde e os gastos em saúde. Assim, o desenvolvimento de intervenções relacionadas à melhora da qualidade de vida dos idosos, o fortalecimento das políticas de promoção da saúde, e a demanda crescente do sistema de saúde frente à limitação de recursos e cortes orçamentários serão, igualmente, problemas que precisarão ser enfrentados.
Você tem pesquisas voltadas para o desenvolvimento de métodos de estimativa da incidência do HIV na população brasileira e para avaliar os avanços no controle da epidemia de HIV/Aids entre mulheres trabalhadoras do sexo. Qual sua avaliação sobre as políticas públicas de prevenção e de tratamento às pessoas com HIV/Aids no Brasil? Essas políticas têm sido eficazes no enfrentamento ao problema?
As políticas públicas de prevenção e tratamento às pessoas que vivem com HIV/Aids (PVHA) no Brasil obedecem, em geral, às políticas formuladas pelo UNAIDS - Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/ Aids, baseadas em pesquisas e estudos sobre a transmissão da infecção. Uma das inovações trazidas pelo Brasil foi a introdução à terapia antirretroviral (TARV) universal, de forma gratuita pelo SUS, a todos os pacientes com Aids, em meados da década de 1990. Isso fez com que a sobrevida dos pacientes de Aids aumentasse ao longo dos anos e que a Aids não fosse mais uma sentença de morte aos indivíduos infectados pelo HIV. Essa política foi introduzida em vários países, fazendo com que as PVHA tenham, atualmente, qualidade de vida satisfatória e sobrevida semelhante à população geral. Um dos possíveis problemas na política assistencial foi o atraso na introdução da terapia ARV aos indivíduos infectados pelo HIV. Conforme preconizado pela Unaids, e de acordo com o consenso brasileiro, até cerca de dois anos atrás, os indivíduos diagnosticados com HIV e assintomáticos tinham que esperar a baixa de imunidade (contagem de CD4<350) para o início da TARV. Muitos desses indivíduos não retornaram, constituindo-se em casos não vinculados ao sistema de saúde e com possíveis riscos de estarem transmitindo a infecção. Por meio de estudos feitos, primeiramente, no Canadá, mostrou-se que o tratamento imediato a todos os pacientes diagnosticados pelo HIV, independentemente da contagem de CD4 ou da presença de sintomas das doenças oportunistas, poderia reduzir a transmissão do HIV. Com base em estudos internacionais e em experiências nacionais, a partir de 2014, o Brasil passou a adotar a política de tratamento como prevenção (TASP), provendo terapia ARV imediatamente após o diagnóstico. Novas metas foram estabelecidas, esperando-se obter 90% de cobertura de teste de HIV; 90% dos infectados pelo HIV em terapia ARV; e 90% dos tratados com supressão da carga viral, de modo a diminuir a transmissão do HIV. Obedecendo ainda às políticas formuladas internacionalmente, a profilaxia pós-exposição (PEP) foi introduzida nos serviços públicos desde 2010, e atualmente a PrEP, profilaxia pré- exposição, está sendo implantada no país. ENTREVISTA DO MÊS: ENTREVISTA DO MÊS: JANEIRO/2016 FEVEREIRO/2017 ENTREVISTA DO MÊS 6 Confira outras entrevistas do OAPS: Léo Heller Luiz Roberto Santos Moraes Maria da Gloria Teixeira Estela Aquino Eduardo Mota José Gomes Temporão Gastão Wagner Lenir Santos Ana Luiza D`Ávila Viana Kenneth Camargo Carlos Ocké André Mota ENTREVISTA DO MÊS: ENTREVISTA DO MÊS: JANEIRO/2016 FEVEREIRO/2017 Coordenador Geral : Jairnilson Paim Coordenação Executiva OAPS: Maria Guadalupe Medina Equipe OAPS: Maria Clara Guimarães | Gerluce Alves Coordenação Executiva CDV: Carmen Fontes Teixeira Expediente Equipe CDV: Maria Clara Guimarães | Maria Creuza Silva Comunicação: Inês Costal | Patrícia Conceição Design: Gilson Rabelo | Juliana Argolo A adoção dessas políticas pela população brasileira constitui o nosso maior desafio. A TASP como política de redução de transmissão do HIV está sujeita à agilidade no diagnóstico do HIV, que, por sua vez, depende do medo em se testar e de revelação do diagnóstico motivado pelo estigma e preconceito ainda presentes na nossa sociedade. Igualmente, apesar da assistência aos grupos populacionais de maior risco ao HIV estar descentralizada, proporcionando maior acesso ao sistema de saúde, muitos serviços de saúde ainda não estão preparados para prover a atenção adequada de acordo com as políticas formuladas no nível central. No estudo recente com trabalhadoras do sexo, alguns resultados preliminares mostram que 88,5% já se testaram pelo menos uma vez, mas apenas 42% no último ano. Entre as que se testaram alguma vez na vida, 3,5% das mulheres se revelaram como positivas, mas só 55% usavam