Estudo aponta surgimento de novo arranjo federativo no SUS durante a pandemia
Informe Ensp/Fiocruz (Danielle Monteiro)
A pandemia levou a inovações importantes no modelo brasileiro de organização federativa, com a emergência de novos arranjos de poder, de distribuição de recursos e de exercício de responsabilidades entre as esferas e instituições da federação. A conclusão é de estudo apresentado no 2º Fórum de Ciências Sociais e Saúde do Departamento de Ciências Sociais (DCS/ENSP), pelo pesquisador do DCS/Ensp e do Centro de Estudos Estratégicos Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz) Assis Mafort e pela pesquisadora do CEE-Fiocruz Sonia Fleury. O evento teve como debatedor o pesquisador José Mendes Ribeiro e como coordenador o pesquisador Marcelo Rasga Moreira, ambos da Ensp.
Os resultados iniciais são da pesquisa Novo Federalismo no Brasil? Tensões e Inovações em Tempos de Covid-19, um dos nove projetos integrados do CEE, que constatou a emergência de uma nova dinâmica federativa já no primeiro semestre de 2020, caracterizada por uma coordenação mais descentralizada e horizontal, exercida, no âmbito do SUS, pelos estados em articulação com os municípios, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF).
O surgimento do arranjo ocorreu como resposta emergencial diante da ausência do Ministério da Saúde no seu papel clássico de coordenador nacional do SUS, rompendo o modelo clássico de um federalismo cooperativo e integrado verticalmente, instituído pela Constituição de 1988 e as Leis Orgânicas da Saúde.
Na ocasião, Assis explicou que o modelo vigente nas últimas três décadas já vinha sofrendo um desgaste, desde 2014, devido às crises política, econômica e fiscal, ao esvaziamento paulatino da capacidade de coordenação do Ministério da Saúde, ao teto de gastos, entre outros fatores.
Segundo o pesquisador, a emergência da pandemia gerou um conjunto de pressões e oportunidades para os atores se recolocarem nesse novo cenário. “A pandemia deflagrou uma conjuntura crítica e impulsionou inovações importantes não somente nesse arranjo de distribuição de responsabilidades entre o Ministério da Saúde, estados e municípios, mas também no arranjo de relações entre os poderes, ou seja, do Poder Executivo federal com o STF e o Congresso Nacional”, observou.
Nesse novo cenário, a coordenação de ações, a formulação de políticas e a mediação de conflitos, funções essenciais de uma política pública, concentradas no governo federal nas últimas décadas, foram descentralizadas, fragmentadas e especializadas, se tornando responsabilidades também dos estados, que, assim, ganharam um protagonismo maior, conforme explicou Sonia: “A autonomia dos entes subnacionais aumentou na medida em que houve recursos liberados pelo Congresso para a área de Saúde, o que facilitou a implementação de medidas por parte dos entes subnacionais, reduzindo esse poder financeiro antes centralizado no Ministério da Saúde. Com isso, os estados é que assumiram grande parte da coordenação das ações”.
Sonia explicou que o princípio organizador do federalismo é a ideia de construção de unidade na diversidade. Para que isso se materialize, são criados pactos, assim como instituições e instrumentos que viabilizem e operacionalizem esses pactos. Essa aceitação das diferenças pressupõe uma autonomia dos entes participantes, mas uma autonomia que não leve a uma fragmentação. A ideia é compor uma unidade para que todos possam se beneficiar dela. “No Brasil, o grande desafio é ter um federalismo simétrico em uma sociedade com grandes assimetrias. Isso torna mais difícil a uniformidade pressuposta nos poderes e competências de cada um dos entes governamentais. No entanto, tivemos uma vantagem. Tivemos duas questões diferentes na pandemia: havia, por um lado, mecanismos de coordenação que já existiam anteriormente e davam certo poder aos atores. E, por outro lado, a existência do SUS, que pôde garantir maior capacidade de se dar uma resposta a uma conjuntura crítica na ausência de uma coordenação por parte do nível federal”, afirmou.
