Fins de ciclo e o avanço da crise
"Seja como for, defender a democracia, reorganizar as classes populares e buscar uma nova agenda, bem como repensar estratégias e táticas, para além do taticismo, do pragmatismo e do sectarismo entre as forças populares e democráticas, são temas que se encontram entre as nossas tarefas atuais", defende José Maurício Domingues, no enfrentamento ao “forte nevoeiro”, em meio ao qual navegamos, “com o contorno dos objetos que nos surgem em meio a ele sendo os piores possíveis”.
A crise segue avançando. Não se falará aqui de seus aspectos econômicos e sociais, que se combinam em um círculo vicioso com o caos político. A presidenta Dilma, com baixíssima popularidade e em meio a uma crise econômica que, na virulência com que se abate sobre o país, é fruto da adoção das políticas que seu adversário prometera aplicar caso eleito, traindo ela suas promessas de campanha, não consegue reorganizar sua base congressual. Aferra-se ao poder, antes que a um programa de governo, do qual abriu mão para tentar, a esta altura, preservar os dedos, pois seus anéis evidentemente já se foram. Sequer os ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação e da Saúde foram poupados, o que também não deixa de ser verdade, ao menos em parte, com a Educação – embora outras secretarias ainda estejam em parte preservadas, mantendo-se nelas quadros oriundos da esquerda e dos movimentos sociais.
Pouco efeito parece haver surtido o festival de fisiologismo que o governo e o PMDB protagonizaram, agora secundados por igualmente ávidos partidos menores. Assim avança o impeachment, com as justificativas e ritos os mais esfarrapados possíveis, apesar dos limites processuais definidos preliminarmente pelo Supremo Tribunal Federal.
Pior ainda, o processo é conduzido por um parlamento cada vez mais desmoralizado por manter como presidente o deputado Eduardo Cunha, envolvido nas mais abjetas denúncias de corrupção, ao qual se alia uma oposição que não pode confessar seu projeto de país: aplicar um ajuste ainda mais duro que aquele que enfrenta dificuldades para realizar-se. Vale tudo para conseguir o poder e daí deslanchar suas operações, que no entanto têm apoio em setores importantes dos capitalistas, sobretudo aqueles vinculados mais diretamente ao capital financeiro, pois é difícil ver como os industriais poderiam sobreviver aos planos que se abrigam na mentalidade oposicionista liberal (que inclusive deseja e abraçará, caso chegue ao poder, participação nos tratados de livre comércio dos Estados Unidos).
A situação é sob todos os aspectos deprimente. Evidencia do lado oposicionista um golpismo antidemocrático, ao passo que, de outro, uma fetichização radical do poder se apresenta no campo governista, como se mantê-lo estivesse acima de tudo. O debate político não só não avançou como se deteriora a cada dia nesse quadro de radicalização vazia de programas abandonados e propostas inconfessáveis.
É verdade que a Justiça tem sido implacável unilateralmente – se bem que nada desculpe ou justifique as operações fraudulentas a que PT e PMDB, ainda que seguindo uma longa tradição, em que o PSDB claramente se acha evolvido, impuseram ao Estado brasileiro. Esperemos que continue avançando sobre outros domínios, pois envolver elementos como o presidente do DEM é ainda pouco. Nesse caso, deve valer o benefício da dúvida quanto à cegueira desta velha senhora, embora por suas realizações pregressas pareça pouco provável que venha a justificar maiores esperanças. Mas em particular o Supremo Tribunal Federal, a despeito de figuras sinistras, vem se portando recentemente muito bem, sobretudo ao legislar como cláusula pétrea a proibição que empresas doem a campanhas eleitorais.
Por outro lado, o campo da esquerda se sacode. O PSOL mostra grandes dificuldades para crescer, mas as próximas eleições provavelmente o verão avançar, apesar de sua maneira arcaica de fazer política, pouco preocupada com a mobilização permanente e a abertura de diálogo sistemático com a população. Novidade é a REDE. A julgar pelos quadros que se juntaram a ela, pode conseguir ocupar um espaço de centro-esquerda e atrair a classe média progressista e os jovens, o que o PT a esta altura não tem como fazer. Talvez também por baixo movimentos sociais preocupados com a horizontalidade e a mobilização se estejam urdindo de maneira mais silenciosa, em uma conjuntura que se mostra favorável à direita, como resultado de uma derrota quase autoinfligida da esquerda.
Nesse sentido, podemos dizer que não só o longo ciclo da democratização iniciada em 1970 nas lutas contra a ditadura se esgotou, como aquele em que o PT se pôs como hegemônico e dono quase exclusivo da esquerda brasileira, concebida de forma ampla, vai também se fechando, embora isso não solucione completamente, de modo algum, os destinos dessa faixa do espectro político, cujo futuro está em aberto. O ciclo dos governos Dilma Rousseff é mais incerto, pois são tantos os problemas que acumula que sua sobrevivência é complicada, afora um pacto de fato impossível com as forças da oposição, cujas ambições não se deterão neste momento de fragilidade governamental.
Haveria de se perguntar que preço, ainda mais alto, seria necessário pagar pela manutenção da estabilidade e da ordem. É com efeito muito improvável que a Constituição de 1988 estivesse fora de um pacote que servisse de lastro a essas negociações. Assim, cabe perguntar o que seria mais deletério para a democracia – o impeachment ou a rendição final do governo Dilma, se esta, nos níveis e na forma em que se realizou até agora, já não fosse o suficientemente desmoralizante para a democracia e, em particular, a esquerda. O argumento de que assim se constrói um dique contra avanços ainda mais reacionários se mostra falaz frente à desmoralização da esquerda e sua incapacitação para a luta política. Talvez mais grave, justificam-se deste modo coisas na verdade injustificáveis.
Navegamos em meio a um forte nevoeiro, com o contorno dos objetos que nos surgem em meio a ele sendo os piores possíveis. Pouco escapa da crise geral em que nos enfiamos. Seja como for, defender a democracia, reorganizar as classes populares e buscar uma nova agenda, bem como repensar estratégias e táticas, para além do taticismo, do pragmatismo e do sectarismo entre as forças populares e democráticas, são temas que se encontram entre as nossas tarefas atuais. Por ora ao menos, o povo assiste a tudo bestializado.