Neoliberalismo, acesso a medicamentos e o desmonte da resposta brasileira ao HIV/AIDS

Neoliberalismo, acesso a medicamentos e o desmonte da resposta brasileira ao HIV/AIDS

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A neoliberalização da resposta ao HIV e o desmonte da resposta brasileira

A inestimável conquista brasileira de tornar o acesso aos medicamentos para tratar o HIV/Aids um direito assegurado por lei (Lei nº 9.313/1996), com distribuição gratuita e universal de antirretrovirais e financiamento do Estado, começou a “apresentar fissuras” a partir de 2008 e continua em risco. A análise é do diretor-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), Richard Parker, que participou do seminário Políticas de Acesso a Medicamentos e Direitos Humanos, realizado entre 26 a 28/9/2016, no Rio de Janeiro, ao analisar o que chamou de “processo de neoliberalização das respostas globais à epidemia de HIV e o desmonte da estratégia brasileira”.

Assista ao vídeo do debate aqui.

Parker fez um histórico da construção do modelo brasileiro, que destacou positivamente o Brasil em relação aos demais países. “Quando falo em resposta brasileira, não falo só da iniciativa governamental, mas do envolvimento de toda a sociedade, que se mobilizou e pressionou o governo para que atuasse. Só mobilização faz algo acontecer”. De acordo com o presidente da Abia, o Brasil conviveu com a omissão do poder público no que diz respeito ao enfrentamento do HIV/aids até o início dos anos 1990. “Uma segunda fase começou por volta de 1992, quando foi firmado acordo com o Banco Mundial. No entanto, desde então, já estava ali as raízes neoliberais – não pode haver algo mais neoliberal do que o Banco Mundial”, observou, alertando para os riscos de se construir “algo sustentável” a partir de doações do exterior. “Isso sempre vai ser um problema. Manter [o modelo] quando a filantropia vai embora é algo que não está bem resolvido”.

O sucesso da resposta brasileira foi calcado na decisão política de se associar acesso a direitos humanos, a partir de 1996. “Com a nova legislação, algo mudou na resposta brasileira. Tudo o que veio em seguida foi construído sobre essa ideia de acesso como direito e do enfrentamento da epidemia como questão de cidadania, uma questão política e de direitos humanos”, analisou, destacando que tratamento, assistência “e até mesmo a pesquisa” foram fundamentados nessa ideia. “Aproveitou-se o que há de melhor no SUS, com seus princípios de universalidade, integralidade e equidade”.

Com a nova legislação, tudo o que veio em seguida foi construído sobre essa ideia de acesso como direito e do enfrentamento da epidemia como questão de cidadania, uma questão política e de direitos humanos

O programa nacional de combate ao HIV/Aids, criado pelo governo e envolvendo toda a sociedade, “andou contra a corrente do neoliberalismo', porque grande parte dos recursos usados vieram do Tesouro, foram recursos nacionais. “Com sua tradição neoliberal ao extremo, o Banco Mundial concentrava recursos somente na prevenção primária, recusando, ao longo dos anos, a cobertura de assistência e tratamento, que ficava a cargo do governo brasileiro”, apontou Parker. O país ficou, assim, menos submetido às decisões de doadores externos de manterem ou não o aporte de recursos no país para lidar com a epidemia, tal como ocorreu com outros países, sobretudo os mais pobres, explicou.

Esse cenário, no entanto, começou a mudar, a partir de 2007, entre outros motivos, pela crise financeira global que se anunciava e que interferiu na disponibilidade e disposição de das fundações internacionais de doar. Embora o financiamento nacional ao enfrentamento da epidemia tenha atenuado o impacto da crise no Brasil, a redução de recursos externos foi importante. “Os empréstimos do Banco mundial foram diminuindo e toda a cooperação internacional das fundações, dos doadores que financiaram e instituições da sociedade civil também sumiram do cenário”, explicou. “Esses recursos tinham papel chave no Brasil para garantir o controle social, a independência da sociedade civil para fiscalizar as ações do governo. Essa possibilidade de fiscalização foi desmontada de maneira preocupante e deixou as organizações quase que totalmente dependentes dos recursos vindos da esferas governamentais e com os problemas que isso tem”.

Outro fator apontado por Parker como decisivo no processo de desmonte da resposta ao HIV/Aids foi a aids backlash, isto é, o entendimento por outros setores da saúde global – como os ligados às doenças crônicas, por exemplo – de que havia recursos demais empregados no enfrentamento à epidemia, que teve uma resposta equivocada do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (Unaids). “A Unaids considerou que, declarando que o combate à epidemia havia sido bem sucedido, iria assegurar os recursos e continuar fazendo o que estava sendo feito. Surgiram aqueles slogans: Getting to zero, 90-90-90, fim da AIDS em 2030, um erro profundo por parte dos administradores da epidemia nessas agências internacionais, que deram uma ideia absolutamente errada de epidemia controlada, prestes a acabar”, considerou. “Em meio à uma crise financeira , se o problema estava resolvido, os países ricos passaram a entender que não precisavam mais dar recursos para isso”.

 Aqueles slogans -  Getting to zero90-90-90fim da AIDS em 2030 - foram um erro profundo por parte dos administradores da epidemia nessas agências internacionais, que deram uma ideia absolutamente errada de epidemia controlada, prestes a acabar

Na mesma época, aponta Parker, setores conservadores estabeleceram alianças com o governo. “Houve um crescente conservadorismo religioso, que cruzou com o projeto político de governos que queriam manter o poder e que estavam dispostos a assumir compromissos com a bancada evangélica e outros setores conservadores para ter os votos deles para outros projetos”. Segundo Parker, o resultado foi a intensificação do processo de desmonte das medidas implementadas pelo modelo brasileiro de enfrentamento à epidemia. “Censuraram campanha de carnaval, censuraram campanha das prostitutas, encerraram o debate sobre questão da Aids e da homofobia nas escolas... Enfim, um programa após o outro foi censurado por causa dessa pressão conservadora, propiciada pelo governo, que se compromissou com essas forças mais conservadoras”.

O desmonte sofreu, ainda, segundo Parker, com a biomedicalização, iniciada em âmbito internacional como parte do aids backlash, reduzindo os ajustes promovidos no setor saúde a uma resposta biomédica. “Essa virada foi importada pelo Brasil, também como forma de contentar as agências internacionais  e reduzir gastos. Eticamente, não se pode cortar recursos para tratamento, pois, sem tratamento, as pessoas morrem. Mas pode-se cortar para prevenção e para uma série de outros itens. Esses outros cortes, no entanto, comprometem o programa”.

A partir da análise que realizou, Richard Parker considera a situação brasileira e global “preocupante”, acrescentando que, no entanto, nem tudo está perdido. Para ele, o modelo brasileiro de resposta a partir de financiamento majoritariamente nacional conta como uma vantagem, no enfrentamento do atual cenário. “O Brasil está em melhores condições do que muitos países, justamente porque, historicamente, a resposta aqui não foi tão neoliberal. Mas a luta é dura, uma luta política. E sem ela não há como ir para frente. É hora de fazer uma nova avaliação crítica e uma mobilização e enfrentar esses desafios políticos”. (Luiza Medeiros/CEE-Fiocruz)

Richard Parker (foto: Reprodução)