O impeachment, o antes, o agora e o depois
O futuro do Brasil se encontra em aberto, considera o pesquisador José Maurício Domingues, do Iesp/Uerj e do CEE-Fiocruz, em extenso artigo (leia na íntegra abaixo), no qual analisa a crise política, suas causas – localizadas dentro e fora do governo da presidente Dilma Rousseff e do Partido dos Trabalhadores –, e possíveis caminhos, sem deixar de considerar que o processo de impeachment de Dilma é “instrumento perigoso e de potencial altamente antidemocrático”, pelo qual ignora-se a vontade popular tal como manifestada em eleições e usurpa-se a soberania nacional.
O artigo analisa o papel do Jucidiário que passa à linha de frente, ocupando espaço na crise de representação que vivemos, e leva o deputado Eduardo Cunha e o vice-presidente Michel Temer a buscar livrar-se “dessa corporação incômoda”; a trajetória do ex-presidente Lula, cuja habilidade política, ao lado de uma economia global a seu favor e “uma agenda modesta porém afinada com alguns dos desejos mais básicos de grande parte da população funcionou”; e o governo de Dilma, com sua “dificuldade de fazer política” e que encontrou pela frente uma alteração das variáveis que até então possibilitavam Lula governar.
Vivemos, segundo o pesquisador, uma novíssima história do Brasil, ainda que não aquela mais desejada, capaz de fazer direitos e liberdade avançarem. “As estratégias da direita são outras e assim devem ser a da esquerda”, considera. Ele defende que é preciso resistir com vigor à agenda regressiva de um eventual governo Temer – arrocho fiscal mais acentuado ainda do que o que se encontra em curso, mudanças na legislação trabalhista e da previdência e entrega do Pré-sal. Mas que é preciso reconhecer, também, que a correlação de forças não é favorável a uma tentativa de ofensiva da esquerda em que provavelmente se colheria mais uma derrota.
“O sistema político entrou em colapso. Nada que não signifique sua renovação profunda e passe pelo voto popular poderá salvá-lo, embora, fazendo-se mais autoritário, possa sobreviver por certo tempo. A população nele não se reconhece”.
Leia o artigo na íntegra, abaixo.
O impeachment, o antes, o agora e o depois
José Maurício Domingues
A conjuntura e o impeachment
E o pior aconteceu. Um processo de impeachment comandado por um presidente da Câmara dos deputados que é notório criminoso, réu no STF, denunciado por variados crimes, o mais recente de haver faturado 52 milhões de reais nas obras do Porto Maravilha. Um processo que chegou ao cúmulo de ter um fascista abertamente fazendo a apologia não apenas da ditadura militar mas também da tortura e do torturador da presidente da república. Dias sombrios, difíceis de serem assimilados. Momento defensivo para as forças de esquerda, progressistas e democráticas em geral.
Perder uma eleição é normal – e assim deveria ser visto, como não foi em 2014, pela esquerda. Com o nível de desmoralização com que a derrota se concretizou no processo do impeachment, seu efeito é mais duro e profundo.
Não se trata de desesperar. Apesar do sucesso do golpe branco do impeachment, as mobilizações contra ele nos dias que antecederam ao fatídico dia 18 de abril de 2016 viram as ruas e praças do país ocupadas por forças democráticas. Viram os jovens acorrerem em massa à luta pela defesa da democracia; e quando aí não estavam, por descrença no sistema político em seu conjunto, se organizarem para mudar o mundo de forma mais direta e autônoma. A política em geral e a política progressista voltaram a energizar a sociedade brasileira. Momento difícil para a esquerda, progressistas e democratas, que porém revela um sistema político podre e mesquinho – como se viu nas votações pelo impeachment, embora certas qualificações devam ser feitas nesse sentido –, bem como lança às ruas forças populares que pareciam adormecidas até 2013. O passado se foi. Vivemos uma novíssima história do Brasil. Não a que queríamos, que fizesse direitos e liberdade avançarem. Mas não se trata de uma volta a 1964. As estratégias da direita são outras e assim devem ser a da esquerda. O futuro do Brasil se encontra em aberto.