TARV. Mais do que 40% nunca se testou para sífilis. Nos serviços de saúde, mais da metade não revela que é trabalhadora do sexo, e mais de um quinto se sentiu discriminada. Aproximadamente 28% foi forçada a ter sexo contra a vontade, mas apenas 6,4% usou PEP. Entre as que procuraram assistência de saúde após sofrerem a violência sexual, 58% citaram que não usaram PEP porque não houve indicação de uso de medicamentos no serviço de saúde. No tocante ao estudo de incidência de HIV, as tendências temporais no período 2004-2013 mostram uma redução entre as mulheres, lento aumento entre homens heterossexuais, e aclive acentuado entre os homens que fazem sexo com homens (HSH). Por mensurar o número de casos novos, a incidência reflete a dinâmica atual de transmissão do HIV. Os achados mostram que o grupo de HSH é o que precisa de maior atenção e as dificuldades estão em implementar as políticas de prevenção e assistência em um subgrupo que ainda é muito estigmatizado pela nossa sociedade. Considerando, adicionalmente, que as práticas sexuais de risco são mais frequentes entre os jovens, o aumento de casos novos entre os homens na faixa etária de 15 a 24 anos chama a atenção para a necessidade de promoção da prevenção à infecção pelo HIV desde o início da atividade sexual. ><350) para início da Tarv. Muitos desses indivíduos não retornaram, constituindo-se em casos não vinculados ao sistema de saúde e com possíveis riscos de estarem transmitindo a infecção. Com base em estudos internacionais e em experiências nacionais, a partir de 2014, o Brasil passou a adotar a política de tratamento como prevenção (Tasp), provendo terapia ARV imediatamente após o diagnóstico. Novas metas foram estabelecidas, esperando-se obter 90% de cobertura de teste de HIV; 90% dos infectados pelo HIV em terapia ARV; e 90% dos tratados com supressão da carga viral, de modo a diminuir a transmissão do HIV. Obedecendo ainda às políticas formuladas internacionalmente, a profilaxia pós-exposição (PEP) foi introduzida nos serviços públicos desde 2010, e atualmente a PrEP, profilaxia pré- exposição, está sendo implantada no país. A adoção dessas políticas pela população brasileira constitui o nosso maior desafio.
Até cerca de dois anos atrás, os indivíduos diagnosticados com HIV e assintomáticos tinham que esperar a baixa de imunidade para início da Tarv. Muitos desses indivíduos não retornaram, constituindo-se em casos não vinculados ao sistema de saúde e com possíveis riscos de estarem transmitindo a infecção
A Tasp como política de redução de transmissão do HIV está sujeita à agilidade no diagnóstico do HIV, que, por sua vez, depende do medo em se testar e de revelação do diagnóstico motivado pelo estigma e preconceito ainda presentes na nossa sociedade. Igualmente, apesar da assistência aos grupos populacionais de maior risco ao HIV estar descentralizada, proporcionando maior acesso ao sistema de saúde, muitos serviços de saúde ainda não estão preparados para prover a atenção adequada de acordo com as políticas formuladas no nível central. No estudo recente com trabalhadoras do sexo, alguns resultados preliminares mostram que 88,5% já se testaram pelo menos uma vez, mas apenas 42% no último ano. Entre as que se testaram alguma vez na vida, 3,5% das mulheres se revelaram como positivas, mas só 55% usavam TARV. Mais do que 40% nunca se testou para sífilis. Nos serviços de saúde, mais da metade não revela que é trabalhadora do sexo, e mais de um quinto se sentiu discriminada. Aproximadamente 28% foi forçada a ter sexo contra a vontade, mas apenas 6,4% usou PEP. Entre as que procuraram assistência de saúde após sofrerem a violência sexual, 58% citaram que não usaram PEP porque não houve indicação de uso de medicamentos no serviço de saúde. No tocante ao estudo de incidência de HIV, as tendências temporais no período 2004-2013 mostram uma redução entre as mulheres, lento aumento entre homens heterossexuais, e aclive acentuado entre os homens que fazem sexo com homens (HSH). Por mensurar o número de casos novos, a incidência reflete a dinâmica atual de transmissão do HIV. Os achados mostram que o grupo de HSH é o que precisa de maior atenção e as dificuldades estão em implementar as políticas de prevenção e assistência em um subgrupo que ainda é muito estigmatizado pela nossa sociedade. Considerando, adicionalmente, que as práticas sexuais de risco são mais frequentes entre os jovens, o aumento de casos novos entre os homens na faixa etária de 15 a 24 anos chama a atenção para a necessidade de promoção da prevenção à infecção pelo HIV desde o início da atividade sexual.