'A política de desenvolvimento tem que dialogar com quem reclama por saúde, mobilidade, segurança e educação'
A estruturação de um projeto nacional de desenvolvimento, que assegure a convergência das questões social e democrática, foi tema do oitavo debate da série Futuros do Brasil, “Desenvolvimento – Ideias para um projeto nacional”, realizado pelo Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, no dia 26/10/2016. Os professores e pesquisadores Carlos Gadelha, coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Complexo Econômico-Industrial e Inovação em Saúde da Fiocruz e professor do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Ensp/Fiocruz, e Luis Fernandes, professor do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio e professor adjunto da UFRJ, ex-presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) falaram para os internautas conectados e para uma pequena plateia de convidados.
Por meio de um resgate histórico, o professor Luis Fernandes apontou algumas características da configuração da economia mundial e suas implicações para os países não centrais. “Desde o advento e consolidação da economia mundial, a aceitação por parte de um país não central na divisão internacional de trabalho existente implica condenação a operar atividades econômicas de menor valor agregado da economia mundial e que, portanto, não garantem geração sustentável de riqueza nem capacidade de redistribuir a riqueza que é gerada”, afirmou. “Dessa forma, trata-se de uma posição de subordinação, dependência, baixa produtividade, baixa agregação de valor”.
Para compensar a desvantagem, torna-se necessário estruturar projetos de desenvolvimento que tentem reposicionar o país não central na divisão internacional de trabalho. “Ou você estrutura um projeto de desenvolvimento para reposicionar o país na divisão internacional do trabalho, na economia mundial, ou você aceita uma posição de subalternidade que tem um conjunto de implicações e consequências sociais”, afirma o professor.
No Brasil, semelhante ao que ocorreu em outros países da América Latina, houve no século XX a primeira estruturação de um projeto nacional no Brasil através de um esforço de industrialização que não incorporava, entretanto, a dimensão da inovação. “A partir da Revolução de 30, do esforço de industrialização e da substituição de importações, forte proteção do mercado doméstico, abertura para investimentos de empresas transnacionais, que combinava com estruturação de empresas estatais importantes, para sustentar o desenvolvimento do país nos marcos de um mercado nacional fortemente protegido”.
"Ou você estrutura um projeto de desenvolvimento para reposicionar o país na divisão internacional do trabalho, na economia mundial, ou você aceita uma posição de subalternidade que tem um conjunto de implicações e consequências sociais" (Luis Fernandes)
“A ideia era de que junto com a atração de investimentos, vinham pacotes tecnológicos, que em geral, eram ultrapassados. Como aqui o mercado era protegido e eles eram competitivos, era uma industrialização com dependência tecnológica e com baixo grau de inovação nas empresas que se estruturavam nesse período da economia nacional fortemente protegida”.
Segundo Luis Fernandes, na segunda metade do século XX, o mundo e a economia mundial viveram algumas mudanças que reposicionaram os desafios de desenvolvimento nacional. “Nos marcos da intensificação dos processos de globalização financeira, uma escalada, sem precedentes e cada vez mais central, de circuitos financeiros de acumulação de capital, a chamada financeirização”. A segunda reconfiguração foi o advento da chamada ‘sociedade do conhecimento’. “Nos processos de acumulação econômica, cada vez mais atividades estruturadas em torno da ciência e da tecnologia ocupam papel central nas cadeias de agregação de valor”, aponta.
Uma tentativa de reestruturação do projeto nacional de desenvolvimento foi feita no início do XXI, em particular nos governos Lula e Dilma, segundo Luis Fernandes. “Essa tentativa procurou incorporar essas duas dimensões que citei acima de reconfiguração global”. Em relação à presença do capital financeiro, a instituição de mecanismos garantidores de repasse para o capital financeiro tentou buscar um equilíbrio contendo a esfera da atuação da especulação financeira, em uma espécie de parceria público-privada no capitalismo nacional. “A medida principal foi o fortalecimento do polo de bancos públicos, com o novo papel desempenhado pelo BNDES, pelo Banco do Brasil, pela Caixa Econômica Federal bem como a estruturação de cadeias agregadoras de valor como uma lógica produtiva e não financeira para gerar riqueza que permitissem políticas de redistribuição”.
O segundo polo da tentativa de relançamento do projeto nacional do período foi a promoção da inovação. “A ciência e a tecnologia estão no coração dos processos de agregação de valor", afirma. Segundo Luis Fernandes, a medida baseou-se na ideia de que não dava mais para reestruturar o projeto nacional de desenvolvimento no mercado fechado. “Mas era necessário fomentar a inovação nacional, estruturar cadeias condutivas que orientassem e fortalecessem a inovação nacional”, afirma. “Com isso foi aprovada a Lei da Inovação, bem como aquelas três versões de política industrial – a “Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior" (PITCE) primeiro, depois a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP), depois o Plano Brasil Maior (PBM)”.
