Autoritarismo, fundamentalismo de mercado e risco de tragédia social

Autoritarismo, fundamentalismo de mercado e risco de tragédia social

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Fascismo, neoliberalismo e condição periférica foram temas do debate on-line realizado pela Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), em 14/7/2020, com a participação do professor de Filosofia Vladimir Safatle da Universidade de São Paulo, e da professora de Economia Laura Carvalho da mesma universidade. A economista deu início ao evento, lembrando que não é a primeira vez que se associam autoritarismo e versões diferentes de fundamentalismo de mercado na história.

Segundo Laura, historicamente, pensadores influentes na corrente do livre mercado acabaram tendo algum tipo de “flerte com governos autoritários”. Para ela, de certa maneira, não é contraditório levar as ideias do ultraliberalismo ao extremo. “Ao se deixar uma massa de pessoas vulneráveis, sem qualquer tipo de assistência e proteção do Estado, é comum que isso gere algum tipo de caos social, que serve muito bem ao propósito de regimes autoritários e repressivos”, analisou.

Laura destacou haver muitas evidências de que países com menor estado de bem estar social e maiores níveis de desigualdade costumam ter um Estado mais forte na repressão, encarceramento e policiamento. Nesse caso, o Estado mínimo acaba sendo um Estado máximo. “Se não se gerem os marginalizados a partir da proteção e da redistribuição, acaba-se gerindo pela repressão, policiamento, genocídio e encarceramento”, destacou.

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Para a economista o fenômeno bolsonarista nada tem de novo, apenas “difere um pouco no que diz respeito à política econômica de outros fenômenos atuais que estão sendo estudados nessa nova direita”.

Para Laura, uma interpretação possível para esse fenômeno vem da crise econômica profunda que ocorreu entre 2015 e 2016, seguida de uma recuperação lenta que levou à frustração grande da população em relação a sua renda e emprego. “Isso vem depois de um ciclo de governos petistas em que houvede alguma maneira, uma esperança – e que acabou sendo interpretada pelo senso comum como fracasso, inclusive, atrelando corrupção a crise econômica”, pontuou, acrescentando que, no entanto, nenhum economista considera que a corrupção é a causa da crise econômica que o país viveu.  “Isso acabou virando um terreno fértil para a ideia de que o Estado é corrupto, é um corpo estranho, sendo, portanto, necessário se livrar do Estado. Um combo que acaba entre o autoritarismo e fundamentalismo de mercado”,  considerou. 

Já o professor Vladimir Safatle destacou que a filosofia conhece bem o diagnóstico do nascimento da biopolítica, na qual  “se insiste em uma distinção clara entre neoliberalismo e fascismo”. Segundo o professor, há um neoliberalismo autoritário sendo implementado no Brasil, e não seria incorreto dizer que “o Brasil é hoje o laboratório mundial do neoliberalismo autoritário,com uma série de proposições que vão ganhar corpo no interior do fascismo e principalmente do nazismo alemão”. Safatle observa, também, que essa matriz autoritária permanece no horizonte político do neoliberalismo. 

 

Contexto pouco otimista

“Não estamos conseguindo atacar nem a origem dessa crise atual, muito menos responder à altura os desafios para uma possível recuperação, evitando claro, a perda de renda entre os mais vulneráveis”, avalia Laura Carvalho, para quem o mundo da pandemia não é algo independente do mundo pós-pandêmico. “Se as respostas que estão sendo dadas, nessa solidariedade que temos visto na sociedade, da valorização de serviços públicos do SUS, da valorização dos institutos de pesquisa, da Ciência e das redes de proteção social brasileira, não estão sendo suficientes hoje, para que as medidas sejam tomadas à altura, fica difícil vislumbrar um cenário pós-pandemia com um mundo mais justo e sustentável”, considerou.

Para Laura, o contexto não é otimista e há evidências de pandemias anteriores em que a desigualdade aumentou. “Costuma haver nesses casos uma oportunidade para aqueles que querem cortar ainda mais serviços públicos e direitos, criar ajustes fiscais ainda mais drásticos, que prejudicam mais os vulneráveis. Esse é um dos possíveis caminhos que temos hoje”, observou.