Os passos imediatos não podem ser os do desespero e de uma radicalização que implique em aceitar provocações que fortaleçam os setores mais a direita, que querem aproveitar este momento para avançar em sua agenda não somente neoliberal, mas também antidemocrática. Uma campanha por eleições diretas pode ser positiva, ainda que seja improvável que se faça vitoriosa, sendo capaz de relevar a ilegitimidade do governo de Michel Temer e sua camarilha. É preciso resistir com vigor à agenda regressiva do governo Temer – arrocho fiscal mais acentuado ainda do que o que se encontra em curso, mudanças na legislação trabalhista e da previdência, entrega do pré-sal. É preciso reconhecer, contudo, que a correlação de forças não é favorável a uma tentativa de ofensiva da esquerda em que provavelmente se colheria mais uma derrota.
O sistema político entrou em colapso. Nada que não signifique sua renovação profunda e passe pelo voto popular poderá salvá-lo, embora, fazendo-se mais autoritário, possa sobreviver por certo tempo. A população nele não se reconhece. Marx observou, no Dezoito Brumário, que quando o sistema político entra em colapso, outros agentes saltam à cena. No caso que investigou, tratava-se do aventureiro Louis Bonaparte (que Marx teimosa e incongruentemente quis relacionar de maneira direta às classes sociais), em 1964 foram os militares (neste caso mais diretamente representando as classes dominantes). Hoje o judiciário vem para a linha de frente exatamente por conta da crise de representação que vivemos, com gosto ou mesmo a contragosto, ou até a sua própria revelia. O golpe de Cunha e Temer visa exatamente se livrar dessa corporação incômoda (na qual o topo e agente principal é mesmo Rodrigo Janot, procurador-geral da república, o juiz Sérgio Moro cumprindo papel subsidiário). Mas como a crise do sistema político não será superada – realmente tende a se agravar com esse golpe branco – é muito improvável que consigam realizar seu intento. Se o fizerem, armam uma bomba de tempo que mais adiante explodirá.
Entre o que se pode definir como o sistema político estatal, ou seja, aquele cuja organização se vincula ao estado, e aquele que se pode conceituar como o sistema político societário, isto é, cujo funcionamento ocorre no seio da sociedade, mediadores têm de operar, de modo a permitir que haja ao menos uma parcial tradução de desejos e interesses, de um lado, e regras, decisões e políticas públicas de outro. Os partidos políticos são desde o século XX cruciais nesse sentido, embora globalmente isso esteja em declínio, com os partidos sendo estatalizados, o poder do dinheiro crescendo e o que se chamou de “democracia da audiência”, em que cidadãos são totalmente passivos, se afirmando. No caso brasileiro isso está atingindo um momento de crise aguda, que não se sabe como se resolverá. Basta recordar a reação do sistema em sua quase totalidade às manifestações de 2013, bem como à Operação Lava-Jato, de repulsa velada ou aberta. O PT, outrora crítico acerbo do sistema, hoje é sócio menor dele – e tem reações do mesmo tipo. Queimou ademais muitos laços, partes significativas do sistema político societário – cujo elemento último é afinal de contas o cidadão-eleitor –, não obstante vínculos com movimentos sociais e camadas importantes do eleitorado em função de sua identificação com as classes populares e causas progressistas, bem como o apoio de largas fatias da população à luta contra o impeachment.
O STF é lento realmente para processar ações penais – observe-se que Fernando Collor foi absolvido do suposto crime de responsabilidade que levou a seu impeachment somente há poucos anos. Assim, ações contra aqueles que possuem foro privilegiado tardam, e muito, a serem julgadas. O STF evita ainda ser tragado pela crise política, as confusões do sistema político enquanto tal, embora inevitavelmente opere em suas margens. Tentando garantir certa neutralidade – afora obviamente no que se refere ao escandaloso caso do ministro Gilmar Mendes e sua agenda conservadora, abertamente vocalizada em seu antipetismo –, busca ser um elemento de defesa da institucionalidade democrática, interpretada de forma diversa, evidentemente, por cada um de seus ministros. Em suma, evita assumir papel de árbitro na conjuntura, conquanto seja solicitado a fazê-lo por agentes diversos do sistema político. Daí a que resista a ser tragado para dentro do que seu presidente, Ricardo Lewandowski considerou uma definição política – “golpe” –, a qual opôs o que seriam significados puramente jurídicos da situação, embora isso seja, sociologicamente falando, a rigor, impossível, ainda que compreensível.