O estudo analisou a produção legislativa do Congresso Nacional, as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e os decretos de 11 estados, em 2020, durante a pandemia, tomando como base as políticas desenvolvidas nos campos da regulação social e gestão territorial, assim como as principais medidas de organização da rede de serviços e as políticas de proteção de emprego e renda. Os decretos analisados pela pesquisa revelam, ainda, segundo os pesquisadores, uma forte articulação dos governos estaduais entre si, visando exercer o protagonismo mediante a construção de estruturas de governança e de iniciativas de enfrentamento da pandemia. Assim, o estudo revelou também algo inédito e inovador no modelo federativo do país ao longo da pandemia: um SUS mais ‘estadualizado’, diferente da dinâmica anterior, marcada pela relação mais direta entre a esfera federal e os municípios.
Foi observado também o protagonismo do Congresso Nacional na elaboração de grande parte de políticas de apoio a estados e municípios. “Enquanto a coordenação federativa foi exercida pelos estados, a formulação de políticas foi realizada pelo Congresso Nacional. Dos 34 projetos analisados, 26 foram formulados pelo órgão constitucional, revelando um congresso muito mais próximo da sociedade civil e mais articulado com estados e municípios”, afirmou Assis.
Segundo o pesquisador, no período, houve uma especialização do Congresso Nacional nas políticas de proteção de emprego e de renda e na área de política fiscal. “As grandes inciativas de aportes de recursos e de criação de um ambiente fiscal e orçamentário favorável aos estados e municípios foram criadas pelo Congresso. Entre elas, a flexibilização das metas e dos limites da lei de responsabilidade fiscal, a suspensão do pagamento das dívidas de estados e municípios com a União, a transferência direta de recursos para compensar a perda de arrecadação, a flexibilização de regras de usos de recursos transferidos fundo a fundo, a transferência de recursos diretos para o apoio de parceiros estratégicos do SUS e a criação de programas importantes, como o auxílio emergencial, entre outros”, explicou.
A pesquisa indicou também uma reversão de jurisprudência do STF, cujas decisões passaram, em sua maioria, a defender as prerrogativas dos estados e municípios. “Isso mostrou que, no entendimento do STF, o SUS descentralizado tem base constitucional. Esse é o modelo institucionalizado no âmbito da federação brasileira”, afirmou Assis.
Para o pesquisador, diante dos resultados da pesquisa, ainda que iniciais, é possível afirmar que houve uma conjuntura crítica no sentido de produção de um modelo/arranjo diferente de federalismo. “É um arranjo novo típico de uma conjuntura crítica, sim. Agora, a grande questão a se refletir é em que medida ele é temporário e deixará um legado, ou seja, uma dependência de trajetória, com as inovações que foram produzidas nessas novas relações de poder, de distribuição de competências e de recursos entre as esferas. É muito cedo para se dizer que esse modelo será permanente ou temporário, isso vai depender de uma quantidade expressiva de fatores”, concluiu.
Debater do evento, o pesquisador do DCS/ENSP, José Mendes Ribeiro, comentou que as políticas públicas trazem um certo incentivo e uma necessidade lógica centralizada que entram em conflito ou fazem um entrelaçamento com o modelo federativo e a descentralização preconizada no SUS. “O pano de fundo é: Precisamos de federalismo? Federalismo para quê? Depende, depende de quais são os objetivos e os valores. Para nós, os valores que compartilhamos são os de equidade, redistribuição de renda, compensação de desigualdades passadas, política de proteção social, entre outros. Podemos retraduzir essa pergunta ‘Federalismo para quê?’ à luz desses valores”, afirmou.
Os resultados preliminares da pesquisa foram publicados em cinco artigos, sendo um no XIII Congresso Latino Americano de Ciência Política (2022) e quatro na Revista Saúde em Debate do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes). A pesquisa abrange, além da análise da atuação estados, do Congresso e do STF, também estudos sobre o papel dos municípios, dos consórcios estaduais de desenvolvimento, da CPI da Pandemia e da Frente Pela Vida.
Assista, abaixo, à transmissão completa do evento: