Privatizar atenção básica eleva desigualdade no SUS
Em 2021, haverá uma explosão de demanda no SUS, avalia a sanitarista Sonia Fleury, pesquisadora do CEE-Fiocruz, em entrevista concedida ao jornal O Povo, do Ceará. Subfinanciado ao longo das décadas e desfinanciado como consequência da Emenda Constitucional 95/2016, o sistema precisará dar conta de uma demanda retida de todos os usuários que não foram atendidos em seus tratamentos de rotina, devido à pandemia de Covid-19, e daqueles que perderam seus planos de saúde, com a crise econômica, e passaram/passarão a utilizar mais o sistema, observa Sonia. A hora, portanto, defende, é de aumentar e garantir recursos, não de reduzir.
A sanitarista analisa também o aceno do governo para uma articulação de parcerias com a iniciativa privada na atenção básica, vide o Decreto 10.530, de 27/10/2020. A iniciativa, conforme observa Sonia, pode ampliar as desigualdades em saúde no país e põe em risco o caráter público do SUS.
Leia a íntegra a seguir.
Por Ana Rute Ramires, O Povo
O aceno do Governo Federal para a articulação de parcerias com a iniciativa privada na atenção básica representa um risco de aumento da desigualdade no Sistema Único de Saúde (SUS). Na perspectiva de Sonia Fleury, doutora em ciência política e pesquisadora do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), municípios menores não têm atrativos econômicos para as parcerias e poderiam ser prejudicados. Nesse contexto de parcerias, é preciso que as relações estabelecidas e os decretos sejam muito claros para que não haja ameaça ao caráter público do SUS, defende a professora, que é autora de livros sobre a Reforma Sanitária.
Decreto publicado na terça-feira, 27 de outubro último, pedia estudos para avaliar a possibilidade de conceder à iniciativa privada as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) — porta de entrada para o sistema. Após repercussão negativa, presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e Ministro da Economia, Paulo Guedes, negaram tentativa de privatizar o sistema. Para Sonia, as falas de ambos dizem mais sobre a posição do governo do que o decreto, considerado vago.
Com a pandemia, ela avalia que em 2021 haverá explosão de demanda no SUS.
Na última semana de outubro, o presidente assinou decreto que autorizava o ministério da Economia a realizar estudos sobre a inclusão das unidades básicas de saúde (UbSs) no programa de parcerias de Investimentos da presidência da república (ppI). No que consiste esse tipo de parceria?
A PPI envolve investimentos de construção da própria unidade. Por exemplo, o caso do Hospital do Subúrbio, em Salvador. Em que constrói, equipa e fica durante um período responsável pela unidade. A PPI envolve investimentos e o que chama muita atenção são duas coisas. Uma é o fato de o Ministério da Saúde não ter participado disso. O decreto é super vago, não diz coisa nenhuma. Mas as declarações posteriores do ministro (da Economia) Paulo Guedes e do presidente da República são muito mais esclarecedoras que o próprio decreto. Quando eles tiveram que revogar o decreto porque houve uma reação enorme no Twitter, com 90% das pessoas contrárias, eles explicaram. O Guedes com a história dele de sempre, um voucher maníaco. Acredita que as coisas devem ser de propriedade privada e dar um voucher para que o beneficiário do SUS vá pagar esse serviço quando for atendido. Esse é um modelo chileno que tá sendo completamente rejeitado e abolido, mas ele tem fixação no liberalismo chileno. O Bolsonaro também falou sobre as pessoas irem na atenção privada e serem atendidas com o SUS pagando. Nas falas, fica muito claro que a propriedade ficaria privada. É diferente das OSs (Organizações Sociais) e das PPPs (Parcerias Público-Privadas) em que a propriedade é pública. Fica muito mais claro que essas unidades passariam a ser privadas, construídas e mantidas como privadas simplesmente canalizando recursos públicos para os atendimentos. Parece bastante lógico porque, de outra forma, no investimento em atenção primária, que é barato e que não consome muita tecnologia, de onde viria o lucro? Só pode vir se for da propriedade privada explorada e com um mercado garantindo, que é o mercado público com o SUS pagando. Aí fecha a lógica da coisa.
Dos serviços de saúde do país, 13% são terceirizados. Qual o cenário de parcerias com a iniciativa privada no SUS? Quais serviços já são terceirizados?
Sonia - Desse número de 13%, a maioria são OSs (Organizações Sociais). Por que os governos municipais, independentemente de partidos políticos, terminaram contratando OSs? Porque depois da lei da responsabilidade fiscal, essa é uma forma oficial, aceita pelos tribunais de contas de burlar a Lei de Responsabilidade Fiscal. Então, em vez de contratar, você contrata uma empresa, ela contrata os funcionários e isso não entra no teto fiscal. O que é um absurdo. Porque, na verdade, o que deveria ser é que as áreas de saúde, assistência e educação não computassem dentro desse teto. Não há interesse comercial por municípios pequenos. São as grandes cidades onde existem esses contratos de OS e não em municípios de 5 mil, 20 mil habitantes. Então, se você começa a privatizar, é claro que vai aumentar a desigualdade na atenção.
Quais as repercussões de uma terceirização especificamente na atenção primária?