Isto posto, importa entender como se chegou a derrota tão profunda e o que estrategicamente se pode considerar no médio e no longo prazos, em face do cenário tão dramático e deprimente em que nos encontramos. Um largo ciclo se conclui, de avanços democráticos e sociais muito importantes, ainda que sem reformas estruturais mais recentemente. Não se trata de pensar que o capitalismo e a democracia no Brasil são fenômenos necessariamente em oposição. Em certo sentido, muito geral e global, isso é verdade – capitalismo e democracia, pensada em profundidade, se opõem; porém concretamente é a dinâmica política específica do país que importa considerar, sem concessões a avaliações fáceis de que as classes dominantes brasileiras seriam muito piores que as de qualquer outro lugar. Por que aquele ciclo terminou tão mal é questão primeira a ser respondida para que se possam delinear novos passos que superem os limites que acabaram se revelando no campo das forças democráticas e populares.
Os caminhos da derrota e sua revisão
O Brasil é um país complicado politicamente. A esquerda, embora sempre expressiva em sua história, nunca conseguiu maioria, acabando golpeada por uma direita para a qual a democracia não passava de instrumento a ser utilizado de acordo com suas conveniências de momento. A derrota da ditadura viu mudanças significativas nessa situação, com um avanço consistente das forças progressistas e uma acomodação das forças conservadoras à democracia liberal. Foi nesse quadro, no qual o projeto neoliberal rapidamente mostrou fadiga no que se refere a suas políticas macroeconômicas, que Luiz Inácio Lula da Silva e o PT chegaram ao poder.
A vitória de Lula na eleição de 2002, articulada por uma frente de esquerda que nem de longe tinha maioria para governar, demonstrou as dificuldades que o sistema misto brasileiro pode impor a governantes que queiram mover-se além dos parâmetros de estabilidade do sistema político e da correlação de forças sociais mais amplamente, que, além de tudo, não necessariamente se traduz na distribuição de forças no parlamento. Trata-se de fenômeno conhecido desde os anos 1950-60, repetido após a redemocratização.
Lula elegeu-se representando, em segundo turno, o conjunto da nação, encarnando diretamente seus desejos de mudança. Mas o Congresso Nacional representa, e nesta eleição isto foi reiterado, uma miríade de interesses dispersos e muito mais complexos que aquela perspectiva mais concentrada de mudança corporificada no novo presidente. Obviamente, a refração – neste caso enorme distorção – gerada pelo peso do financiamento empresarial de campanha na representação do Congresso agravava o que em si já seria um problema de complexa administração política. As crises sucessivas que se seguiram, a dificuldade de manutenção da base de apoio ao governo, os custos de vários tipos em que se incorreu eleitoralmente e depois já no governo para manter o controle a agenda política e do Congresso, decorrem diretamente disso.
Enquanto a habilidade política de Lula, uma economia global muito a seu favor e uma agenda modesta porém afinada com alguns dos desejos mais básicos de grande parte da população funcionou, foi possível driblar os obstáculos que se punham em função dessa disjunção entre Presidência da República progressista e Congresso conservador. Quando essas variáveis se alteraram, tudo se complicou. Dilma não sabe fazer política e não poderia ser ungida candidata à presidência. A economia global persiste em sua crise. E é patente que o governo federal e o PT não tinham, antes do ajuste absurdo e ademais inconsistente que a presidenta impôs ao país, agenda com perspectivas de longo prazo, abertura e coerência que pudessem garantir uma interlocução com a população. Mas o que levou a débâcle em que nos encontramos hoje, para além do seria uma derrota eleitoral normal, foram também erros seguidos, alguns dos quais revelam problemas mais profundos de concepção política.
Em primeiro lugar, a definição monocrática, por parte de Lula, de Dilma Rousseff como candidata. Não tem sentido evocar a popularidade e uma suposta genialidade política de Lula – que ademais mostrou-se falsa – para justificar seu poder de escolha imperial. Nenhuma agremiação ou frente de esquerda séria na América Latina procede desta maneira. Além disso, Dilma comportou-se de forma autossuficiente, incapaz de ouvir vozes que dela discordassem. Operou em seu primeiro mandato uma política econômica com erros repetidos. Estes vão desde uma leitura, ainda em 2011, equivocada da crise internacional (o que a levou a dar uma freada na economia brasileira da qual esta nunca se recuperou) a uma política de isenções e gastos que acabou por gerar problemas fiscais de magnitude significativa, ainda que talvez não profundos como afirmavam seus adversários neoliberais, avaliação que ela mesma acabou permitindo que ganhasse espaço na opinião pública e acabou assumindo. Por outro lado, uma viagem nacionalista-petroleira, ao estilo dos anos 1950, acabou por tomar conta da esquerda. Era como se esse dinheiro já estivesse inclusive disponível, o que se provou absolutamente falso, e pudesse, caso estivesse, resolver nossos problemas de desenvolvimento, o que consistia em suposição discutível. Isso sem falar da virada programática praticada após sua segunda vitória – de fato, goste-se da expressão ou não, deliberado estelionato eleitoral – e a política econômica desastrosa que daí se seguiu (receita que, de resto, se mantida seguramente nos levará à ruína, pois fiscalmente insustentável, além do que se configura como seu dramático custo social).