“A ciência e a tecnologia estão no coração dos processos de agregação de valor" (Luis Fernandes)
A implementação de medidas, como o aumento da formalização do mercado de trabalho e o reconhecimento de direitos via carteira assinada, entre outros, representou a inclinação para um modelo bem-sucedido voltado para a economia política do trabalho. “Por 12 anos, não só o país manteve índices de crescimento econômico razoáveis, mas para além disso, foram 12 anos de ganhos reais da massa salarial na sociedade brasileira. Foi uma vitória da economia política do trabalho – com medidas como o aumento da formalização do mercado de trabalho e reconhecimento de direitos via carteira assinada, por exemplo – sobre a economia política do capital”, afirma Luis Fernandes. “A economia política do capital é essa que nós estamos vendo agora, que é a revisão da legislação trabalhista, predomínio do negociado sobre o legislação, retração e retiradas de direitos, que é combinar o aumento da taxa de lucro com o aumento da taxa de exploração”.
Todos esses avanços, apesar de tímidos, foram importantes. “A importância deles fica mais evidente agora, quando as políticas que os estruturavam estão sendo desmontadas no país. Mudou tanto, que eles estão implementando uma agenda global de contrarreforma, que na prática representa um desmonte do projeto que começou a ser construído”, afirma. “Desmonte de projeto nacional, no contexto da economia mundial, implica subordinação às assimetrias das cadeias de valor dominante. Então, na prática, é o retorno a uma posição periférica, subalterna, não geradora de riqueza”.
Para Carlos Gadelha, no momento de crise e de ruptura, torna-se ainda mais necessário se pensar estratégias de longo prazo, que mobilizem a sociedade e a política. “Frente ao que está acontecendo, o grau de resposta e de revolta é baixo, e temos que reconhecer isso”. Segundo Gadelha, a primeira questão que se coloca refere-se à superação o retrocesso dos direitos na base produtiva de inovação e da democracia. “Nesse sentido, temos primeiro que avançar nessa perspectiva de aliar o desenvolvimento com a dimensão social e a democracia, mas ao mesmo tempo avançar em uma discussão mais estrutural do ponto de vista dos sistemas de bem-estar e dos sistemas de produção e de inovação”.
Sobre os projetos de desenvolvimento econômico, o pesquisador propõe uma inversão do modelo tradicional de atuação, que aposte no diálogo com as ruas e com as demandas da sociedade. “Torna-se necessário colocar a dimensão do modelo de país, a dimensão social e nacional como um fator indutor e que dá um rumo para pensar a política de desenvolvimento produtivo e de inovação, bem como a política econômica. Ou seja, é uma inversão do modelo tradicional de atuação”, considera. “Em vez de política automobilística, política de mobilidade. Em vez de política para mais medicamento, política para saúde”.
Gadelha enfatiza que a estrutura produtiva incorpora o modelo de sociedade. “Eu não tenho de um lado estrutura produtiva e de outro modelo de sociedade. São variáveis endógenas”, considera.
Segundo o pesquisador, está em curso um movimento que chamou de “darwinismo econômico”. “A economia brasileira está com baixíssima produtividade, e o nosso diagnóstico aponta que isso é por falta de investimento. Temos a maior taxa de juros do mundo e câmbio valorizado não favorece investimento em inovação e em crescimento”. Gadelha aponta que, no entanto, o discurso difundido não contempla essas questões. “A versão que está sendo propagada é inversa. Seria de que nós somos muito lenientes com atividades pouco produtivas”.
"A política de desenvolvimento industrial e de inovação deve estar subordinada à política social e a política nacional" (Carlos Gadelha)
A política de desenvolvimento industrial e de inovação, diz Gadelha, deve estar subordinada à política social e a política nacional. “O plano nacional de desenvolvimento e a sua dimensão social e nacional deve presidir a própria política de inovação e de ciência e tecnologia. Você precisa começar a pensar a agenda das demandas da sociedade, através de um diálogo com as ruas, para pensar políticas de desenvolvimento e de inovação”.
As políticas sociais e de desenvolvimento industrial e produtivo não devem ser dissociadas, segundo o pesquisador. “A política de desenvolvimento tem que dialogar com quem está reclamando por mobilidade, por segurança, por saúde e por educação”, finaliza.