Entre a estabilização conservadora e a retomada da crise
Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o país vinha em banho-maria, embora o governo de Michel Temer anunciasse intenções de produzir um ajuste neoliberal (sem prejuízo da continuidade do social liberalismo focalizado nos mais pobres, conforme de resto explicitado nos documentos “Pontes para o futuro”). Passadas as eleições, ele tenta emplacar esse programa duro, a começar pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241. Uma ideia que em si não há como levar a sério (os economistas ortodoxos dizem mesmo que não resolve nada e que no médio e longo prazo é insustentável), ela sinaliza para o empresariado nacional e o capital internacional que pretende honrar seus compromissos neoliberais assumidos na campanha pelo impeachment.
Isso se faz possível, e na verdade necessário do ponto de vista do governo Temer, na medida em que o resultado das eleições municipais de outubro mostram o como a esquerda está isolada e desmoralizada. Nelas, o PMDB tampouco se saiu bem – embora mantenha seus tradicionais redutos clientelistas, amargando, contudo, derrotas como a do Rio de Janeiro, em que sequer foi ao segundo turno; e, ao menos temporariamente, o PSDB despontou como vitorioso, na capital São Paulo e em outras cidades importantes, em especial no estado governo por Alckmin, com outros partidos como PP, à direita, mantendo-se competitivos. Com o PT reduzido enormemente em sua expressão eleitoral nos quadros desta eleição, o PSOL crescendo mas não compensando esse declínio petista e o PCdoB se segurando com dificuldade, a política foi para a direita. O eleitor da esquerda se absteve em números significativos, ademais. Assim, o sinal verde e o empurrão na direção das reformas neoliberais foram dados. Temer não pretende desconhecer a sinalização que vem recebendo. A narrativa do golpe contra Rousseff não se mostrou efetiva junto à população, com o eleitorado da centro-direita mantendo-se, além disso, fiel a seus representantes. O eleito em São Paulo, João Doria, mostra a cara de uma real possibilidade (similar à de Maurício Macri na Argentina) de um neoliberalismo hegemônico comandado pelo empresariado mais diretamente.
Temer não pretende desconhecer a sinalização que vem recebendo. A narrativa do golpe contra Rousseff não se mostrou efetiva junto à população, com o eleitorado da centro-direita mantendo-se, além disso, fiel a seus representantes
Mesmo com a economia mantendo-se em ponto morto (o crescimento será na melhor das hipóteses mínimo em 2017), o cenário se desenharia, portanto, como de consolidação da centro-direita e estabilização conversadora. A crise poderia amainar e outras reformas, sociais, econômicas e políticas, serem deslanchadas após a aprovação definitiva da PEC 241. O condicional tem como razão de ser, porém, o novo avanço da operação Lava-Jato e de outras semelhantes que se veem desdobrando Brasil afora.
A prisão do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha – e sua possível delação premiada envolvendo integrantes do alto escalão do governo Temer (Moreira Franco, ministro, já é seu alvo predileto) –, o conflito entre a Polícia Federal, o ministro da justiça, Alexandre de Moraes, e o presidente do Senado, Renan Calheiros, por conta das ações da Polícia Legislativa, que se desdobra em uma crise entre ele e o judiciário, bem como a delação em curso de Marcelo Odebrecht e outros executivos desta construtora, implicam interrogações que somente os próximos lances, na verdade mesmo meses, verão respondidas. Até que ponto o governo Temer será atingido, em que medida o PMDB – com sua base no Rio de Janeiro já debilitada, particularmente no que tange ao ex-governador Sérgio Cabral, alvo de várias denúncias e inquéritos –, em especial o quanto os governos estaduais do PSDB, sobretudo seus caciques Aécio Neves, José Serra e Geraldo Alckmin se chamuscarão, está ainda para se ver. De todo modo, o potencial de estragos é grande e os setores de direita do judiciário e a grande mídia já atacam o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e o juiz Sérgio Moro, tentando, como tentaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o PT antes, bloquear o aprofundamento da Lava-Jato. Se o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, parece ter acusado a pressão política que o cerca desde a crise em sua equipe há uns dois meses, os procuradores de Curitiba parecem decididos a manter o pé no acelerador. A ver até onde poderão e quererão ir.
Assim, a estabilidade que se divisava no horizonte pode se configurar como uma quimera. A crise se reacenderia e os prospectos do governo Temer se fariam mais negativos nos meses vindouros. Se 2018 prometia ser jogo fácil para a centro-direita – talvez com uma aliança entre PMDB e PSDB –, as coisas podem vir a complicar-se sobremaneira.
Se 2018 prometia ser jogo fácil para a centro-direita – talvez com uma aliança entre PMDB e PSDB –, as coisas podem vir a complicar-se sobremaneira
Triste mesmo é ver a esquerda perdida, em particular o PT. Isso se verifica em particular no que diz respeito ao judiciário, que vem imprimindo uma agenda que tem lá seus problemas, mas que mobiliza a população contra a impunidade e o neopatrimonialismo selvagem dos de cima, nunca desafiada de fato no país. O pseudo-garantismo de alguns e o garantismo extremo e inclusive ingênuo de uns outros, a desconsideração de o quanto o patrimonialismo é não só ruim em si mesmo, mas que distorce enormemente a política no país, têm se somado aos ataques do PT (mas de até mesmo setores – decerto não todos – do PSOL que mimetizam a cultura política autocentrada da agremiação de onde se originaram). Isso contribui lamentavelmente para fazer da visão da esquerda sobre a conjuntura política e a atuação do judiciário uma caricatura de uma postura democrática e legalista radical. O isolamento é consequência inevitável desse tipo de atitude, que acusa a tudo e a todos como golpista e autoritária, sem muitas vezes apresentar dados e argumentos, sobretudo no que tange ao judiciário.
Vai levar tempo para sairmos dessa situação. Oxalá a inteligência e a sensibilidade nos deem armas para fazê-lo. E que queiramos, obviamente, superar essas debilidades. O mar não está para peixe, e nem ainda chegamos ao oceano das próximas décadas.