Augusto Vitale: ‘Política de drogas do Uruguai é parte de contexto mais amplo’
A política de drogas do Uruguai, de que trata a Lei 19.172, de 2013, que legaliza a produção, distribuição e venda da maconha, tem história. Foi instituída após diálogo com vários setores da sociedade em um contexto no qual o uso pessoal de drogas não era criminalizado desde 1974. O sociólogo Augusto Vitale,presidente do Instituto de Regulação e Controle da Cannabis do Uruguai, criado no âmbito da nova lei, esteve à frente desse processo, durante o governo do presidente Jose Mujica. Vitale participa no Rio de Janeiro do Seminário Maconha, Usos, Políticas e Interfaces com Saúde e Direitos, organizado pela Fiocruz, em parceria com a Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), durante o qual falou ao blog do CEE e ao Canal Saúde/Fiocruz.
Como se deu o processo de construção da política de drogas no Uruguai?
É importante, primeiro, entender que, desde 1974, o Uruguai não penaliza o uso de drogas como ato privado, uma vez que isso não afeta as demais pessoas. Essa é a base sobre a qual o governo de Jose Mujica pôde constituir a lei, um contexto de medidas mais amplas, que buscaram melhorar a vida e a convivência social no nosso país. No Parlamento Nacional, houve discussão de um ano e meio, em que partidos de governo e outras expressões de apoio a essa lei a ratificaram e aprovaram. Como integrantes, na época, da Secretaria Técnica da Política de Drogas, fomos a diversos pontos do país para travar um diálogo com a população, de modo a pensarem qual era a política de cannabis que se queria aprovar por meio de seus representantes no Parlamento. A lei separa três tipos de uso: não médico ou recreativo, médico ou medicinal e industrial. Para cada um, o Poder Legislativo estabeleceu regras distintas. No uso recreativo, as pessoas devem optar por uma entre três formas de acessar: cultivo pessoal, clubes de canabis ou dispensação em farmácia.
Já há levantamento relativo a redução ou aumento de consumo da maconha, com a nova legislação?
Números do final de 2014 mostram que o consumo não vem crescendo tanto quanto nos últimos dez anos, quando não se conseguia deter o aumento da prevalência. É um dado inicial, ainda, mas parece que estamos entrando em uma fase estável. Podemos dizer ocorre o mesmo que na Holanda, quando se abriram os coffee shops para venda, havendo aumento, seguido de estabilização e, depois, de redução. Temos uma preocupação. Com as drogas legais, como o álcool, há baixa percepção dos problemas que trazem, como no caso do álcool. Com o tabaco, comprovou-se que, com regulação do uso e campanhas educativas, os mais jovens aumentaram a percepção sobre os problemas que podem decorrer de seu uso e houve redução da prevalência. Cremos que com a maconha também podemos obter essa alta percepção e um consumo normalizado por essas vias.
Como funciona o Instituto Nacional de Regulação e Controle da Cannabis? Como foi concebido e que perfil de profissionais nele atuam?
O instituto foi criado pela lei, com dois objetivos fundamentais: estabelecer o controle, fiscalização e registro das pessoas usuárias, e o controle de toda a atividade de produção para o sistema de farmácias, bem como outorga de licença para os produtos de nível farmacêutico, com controle de qualidade. Outro papel do instituto é assessorar o Poder Executivo em políticas de canabis. Para isso há três ministérios envolvidos – Saúde, Desenvolvimento Social e Agricultura –, mais a Presidência da República, que eu represento, como presidente do Instituto. Logo teremos equipe técnica e um conselho honorário assessor, integrado pela universidade da República, Ministério da Economia, da Indústria, entre outros. No ano que vem, teremos seis a sete técnicos, mais cinco ou seis administrativos, uma estrutura mais potente de fiscalização e de comunicação estratégica. São profissionais de Ciência da Saúde, advogados e técnicos em sistemas de informação. Como temos o compromisso de preservar o direito das pessoas de terem seus dados protegidos pela lei de proteção de dados pessoais, isso demanda que o instituto tenha um sistema sofisticado de segurança da informação. E temos toda uma equipe de informáticos trabalhando nisso.
Qual a importância para o Uruguai de participar desse debate no Brasil, em um momento em que aflora no país uma onda conservadora?
Para nós, é importante fazer parte dos organismos internacionais como o Mercosul, Unasul. Há uma declaração do Mercosul que ratifica a importância de os direitos humanos estarem dentro da política de drogas. Estamos fazendo um trabalho conjunto com a Secretaria Nacional de Drogas do Brasil, estabelecendo estudos nas cidades de fronteira para saber o que acontece com a aplicação da regulação do mercado de um lado e com uma legislação diferente, do outro. Queremos aprender juntos. O Uruguai não extinguiu integralmente as atividades do narcotráfico e tráfico ilícito de substâncias. Temos muitas coincidências e desafios para irmos trocando, nos fóruns internacionais.
Leia íntegra da Lei 19.172, da política de drogas do Uruguai.