Ao mercado, tudo. À vida, nada
Ary Miranda *
O Brasil vem se conduzindo por um modelo exploratório, cujas consequências materializam-se em tragédias como a que aconteceu em Mariana, Minas Gerais, em novembro de 2015. Refletir sobre o que acontece no Brasil do ponto de vista de impactos socioambientais é pensar no país a partir de sua inserção na ordem capitalista internacional. Trata-se de uma reafirmação do Brasil e dos países do Hemisfério Sul como produtores de commodities minerais, agrícolas/pecuárias e petróleo, um papel que é dado ao país e reafirmado pelo Estado brasileiro, gerando impacto socioambiental enorme.
Tirando-se um ou outro momento em que buscamos incrementar a industrialização, como nos anos JK, nossa característica nunca foi a de nos ancorarmos na pesquisa, no desenvolvimento tecnológico, de forma a alavancarmos um outro modelo produtivo. A balança comercial brasileira conforma-se pela primarização da economia.
A tragédia de Mariana está no escopo desse processo. Primeiro, é importante destacar que não se tratou de acidente, mas de crime, fruto da busca pelo lucro, pela acumulação. O foco na racionalização de custos, quando as commodities caem de preço no mercado internacional, faz com que aquilo que não agrega valor à produção, como é o caso das questões de segurança, seja posto de lado. Relaxa-se, assim, claramente nesse quesito.
Interesses eleitorais também levam os aspectos sociais para segundo plano. Muitos políticos que estão no poder, hoje, foram financiados em suas campanhas eleitorais pela mineradora Samarco, a subsidiária da Vale e BHP, responsável pelo rompimento da barragem. Isso significa que o nível de comprometimento desses governantes com as empresas é enorme. O termo de ajustamento de conduta firmado entre Governo Federal, governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, Samarco, Vale e BHP é uma aberração. Todas as populações ficaram fora das discussões e decisões do termo. A proposta é a criação de uma fundação de direito privado para lidar com os danos da tragédia, administrada pela Samarco. É dar ao criminoso o poder de gerenciar as consequências do próprio crime.
Há alguns casos emblemáticos da tragédia de Mariana que demonstram como as empresas e o Estado estão lidando com suas consequências. Uma senhora de 69 anos teve sua máquina de lavar danificada e solicitou uma nova à Samarco, como indenização. Depois de lhe ser exigido laudo médico provando que não tinha força para torcer a roupa, e com muita pressão do Movimento dos Atingidos pela Mineração e outras organizações que estão dando proteção a essa população, a senhora recebeu uma máquina nova, mas de qualidade inferior à que tinha. Tudo sempre resolvido assim, pela metade. Outro caso emblemático, referente às indenizações às famílias dos mortos, foi o de uma mulher grávida levada pela enxurrada, que perdeu a criança, mas não teve direito à indenização sob alegação da Samarco de que a criança ainda não havia nascido.
O capital não tem compromisso com a vida das pessoas.
Estamos em meio a um processo que começa com a chamada reestruturação produtiva, a partir da crise do fordismo nos anos 1970, quando o capital reconfigura sua dominação
Estamos em meio a um processo que começa com a chamada reestruturação produtiva, a partir da crise do fordismo nos anos 1970, quando o capital reconfigura sua dominação, o que ganha lastro político com a eleição da Margaret Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos. A partir desse momento, tem-se um avanço do neoliberalismo, com a desregulamentação dos fluxos do capital financeiro, privatizações, desregulamentação de formas de contratualização e fragilidade enorme do mundo do trabalho.
Essa fragilidade, que é central na reestruturação produtiva, desorganiza o trabalho de diversas formas, com postos sazonais, teletrabalho e terceirizações, estas ainda podendo ser ampliadas, com o PL nº 30/2015, que tramita no Congresso. Os postos de trabalho foram pulverizados. Nesse processo, as empresas vão se desresponsabilizando também quanto aos trabalhadores.
É a fragilização dos sindicantos, dos movimentos sociais, dos partidos políticos voltados à causa dos trabalhadores.
O social está fragilizado. As políticas sociais relegadas a segundo plano ficam claras na leitura do documento Uma ponte para o futuro, que orienta hoje o governo federal interino, tomado por um golpe. Entre as propostas, o compromisso com as privatizações, a revisão de toda legislação que condiciona repasses de recursos federais para estados e municípios na área social e um alinhamento das relações internacionais aos interesses econômicos dos países do Norte. São compromissos que colocam tudo nas mãos do mercado, um retrocesso nas conquistas feitas nos últimos doze, quinze anos no Brasil.
* Pesquisador do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh/Ensp/Fiocruz)