'É fundamental entender a política de saúde como capaz de reduzir os efeitos da crise e de induzir o crescimento'
O economista e técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), Carlos Ocké-Reis, conversou com o blog do CEE sobre as atuais políticas regressivas na saúde e os riscos aos pressupostos constitucionais do Sistema Único de Saúde (SUS) bem como à ideia de saúde como direito social, avanços impulsionados pela 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em 1986. "Todo o pensamento crítico em defesa do SUS precisa virar movimento político concreto em defesa dele", considera.
Leia a seguir a análise de Carlos Ocké-Reis para o blog do CEE-Fiocruz:
“A 8ª Conferência Nacional de Saúde, realizada há 30 anos, em março de 1986, teve como principal inovação institucional, depois consagrada na Constituição de 1988, defender a saúde direito social. Em uma perspectiva histórica, essa nova ação constitucional foi fundamental nos planos ideológico, político e social para a melhoria da qualidade de vida da população brasileira e das suas condições de saúde. Foi, indiscutivelmente, um avanço importantíssimo, com uma carga de complexidade civilizatória, uma busca por instaurar um novo padrão societário. Agora houve contradições? Houve. E, de alguma maneira, precisamos tratá-las agora para que possamos, nessa ofensiva contra os direitos, a partir do golpe parlamentar, da mídia, do setor judiciário, da mídia corporativa, que estamos vivenciando, resistir, para não retroceder nessa conquista.
Hoje, o que está em risco são os pressupostos constitucionais do Sistema Único de Saúde, em relação à universalidade, à integralidade e à equidade, e também à própria participação social. A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016 põe em xeque o SUS, e, portanto, a saúde como direito social. Não é mais apenas o problema do subfinanciamento, crônico, com o qual convivemos ao longo dos anos. Trata-se de uma nova política, de uma mudança no modelo de financiamento, mais liberal, como se vê no caso do mercado de planos de Saúde.
A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016 põe em xeque o SUS, e, portanto, a saúde como direito social
A PEC 241 significa objetivamente a destruição do Sistema Único de Saúde. Não é figura de retórica; isso é muito concreto. Em uma simulação retrospectiva, comparamos o que foi aplicado no SUS de 2003 a 2015, de acordo com a Emenda Constitucional 86/2015, vinculada à variação nominal do PIB, com os valores relativos à nova regra da PEC 241/16, para observar o que teria acontecido se já estivesse valendo. O SUS teria perdido no período R$ 257 bilhões! [Leia mais sobre a simulação aqui]
Há dois movimentos em curso. O primeiro é o de favorecimento de setores do mercado prejudicados pela crise. Tenta-se atenuar o impacto da crise econômica sobre os setores que prestam serviços de saúde, com iniciativas como a do plano de saúde popular. O outro movimento é o de enxugamento dos gastos sociais, dos gastos públicos – não só com saúde, mas com educação, previdência etc. Ou seja, o ajuste fiscal segue penalizando os direitos sociais.
O governo precisa atender a população integrada ao mercado formal de trabalho, visto que ela é a opinião pública – tem voto, voz e, inclusive, recursos. Como boa parte dessa população economicamente ativa está integrada também ao mercado de planos de saúde, o governo tenta favorecer esse mercado, que atende também os setores sociais que não necessariamente lhe são favoráveis politicamente, como é o caso dos sindicatos.
Essa é uma das contradições do SUS: a base social do sistema utiliza o serviço público, sobretudo, no alto custo e na alta complexidade, mas tem cobertura de plano de saúde. Isso acaba favorecendo o crescimento do mercado. É um problema estrutural, que já existia antes desta crise, mas que ganha novas dimensões, com o estrangulamento financeiro do SUS, que ameaça o sistema e seus pressupostas constitucionais, associado seja pelo movimento de destruição do SUS, uma expressão do golpe.
A democracia no Brasil precisa ser restaurada. Não podemos retroagir, temos que avançar no que se refere aos direitos que reduziram as desigualdades. As políticas sociais precisam ser enxergadas em uma matriz diferente da usual. Não dá mais para entender a saúde como uma ilha. Não dá mais para ficar olhando para árvore, temos que olhar para a floresta – ainda que seja importante fazer algumas sobre o SUS. Torna-se fundamental entender a política de saúde como sendo capaz de reduzir os efeitos da crise sobre a classe trabalhadora e sobre as classes médias – as pessoas ficam, por exemplo, desempregadas, mais doentes –, situando-a em uma perspectiva cíclica – e de induzir o crescimento, criando novas bases para políticas de desenvolvimento inclusivo e sustentável, a partir das políticas sociais.
Em outra perspectiva, mais estratégica, deve-se entender, por exemplo, a área de Biotecnologia como de alto valor agregado, com capacidade não só de reinserção tecnológica, mas de reinserção do Brasil no mercado internacional, com efeitos bastante evidentes sobre a saúde da população brasileira e sobre a capacidade de produção de insumos e fármacos na área da saúde. Trata-se de uma área de fronteira fundamental a ser desenvolvida, com duplo efeito positivo –ampliação do mercado interno e criação de divisas e, portanto, reinserção do Brasil de outra forma na geopolítica internacional.
Obviamente, tudo isso depende de um sistema tributário com perfil diferente do que nós temos hoje, tributando patrimônio, lucro financeiro, em vez de produção e produto de consumo. Depende também de outro tipo de política fiscal, que onere os extratos superiores de renda e não os trabalhadores e, em certa medida, as próprias classes médias.
Priorizar o financiamento do SUS é entender o sistema como um motor de desenvolvimento e de combate à desigualdade.
Priorizar o financiamento do SUS é entender o sistema como um motor de desenvolvimento e de combate à desigualdade, uma vez que o SUS desconcentra a renda. Essa, no entanto, não é a agenda no momento; trata-se de um pensamento contra-hegemônico. Nossa tarefa, hoje, é derrotar esse projeto que quer destruir os direitos sociais. A disputa hoje no interior do Estado é para acabar com o SUS e privatizar o sistema. Temos que barrar esse processo, e não desfortalecer as políticas sociais. É um momento de defensiva, de acúmulo de forças para resistir à ofensiva da direita.
São fundamentais a unidade e a articulação das entidades do movimento da Reforma Sanitária, dos gestores, os secretários de Saúde, com o Conass, Conasems, e do Conselho Nacional de Saúde, na construção de uma política unitária e de um programa mínimo em defesa do SUS, dos direitos sociais e da democracia. Todo o pensamento crítico em defesa do SUS precisa virar movimento político concreto em defesa dele. (Por: Luiza Medeiros/CEE-Fiocruz)