Se com o chamado mensalão o PT sofreu muito, com o deslanche da operação Lava-Jato e a revelação da corrupção na Petrobras as coisas se complicaram ainda mais. Acuado, o partido preferiu bater de frente com a Justiça em vez de reconhecer seus equívocos e buscar legitimar-se novamente junto à população. O impacto sobre o partido, a despeito do fôlego que paradoxalmente a luta contra o impeachment lhe vem proporcionando, ainda se fará sentir, sobretudo do ponto de vista eleitoral. O mais grave de tudo, porém, diz respeito à maneira de o PT operar, que Lula amaciava sob certos aspectos; Dilma, ainda que trombando com o partido, a levou a sua máxima potência, com resultados desastrosos para ela e a agremiação.
Para ganhar eleições, ter apoio social e governar, dois conjuntos de forças devem ser bem articulados e sólidos. Entre a população é preciso ganhar a simpatia da maioria ou ao menos de setores expressivos, neutralizar outra parte, cuja simpatia não se pode conquistar, com isso impedindo que os setores opositores lhes ofereçam uma saída política viável. Por outro lado, no que tange às forças políticas organizadas, é necessário um sistema de apoio mais ou menos estável. Do contrário, faltando uma dessas coisas, a situação azeda e uma força política se torna incapaz de conduzir o país. De uma maneira ou de outra, Lula e o PT conseguiram, em condições bastante delicadas, garantir essas duas operações. Tinham o sindicalismo organizado e as classes médias, assim como parte já significativa dos mais pobres, em geral desorganizados, como base sustentação política e eleitoral; e, aos trancos e barrancos, montaram no Congresso um sistema de apoios que em parte ao menos – e com altíssimo custo, literalmente – solucionava a disjunção entre presidência progressista e congresso conservador. Aos poucos, todavia, isso desmoronou.
É claro que a deterioração da economia contribui, mas os erros foram de natureza fundamentalmente política. Se o mensalão alienou as classes médias de maneira geral (levando ao que José Dirceu definiu como a necessidade de um giro nas bases de apoio do PT, rumo aos pobres e mesmo aos grotões, o que o programa Bolsa Família em particular facultava), o que se seguiu foi um disparate. Não só o PT e o governo caíram na esparrela neoliberal de criar – como se tal fosse possível – uma suposta “nova classe média” (na verdade pobres que tinham algum dinheiro no bolso e tinham suas vidas cada vez mais capturadas pelo sistema financeiro), mas antagonizou muitos setores que poderiam ser ao menos parte ganhos para seu projeto.
No caso do mundo universitário e de pesquisa, isso foi evidente no governo Dilma. Depois de avanços e a conquista desses setores nos governos de Lula, com uma estratégia cuidadosa seguida pelo MCT (comandado pelo PSB e o PCdoB), o governo Dilma redefiniu toda a política da área, rompendo o sistema de alianças que aos poucos se fora constituindo. Absurdos como o caríssimo programa Ciência sem Fronteiras foram postos em prática, sem nenhuma consulta sequer à comunidade científica, e conflitos com os professores das universidades federais logo emergiram por questões salariais. Com o programa Mais Médicos, fruto da cabeça de um marqueteiro que posava de grande bruxo, mas que de política provou nada entender, toda a corporação dos médicos foi alienada, não obstante os méritos relativos que o programa tem em relação aos mais pobres e de mudanças na formação de profissionais da área. A classe média ademais se manteve e foi mantida cativa de planos de saúde cujo poder na agência que os deveria regular, cedido graciosamente pelo governo, significava enorme liberdade para explorar ao máximo médicos e pacientes, com a ampliação da cobertura não significando universalização de fato do SUS.