Para a economista, corremos o risco de uma situação mais drástica do que aquela a que assistimos nos últimos cinco anos, de ajuste pelo lado dos gastos e não pelo lado da tributação dos mais ricos. “Uma economia em frangalhos, com desigualdade mais alta ecom uma massa de pessoas desempregadas, uma tragédia social que pode se agravar nesses próximos anos”.

Na avaliação do professor Vladimir Safatle, caminhamos para uma situação de acirramento profundo de conflitos sociais, dadaa situação de pauperização extrema que nos espera nos próximos meses, com ausência completa de garantias de qualquer tipo de direitos trabalhistas que poderiam dar um pouco de segurança à classe trabalhadora mais vulnerável.

Para Safatle, entre alguns cenários possíveisque estão desenhados, um deles é o discurso pronto do governo do eu avisei. “Quando o conflito vier, o governo vai insistir em dizer que preveniu que tudo isso iria acontecer, que não era para parar a economia, que era para se preservar os empregos, e que é hora de consolidar a força e o poder, para que a situação de balbúrdia social pare”. Esse discurso, na visão de Safatle, com certeza terá apoio de alguns setores da população. “Terão classes favorecidas assustadas pelo tipo de violência que com certeza a situação de crise normalmente gera”, explica.

 

Economia e políticana contenção das desigualdades

“Tanto na economia brasileira como nas latino-americanas em que é alta a desigualdade não só de renda, mas das condições de acesso a saúde, educação, moradia e transporte, não se perceberam que todos esses elementos que se agravam num cenário de pandemia, exigiram dos nossos governos e dos países vizinhos uma política mais clara e um enfrentamento mais substantivo do aquele dos países da Europa”, avalia Laura Carvalho.

Segundo Laura, embora acreditemos que nosso país, mais pobre, está gastando de forma similar a países da Europa e portanto suficiente, no enfrentamento da pandemia, isso não é verdade. “Para ser suficiente, teríamos que ter gasto mais, considerando nossas lacunas, deficiências e desigualdades”, avaliou. Tendo em vista a condição periférica do país, explicou, a pandemia vem deixando claro como numa situação de crise como aatual, as desigualdades globais só aumentam, porque os países que deveriam ter mais recursos para enfrentar e prevenir, são aqueles que menos têm.

Na avaliação do professor Safatle, a pandemia é um tipo de crise nova, que não se resume ao resultado de uma crise econômica brutal,tratando-se também de uma crise de governo. Ele indaga se isso não implicaria uma “transformação estrutural” do que significa governo, do que se pode esperar de um governo. “Se nós precisamos de uma sociedade onde a experiência da solidariedade é um elemento efetivo, como preservar as estruturas arcaicas de concentração e de monopolismo? O que se pode esperar de fato de uma ação política? Uma ação de ajuste? Mas esse ajuste viria de um sistema que se demonstrou profundamente irracional?”, provoca Safatle.

 

O papel da educação e o negacionismo da ciência

“A universidade pública e a ciência estão em um dos momentos de maior dificuldade. Já não estava fácil com o problema da restrição de recursos, com o teto de gastos espremendo cada vez mais o espaço para a ciência e tecnologia. A questão agora também pelo estrangulamento da área por outras frentes, e passa por uma descredibilidade do conhecimento científico, principalmente, nas áreas de humanidades”, observa Laura Carvalho, lembrando que a pandemia nos oferece a oportunidade de “valorizar a universidade publica e os institutos de pesquisa” antes pouco valorizados.

Vladimir Safatle destaca a frase do filósofo francês Nicolas de Condorcet, que dizia que “a função da educação pública é criar um povo insubmisso e difícil de governar”. Na visão de Safatle, a universidade pública brasileira buscou dar concretude a isso. “Ela não era só um sistema de reprodução dos interesses das classes mais favorecidas, foi também o horizonte no qual a crítica a esse processo pôde se dar. Então, é claro que dentro da dinâmica de um governo com as características do que temos, vai se tentar antes de qualquer coisasilenciar as universidades. Temos que entender qual é de fato o nosso papel no interior da vida social, que não é pequeno”, disse.

 

Assista à integra do debate aqui

Assista também à palestra Alternativas econômicas para um Brasil justo, com Laura Carvalho.