75ª Assembleia das Nações Unidas: clima, biodiversidade, multilateralismo e pandemia

75ª Assembleia das Nações Unidas: clima, biodiversidade, multilateralismo e pandemia

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Foto: Bento Viana / Banco de Imagens ANA

A 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), realizada na última semana de setembro e primeira semana de outubro de 2020, teve como pano de fundo a pandemia pela Covid-19 e o multilateralismo – sobre o qual se manifestaram todos os chefes de Estado e de Governo nas suas alocuções no debate geral, assim como o secretário geral e o presidente da Assembleia, o que abordamos em outro artigo neste mesmo blog. Na Assembleia, realizaram-se sessões especiais sobre clima e biodiversidade. Certamente, não foram temas casualmente introduzidos nos debates da AGNU, pois ambos, pelo viés da Saúde Única (One Health), estão profundamente implicados com a pandemia. São esses os temas que tratamos no presente artigo. 

 

Mesa-redonda de Alto Nível – ações sobre o clima

“O mundo está com febre alta e está queimando”, advertiu o secretário-geral da ONU, António Guterres, ao abrir a Mesa-redonda de Alto Nível sobre Ações sobre o Clima, (ClimateAction), organizada para chamar atenção sobre soluções de alto impacto que os governos, o setor financeiro e a sociedade civil estão implementando, ressaltando os múltiplos benefícios de uma recuperação sustentável que contribua para que o aquecimento global fique no limite de 1,5°C e com emissão zero de carbono até 2050.

No contexto da Assembleia Geral, o anúncio mais surpreendente e mais importante para a questão climática veio do presidente Xi-Jinping da China, que anunciou o plano chinês de ser neutro em carbono até 2060. Apesar de não apresentar muitos detalhes, o anúncio foi saudado por vários chefes de Estado na mesa de Alto Nível. A China é o maior emissor de gás de efeito estufa do mundo, sendo responsável pela queima de metade do carvão consumido mundialmente e o principal importador de petróleo e gás natural. Analistas estimam que essa mudança pode custar até US$ 5,5 trilhões e exigirá o uso de diversas tecnologias, algumas das quais ainda em desenvolvimento.

A crise atual teve grande impacto no uso de energia e nas emissões de CO2. Segundo o relatório da Agência Internacional de Energia (IEA), até meados de abril, a redução semanal média na demanda de energia foi de 25% nos países em lockdown total e de 18%nos casos de bloqueio parcial. Em comparação com o primeiro trimestre de 2019, a demanda global de energia diminuiu 3,8%, a de carvão sendo a mais afetada (queda de quase 8%) e a petróleo (cerca de 5%), como consequência da queda de 50% do transporte rodoviário e de 60% na aviação. As emissões diárias globais de CO2 diminuíram em torno de 17% até abril de 2020 e, no auge das medidas de contenção, as emissões diminuíram em média 26%. A média anual das emissões de 2020 dependerá da duração do confinamento, com uma estimativa de redução entre 4% e 7%. É possível que as ações governamentais e os incentivos econômicos pós-crise possam alterar as emissões de CO2 por décadas.

A crise atual teve grande impacto no uso de energia e nas emissões de CO2. Segundo o relatório da Agência Internacional de Energia (IEA), até meados de abril, a redução semanal média na demanda de energia foi de 25% nos países em lockdown total e de 18% nos casos de bloqueio parcial

Durante o evento, o secretário geral buscou incentivar a implementação de seis ações: investir em empregos e negócios verdes; evitar o resgate de indústrias poluentes; acabar com os subsídios aos combustíveis fósseis; considerar os riscos climáticos nas decisões; trabalhar juntos; e garantir que ninguém seja deixado para trás.Para isso, os países devem preparar planos de recuperação sustentáveis, em consonância com a ciência sobre clima, e proteger a economia e a sociedade, com prioridade às populações vulnerabilizadas. Candido Botelho Bracher, do Itaú-Unibanco, ressaltou que o setor financeiro pode e deve ir mais longe para evitar o desmatamento na Amazônia, e pediu colaboração público-privada.

A Semana do Clima da Cidade de New York, de 21 a 27 de setembro de 2020, realização das Nações Unidas e cidade de Nova York, foi a maior reunião não oficial sobre clima em 2020. O foco do evento virtual foi sobre a forma como vamos reconstruir o mundo após a pandemia da Covid-19. Os temas tratados incluíram: transição para a energia limpa; transporte e infraestrutura;indústria e ambiente construído; finanças, investimentos e empregos; alimentos e uso da terra; natureza e ciência; política dos EUA e internacional; juventude, mobilização pública e justiça; viagens e turismo sustentáveis e impactos climáticos e adaptação.

O próximo evento global da agenda oficial sobre mudança climática será a 26ª Conferência das Partes da Convenção (COP26) daConvenção Quadro das Nações Unidas dobre Mudança Climática (UNFCCC), que se realizará entre 1º e 12 de novembro deste ano, em Glasgow. Os principais temas para a COP26 devem ser a transição para energia limpa, transporte limpo, soluções baseadas na natureza, adaptação e resiliência e “unir tudo para financiar”. No que a ONU denominou “a corrida para Glasgow”, serão realizados vários eventos preparatórios. Além da COP, haverá,no dia 12 de dezembro, um evento global para marcar o quinto aniversário do Acordo Climático de Paris de 2015.

 

Cúpula das Nações Unidas sobre Biodiversidade

A biodiversidade é essencial para as pessoas, inclusive por meio da oferta de alimentos, água limpa, medicamentos, proteção contra eventos extremos e outros serviços ambientais. A perda de biodiversidade compromete o progresso da Agenda 2030 e de seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).A pandemia de Covid-19 destacou a importância da relação entre as pessoas e a natureza e as consequências da ação humana na vida selvagem. Deve servir de advertência sobre a urgência em promover mudanças transformadoras pela saúde do planeta como investimento no futuro.