A primeira coisa a entender é que o SUS é um sistema que tem como um dos princípios a participação através de conselhos e conferências. Serviços privados contratados não se submetem ao controle social. Então, já desvirtuam um princípio básico do SUS. O próprio Mandetta (Luiz Henrique, ex-ministro da Saúde) já vinha interferindo nessa área. Um pacote básico de medidas. A forma de financiamento do contrato vai privilegiar ações pontuais de recuperação da saúde e pode ser que as ações de promoção acabem sendo deixadas mais de lado porque não serão pagas da mesma forma. Se você começa a pagar mais por certas intervenções, você tá direcionando normalmente as atenções de prevenção ou as naturais a serem mais mal pagas. E as que envolvem mais tecnologia são mais bem pagas. Muda o modelo preventivo e acaba sendo um atendimento curativo.
Uma das justificativas para as parcerias seria a “construção, a modernização e a operação de unidades básicas de saúde”. De que forma é possível obter melhoria no atendimento e celeridade na construção de equipamentos sem que haja a parceria com a iniciativa privada? Primeiro, que essa é uma atribuição dos municípios. Levar para o Ministério da Economia pode ser, para desenhar algum projeto, mas quem resolve onde vai consumir é o município. Atenção básica é da esfera municipal. O que teria que fazer é um diagnóstico com os municípios do que está faltando, como produzir isso. Há uma sugestão da própria equipe econômica, que fala que o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) ia mobilizar os prefeitos para que contratassem esse serviço. Ou seja, haveria empréstimo de dinheiro para isso. Então, por que não fazer diretamente com o setor público? Mas a área econômica não sabia nem responder quantos estavam com essas tais obras paradas. Não foi feito diagnóstico nem com Ministério da Saúde, nem com os responsáveis, que são os prefeitos e secretários municipais. O Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) não foi mobilizado para fazer levantamento disso e de quais necessidades tinham.
Em que medida esse tipo de proposta do decreto pode ferir princípios do SUS, como integralidade e universalidade, além do próprio caráter público?
Não sei se alguém poderia dizer todos os interesses envolvidos. Há especulações. Uma coisa certa é que os planos de saúde não crescem mais do que 25% de cobertura porque não têm classe média para isso. E, agora, com a pandemia muitos saíram dos planos de saúde e voltaram para o SUS porque perderam seus trabalhos, estão ganhando menos. Essa é uma das possibilidades que eles passassem a se interessar pela atenção primária. Especialmente, desde quando eles começaram algo que há 25 anos se faz, que é a atenção primária no Brasil, e perceberam que a prevenção pode ser lucrativa, desde que tenha quem pague. Aqui no Brasil a população é pobre, não tem como pagar planos. Já tentaram passar planos de saúde populares, o Ricardo Barros (líder do governo na Câmara), e isso não passou, porque existe uma regulação de que os planos têm que cobrir muitas coisas que não podiam cobrir. A maneira de expandir para o setor privado é com os clientes entrando pagos pelo Estado. Isso dentro de um projeto que não tem controle social e não tem participação. Nós temos grande dúvida se o SUS continuaria. Há outras especulações em torno do controle de dados, informações de saúde. Mas a primeira que me vem à cabeça é expandir o mercado. Já é o projeto do Ricardo Barros, que é um representante disso, sempre foi esse o projeto. Ele se une agora à área econômica que acha que o Estado tem que se reduzir e fazer daqui um Chile. Enquanto o Chile está fazendo, de lá, o Brasil do ano de 88. Com uma nova constituição que será democrática. O Brasil depende muito de uma relação com o setor privado. O setor conveniado, das Santas Casas, que está dentro do SUS, e tem o setor complementar, que não está dentro do SUS e não está regulado pelo Estado. Em todos os sistemas públicos e universais, sempre há algum tipo de relação público-privada. O importante é saber quem controla quem, que tipo de contrato é feito, como essa relação se dá. Qual a capacidade de controle, de submeter esse setor privado a uma lógica pública e de uma regulação pública. Não parece o caso. Parece ser o caso de levar para a área econômica e privatizar. Se fosse para um fortalecimento do SUS, seria dentro do Ministério da Saúde, pensado junto com os atores da Saúde que tem uma estrutura de governança, o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), o Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde).
O aceno à parceria com a iniciativa privada ocorre em momento no qual os sistemas de saúde universais estão em evidência por causa da pandemia. como a senhora avalia o impacto da covid-19 no sistema e como ele respondeu ao cenário?
Há esses interesses privados que não são de agora, são de muito tempo. Há essa ameaça grande. A ameaça mais imediata é o fato de que o SUS foi subfinanciado durante todos esses anos. A Emenda Constitucional nº 95 (de 2016) não acompanha o teto de gastos e isso desfinanciou fortemente o SUS nos últimos dois anos. Agora, nós tivemos uma suplementação pelo orçamento de emergência que acaba em dezembro. Mas a pandemia não acabou, uma segunda onda está começando a chegar, inclusive no Brasil. Você tem uma retenção de todas as pessoas que não foram atendidas nos seus tratamentos. Uma demanda retida muito grande. E tem as pessoas que perderam planos de saúde e que vêm para o SUS. Ou seja, você vai ter uma explosão de demanda no SUS, e o governo aparentemente quer apenas retirar o orçamento extraordinário, quando seria necessário continuar até o ano que vem, até se equacionar minimamente essa explosão de demanda que vai chegar – e vai chegar nos municípios. Acho que secretários municipais e prefeitos junto com os governadores precisarão ter uma força política muito grande para tentar reverter essa situação e criar mecanismos com a Reforma Tributária que tá querendo tirar o ISS (Imposto sobre Serviços), ao invés de acrescentar e garantir recursos. Vai ser uma briga muito grande esse ano que vem.
*Entrevista publicada no jornal O Povo, em 9/11/2020.