O governo aparelhou a Polícia Federal, mas a manietou, trabalhando em certos casos para abafar, já no governo Lula, escândalos como o Banestado, o que parece ter criado grande mal estar nessa corporação, no Ministério Público Federal e entre os juízes (como revelado pelo jornalista Luis Nassif – e pelo senador Roberto Requião). Além disso, ao passo que aceitou totalmente o corporativismo do MPF, não se deu conta de como se moviam para combater a corrupção, aliás plataforma explícita com a qual se elegeu o atual Procurador Geral da República. Isso sem falar de que o PT continuou atuando como se a PF não tivesse sido modernizada e reagindo muito mal quando o sistema judiciário tomou o partido – mas sobretudo na verdade o PP e o PMDB – como a bola da vez.
Em suma, o isolamento do PT e do governo na sociedade se aprofundava e a resposta era – e segue sendo, espantosamente – a desqualificação da sociedade, não a correção de rumos e a necessária humildade para reconhecer erros e retificá-los. A autocrítica continua a ser recusada mesmo após a acachapante derrota de 17/04/2016, como se vê mesmo na declaração do diretório nacional do partido sobre o ocorrido.
No que se refere ao sistema político, um duplo e contraditório processo teve lugar. Como já observado acima, o PT, sob o comando de Lula, converteu-se em elemento importante de seu funcionamento, adotando esquemas e posturas que o fazem um sistema político que não escuta e não gosta de responder à sociedade. O problema é que, sendo parte do sistema, o partido e sobretudo a presidenta o trataram muito mal. Isso é verdade no que toca os grandes caciques do PMDB, que ela quis flanquear, ajudando a consolidação de partidos médios e dando-lhes poder. Mas foi talvez até mais grave em particular em relação ao chamado baixo clero. Este se compõe majoritariamente de deputados do interior, cujas demandas são pequenas aos olhos da grande política – que hoje de resto não existe –, porém de fato legítimas, resolvendo-se em geral no atendimento de emendas parlamentares que lhes permitem dar respostas a suas bases e cumprir com suas promessas eleitorais. Se o isolamento social era crescente, no parlamento o mesmo fenômeno se reproduziu.
Não contente com isso, o PT produziu uma campanha eleitoral em 2014 em que ganhar a qualquer custo se pôs no centro de sua estratégia. Uma enorme reificação do poder se evidenciou (embora certos receios em relação à Lava-Jato tenham talvez aparecido na ferocidade com que se lançou à campanha). Isso apresentou-se duramente em especial no que se refere às classes médias e ao eleitorado do PSB e de Marina Silva (o que já havia se esboçado em relação ao próprio Eduardo Campos). Na verdade, a candidatura de Campos era já expressão do mau tratamento que Lula e o PT dispensavam a seus aliados, incapazes de aceitar que aquele era obviamente o melhor candidato da coalizão. Bem observadas as coisas, foi aí que começou a ruir o projeto do PT, ao perder um de seus principais aliados, hoje totalmente alinhado com a oposição, ao ponto de haver votado quase em bloco pelo impeachment. O hegemonismo do PT, para além da hegemonia que desfrutou no conjunto da esquerda, cobrou aí seu preço mais alto e evidente. Segue-o cobrando no ódio mútuo que o partido e parte da Rede de Marina Silva mantêm desde as eleições de 2014. Em suma, sem reconhecer a real correlação de forças na sociedade e seu isolamento, que recomendava recuos, sem rendição – ao contrário do que fez Dilma, instada por Lula deve-se sublinhar, após a eleição – a campanha eleitoral petista foi vitoriosa (por um triz, vale ressaltar). Isso implicou em contrapartida numa brutal derrota política e na animosidade de setores muito importantes da vida política nacional.
Mais amplamente, um problema precisa ser assinalado: o PT, em particular Lula, nunca quiseram ou souberam disputar o que Gramsci chamou de “hegemonia” em seus Cadernos do cárcere. Ou seja, a capacidade de dirigir a sociedade através da criação de um campo de ideias que levasse a maior parte da população a apoiar suas políticas e ativamente mobilizar-se por elas. Ao contrário, aceitou-se o discurso neoliberal – não somente no sentido de reconhecer os limites que conjunturalmente impunha, calcado no consumo individual. De resto isso se revela na incapacida