“A humanidade está travando uma guerra contra a natureza”, disse o secretário geral da ONU, aos Estados-membros durante o segmento de abertura da Cúpula da ONU sobre biodiversidade, que teve a participação virtual de chefes de Estado e de Governo. Estes, em geral, expressaram preocupação de que nenhuma das Metas de Biodiversidade de Aichi de 2020 tenham sido cumpridas.

Guterres também enfatizou que o surgimento de doenças letais como HIV/Aids, Ebola e Covid-19 está ligado à degradação da natureza e que não se trata apenasde uma questão ambiental, mas abrange economia, justiça social e direitos humanos, podendo dar origem a tensões geopolíticas e conflitos. Anualmente, 13 milhões de hectares de floresta são perdidos e um milhão de espécies está em risco de extinção. Continuando nesse caminho, a segurança alimentar, o abastecimento de água e os meios de subsistência serão ameaçados, assim como nossa capacidade de combater doenças e enfrentar eventos extremos.

A Cúpula teve como tema Ação urgente sobre a biodiversidade para o desenvolvimento sustentável, a ser implementadanos mais altos níveis, em apoio a um Marco Global de Biodiversidade Pós-2020 (Post2020 Global Biodiversity Framework), que contribui para a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e para a realização da Visão 2050 para a Biodiversidade, Viver em harmonia com a natureza.

As principais questões abordadas incluíram:

• O enfrentamento da perda da biodiversidade para a erradicação da pobreza, criação de empregos sustentáveis, promoção do desenvolvimento econômico e coerência com a Agenda 2030 e seus ODS. 

• Todas as pessoas dependem de um planeta saudável. A natureza desempenha papel fundamental na alimentação, saúde e o bem estar físico e mental. Estima-se que 4 bilhões de pessoas dependem de medicamentos naturais para sua saúde e cerca de 70% dos medicamentos usados para câncer são produtos naturais ou sintéticos inspirados na natureza. A natureza também contribui para a qualidade de vida, incluindo inspiração e aprendizado, expressão cultural e desenvolvimento físico, psicológico e espiritual. A degradação dos ecossistemas, incluindo o desmatamento, o uso concorrente da terra, a expansão descontrolada da agricultura, particularmente para a agricultura intensiva, e o desenvolvimento de infraestrutura e a exploração insustentável de espécies selvagens propicia a propagação de doenças da vida selvagem para as pessoas. Os investimentos em biodiversidade através da abordagem inclusiva da Saúde Única (One Health)são essenciais para reduzir o risco de futuros surtos zoonóticos e garantir uma recuperação sustentável, equitativa e verde das economias.

O uso sustentável e a conservação da biodiversidade são fundamentais para garantir que ninguém fique para trás. Cada pessoa, em cada comunidade, depende da biodiversidade, mas grupos mais pobres e marginalizados são os mais diretamente vulneráveis à perda de biodiversidade. 

• A restauração da biodiversidade e a implementação de soluções baseadas na natureza serão essenciais para implementar a Agenda 2030 e seus ODSs. A degradação dos ecossistemas está reduzindo a capacidade da biodiversidade para enfrentar as mudanças climáticas e comprometendo o progresso do Acordo de Paris e da Agenda 2030. 

• A Década de Ação e Entrega para o Desenvolvimento Sustentável como oportunidade para deter a perda de biodiversidade e incentivar seu uso sustentável. 

Ações urgentes sobre biodiversidade são necessárias em todos os setores e de todos os atores. A ação sobre a biodiversidade para o desenvolvimento sustentável demanda envolvimento dos setores público e privado, incluindo governos nacionais e subnacionais, cidades, empresas privadas, setor financeiro e sociedade civil. 

A Cúpula também analisou o Quadro global de biodiversidade pós-2020,preparado em processo abrangente e participativo, quedeve ser apresentado à COP15 (15ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica), em Kunming, China, em 2021. Esse quadro, e sua efetiva implementação, devem colocar a natureza em um caminho de recuperação até 2030 para atender a Agenda 2030 e realizar a Visão 2050 de Viver em harmonia com a natureza.

 

Considerações finais

Clima e biodiversidade são circunstâncias profundamente implicadas na emergência das novas doenças de potencial pandêmico, como se viu no caso do surgimento e disseminação da pandemia pelo Sars-Cov-2. As viroses zoonóticas encontram condições propícias de se expandir a partir das profundas transformações que a ação humana produz sobre os ecossistemas onde vírus, outros animais, plantas, ar e solo vivem em equilíbrio dinâmico.

Seguramente as mudanças climáticas em curso vem tendo implicações diretas e intensas sobre a biodiversidade e, ambas, sobre a emergência de novas enfermidades. Por essa razão, foi muito oportuno que ambos os temas tivessem sido abordados na Assembleia Geral das Nações Unidas, espaço único na política mundial para que se construam consensos e prioridades entre os mais altos mandatários dos Estados nacionais de todo o mundo.

Contudo, é imprescindível que as declarações,apenas retóricas, de boas intenções, obtidas nesses conclaves– e que registramos nas linhas acima – sejam substituídas por ações concertadas, corajosas e audazes, pois as mudanças profundas que vêm ocorrendo no ambiente planetário[1] – na maior parte das vezes por ação antrópica – estão levando o planeta a um perigoso ponto de não retorno que, com todas as forças, devemos evitar. 

 

* Os autores são vinculados ao Centro de Relações Internacionais em Saúde (CRIS) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

 

[1] Ver diversos artigos sobre o tema, relacionados com saúde, por exemplo, em: https://www.thelancet.com/journals/lanplh/home