Decisões locais com efeitos globais: mais acesso ao tratamento da hepatite C
Sofosbuvir, o comprimido de mil dólares, é mais um a acender o alerta para a necessidade de resposta enérgica e coletiva aos preços altos de medicamentos, buscando caminhos para a barreira das patentes, como já fizeram a Índia e o Egito, aponta o artigo de Gabriela Costa Chaves.
Recentemente foi divulgado que o Escritório de Patentes da China não concedeu um dos pedidos de patentes solicitados pelo laboratório norte-americano Gilead para o medicamento sofosbuvir – lançado pelo nome de marca Sovaldi® – usado no tratamento da hepatite C. Em janeiro deste ano, decisão semelhante foi obtida na Índia. Apesar de esta decisão ainda não ser uma vitória no que diz respeito à ampliação do acesso a medicamentos, é sem dúvida um precedente que abre oportunidades importantes para chegarmos a isso. Afinal, negar uma patente significa que a empresa não poderá ter exclusividade de mercado sobre o produto –embora saibamos que há muitos pedidos de patentes relacionados ao medicamento ainda com análise e decisão pendentes.
Vitória mesmo será quando todas as pessoas que vivem hoje com hepatite C no mundo tiverem acesso às melhores opções de tratamento que possam levá-las à cura.
Nos últimos dois anos, os holofotes em todo o mundo voltaram-se para as hepatites virais, primeiro, pelos sinais positivos dos estudos clínicos em andamento e o lançamento dos chamados Antivirais de Ação Direta (AAD), com perspectivas de cura para a hepatite C. Em maio de 2015, a Organização Mundial da Saúde incluiu cinco AADs[1] na sua Lista Modelo de Medicamentos Essenciais orientando as decisões de incorporação a serem adotadas pelos países. Segundo, pelos altos preços com que esses medicamentos estão sendo ofertados nos países desenvolvidos e em desenvolvimento.
O sofosbuvir ilustra bem o contexto atual, já que ficou conhecido como o comprimido de mil dólares, nos Estados Unidos, levando o custo do tratamento de 12 semanas a 84 mil dólares. Membros do Congresso americano chegaram a questionar a empresa Gilead sobre o preço praticado no país[GCC1] . Na França, estimativas apontam que o tratamento com sofosbuvir poderá chegar a 56 mil euros, e a Inglaterra anunciou que retardará a compra do produto para distribuição pelo Sistema Nacional de Saúde, apesar de as evidências científicas sustentarem a pertinência de sua adoção. Ou seja, mesmo para os países mais ricos está difícil fazer frente aos gastos com medicamentos em situação de monopólio.
Em jogo está o fato de que para cada medicamento novo lançado, há dezenas de pedidos de patentes depositados pelos laboratórios fabricantes, ao redor do mundo. Esses pedidos, depositados em momentos diferentes, são também avaliados pelos escritórios de patentes de cada país, gerando nesse meio tempo uma situação de monopólio para as empresas depositantes que lhes confere uma mão mais pesada na queda de braço pela redução de preços.
No caso do sofosbuvir, alguns países em desenvolvimento alcançaram preços mais baixos com a Gilead, como o Egito, que por ter capacidade de produção local do produto negociou diretamente e conseguiu que o custo do tratamento com o medicamento baixasse para 900 dólares/paciente. A empresa também assinou acordos de licença voluntária com alguns laboratórios farmacêuticos indianos para produção e comercialização do medicamento, com vistas a atender especificamente determinados países. Ficaram fora desses acordos potenciais beneficiários como os países de renda média[2], incluindo o Brasil e vários outros da América Latina e Caribe. O resumo da ópera é que as negociações de preços nos países em desenvolvimento estão deixadas para o nível do caso-a-caso.
No início de 2015, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) concedeu o registro sanitário para o sofosbuvir, o simeprevir e o daclatasvir. Com o fim da análise feita pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), o Ministério da Saúde já anunciou que os três medicamentos farão parte do protocolo de tratamento para hepatite C e já há sinais de negociações para estabelecer os custos e preços no Brasil. A questão da sustentabilidade financeira da resposta ao acesso e à expansão do tratamento não terá como fugir da agenda dos gestores públicos.
Grupos da sociedade civil de defesa da saúde pública estão buscando caminhos de superação da barreira patentária. Em maio deste ano, organizações locais da Argentina, Brasill] , China, Rússia e Ucrânia se uniram para contestar patentes do sofosbuvir por meio das chamadas oposições de patentes, além de iniciativas também na Índia. Já se começam a sentir os efeitos: Índia e China dão sinais de que se posicionam pela não concessão de patentes chave.
Esses precedentes devem ser considerados pelos escritórios de patentes dos demais países, e possibilidades de produção de alternativas genéricas começam a se tornar uma esperança neste mar de incertezas.
O caminho é longo mas precisa ser trilhado. É necessária uma resposta enérgica e coletiva dos vários setores da sociedade aos preços altos de medicamentos vitais à sobrevivência e à qualidade de vida de milhões de pessoas.
* Pesquisadora do Núcleo de Assistência Farmacêutica da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz)
[1] Sofosbuvir, simeprevir, daclatasvir, desabuvir e as combinações em doses fixas ledipasvir + sofosbuvir e ombitasvir + paritaprevir + ritonavir