Drogas: Portugal e a política de redução de danos
Uma mudança na forma de ver o usuário foi o ponto principal da legislação portuguesa em sua política de drogas, como mostra em entrevista realizada pelo caderno Jornal da Lei, do Jornal do Comércio do Rio Grande do Sul, a chefe da Divisão de Informação e Comunicação do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (Sicad) do Serviço Nacional de Saúde de Portugal, Paula Vale de Andrade. Portugal foi um dos primeiros países a conceber uma política que prioriza a redução de danos no trato de usuários de drogas. Além disso, em 2001, o governo decidiu descriminalizar o uso, a posse e o consumo de todas as drogas. Na entrevista, concedida a Suzy Scarton, Paula aponta como as estratégias mudaram a realidade do consumo e do tráfico de drogas no país.
Jornal da Lei - Em que consiste a política de redução de danos adotada em Portugal?
Paula Vale de Andrade – A redução de danos parte do princípio de que o usuário pode continuar consumindo, com menos riscos para ele próprio e para a sociedade. É um trabalho que exige proximidade, feito por equipes que estão no local, que conhecem as pessoas pelo nome e criam laços de confiança muito grandes. Em vez de marcar uma consulta, os usuários podem ir a unidades de rua. Nós identificamos quais os locais onde havia a maior concentração de usuários, os territórios psicotrópicos, e montamos uma rede de tratamento. Criamos um modelo de dissuasão. Quando as pessoas são pegas consumindo, são encaminhadas a estruturas que conduzem ao tratamento adequado.
Esse modelo pode ser replicado em qualquer país?
Tínhamos um problema grave de consumo de heroína, que requer respostas de mediação diferentes das do consumo de crack, por exemplo, que é o principal problema no Brasil. O primeiro desafio brasileiro é a dimensão, mas o que fizemos aqui foi identificar os territórios que precisavam de maior atenção. Temos também um programa de respostas integradas, que consiste em ir ao local e identificar as necessidades psíquicas daquele território. Nem todos têm as mesmas necessidades. Isso é replicável em qualquer lugar, porque repartimos a geografia de um país ou de um estado com base em um diagnóstico territorial. Em 2000, foi criada uma lei em que o consumo passou a ser descriminalizado. A Lei nº 15/1993, que trata do tráfico e do comércio de substâncias, continua a mesma. Esse modelo de descriminalização é único na Europa. Na Holanda, por exemplo, não funciona assim, eles criaram uma separação de mercados. O consumo não é legal nem descriminalizado, mas é aceito socialmente.
Parte da sociedade teme que uma possível descriminalização possa aumentar o nível de violência, já bastante alto no Brasil.
Em Portugal, ocorreu o contrário. Reduzimos todos os indicadores de consumo de drogas e inclusive o de violência. Nesse momento, o consumo problemático é residual. Isso se deu devido ao trabalho de proximidade, que contém o ímpeto do primeiro crime para comprar a primeira dose, o pequeno roubo, muito característico de quem consome drogas. Quando adotamos a medida, a toxicodependência era a primeira preocupação dos portugueses, Hoje, o país não está nem entre os dez primeiros.
Custa muito menos colocar equipes na rua, do que manter um presidiário. A despesa nem chega perto
No Brasil, uma alteração na lei endureceu a penalização ao tráfico. Com isso, nossos presídios ficaram lotados de pequenos traficantes. Como isso funciona em Portugal?
O tráfico é punido. A polícia acaba se concentrando muito mais no tráfico de grande dimensão do que nesse pequeno tráfico, que é o consumidor que promove para angariar dinheiro para que ele próprio possa consumir. No entanto, quando percebemos que o problema da pessoa é o consumo, ela é encaminhada para a estratégia de dissuasão, que avalia o grau de seriedade e encaminha para tratamento. Prender não resolve, porque também há drogas nas prisões. O usuário que for preso pode não ter atuado no crime, mas quando sair do presídio, estará mudado em relação a isso.
Considerando a experiência portuguesa, pode-se afirmar que o Brasil está indo pelo caminho errado?
Na época em que a medida foi adotada, houve muita discussão. Algumas pessoas estavam com medo que Portugal virasse o país da toxicodependência, mas não foi o que ocorreu. Hoje, não há qualquer possibilidade de retrocesso nessa medida. Portanto, penso que a discussão acerca do tema facilitaria o andamento de medidas no Brasil. Tudo passa pelo debate, pelo diálogo. Além de tudo isso, manter um presidiário tem custos elevadíssimos para o Estado. Custa muito menos colocar equipes na rua, nem chega perto da despesa de manter um presidiário. A relação que se estabelece entre o profissional e o usuário, com a descriminalização, é completamente diferente. Se vou punir alguém que consome crack, como vou distribuir cachimbos e propor educação para evitar o contágio de doenças infecciosas?