Normatização, judicialização e criminalização da saúde no contexto da pandemia

Normatização, judicialização e criminalização da saúde no contexto da pandemia

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A pandemia de Covid-19 avança no mundo. Enquanto este texto estava sendo elaborado haviam sido confirmados 13.616.593 casos da doença (237.743 novos em relação ao dia anterior) e 585.727 mortes (5.682 novas em relação ao dia anterior) até 18 de julho de 2020, segundo dados mais atualizados da Organização Mundial da Saúde (OMS) (ver aqui), e a doença segue levando a consequências tanto imediatas quanto futuras nas formas de relações entre indivíduos, grupos populacionais, nações, países e blocos de países.

Tais consequências podem ser e têm sido enfrentadas de várias maneiras, e ainda não há recurso definitivo para debelar a doença na forma de um medicamento ou vacina comprovadamente eficiente, eficaz e efetivo. Mais ainda, como se não bastasse o dano causado pela própria Covid-19, estudos indicam que o impacto da pandemia levará a mais mortes por outras doenças, tais como tuberculose, malária e HIV-Aids. Isso na esfera da Saúde. Há também consequências em outras esferas – além das óbvias da Economia, da Política e das relações socioculturais. Na esfera da Justiça, por exemplo, a demanda a todos os seus atores e àqueles que a complementam, tais como o Ministério Público, tem provocado questionamentos de variadas ordens, obrigando a reflexão sobre esse tema.

Sejamos realistas, a realidade é dura:à parte as expectativas e esperanças, algumas delas bem promissoras, não há uma solução mágica, não há bala de prata para neutralizar o coronavírus Sars-CoV-2. Pelo menos por enquanto.E os caminhos jurídicos que por vezes são trilhados na fiscalização de ações dos gestores públicos não necessariamente garantem o bom desenrolar do processo de enfrentamento ao vírus ou mesmo da boa prática judicial, descambando para uma instrumentalização que, por vezes, se constitui em criminalização, em atendimento a interesses de indivíduos e grupos.

Especificamente no Brasil, as estatísticas, análises e projeções feitas com sobriedade, dentro dos parâmetros científicos, com respeito às quantidades de contaminados e de óbitos, sugerem que a situação sanitária ainda não está sob controle desejável. Isto vai ao encontro do que o diretor-executivo da OMS declarou recentemente: trata-se de "um desafio complexo". De um ponto de vista jurídico, têm sido observadas ações diversificadas que influenciam e são influenciadas pela situação sanitária.

Nem o mais otimista dos analistas sérios arriscaria apontar uma saída rápida para essa situação, e já fica claro que a crise sanitária/epidemiológica mundial, em conjunto com uma crise econômica e geopolítica, irá aprofundar ainda mais as desigualdades sociais, também no Brasil. Com isso, o fosso que separa ricos e pobres em escala planetária deverá se ampliar, instituindo um quadro pessimista que deverá perdurar por muito tempo.

De fato, não é uma gripezinha nem uma simples pneumonia, e são sombrias as projeções no tocante ao aumento da desigualdade, da fome e da pobreza e miséria no mundo todo. Junte-se a isso um movimento de judicialização e uma (in)consequente criminalização, que reforçam um ideário punitivista e moralista, em consonância com uma mentalidade vigente mais que conservadora – reacionária, retrógrada – no mundo.

Diante da gravidade da situação da pandemia no Brasil, da ausência de uma governança eficiente, eficaz e efetiva, de conflitos federativos diariamente observados e da necessidade de culpabilização, ao mesmo tempo em que se pratica a omissão e a desresponsabilização, as respostas governamentais implementadas foram a normatização, a judicialização e a criminalização. Todas elas insuficientes para o enfrentamento adequado da crise em seu volume e complexidade de questões.

 

O quadro crítico brasileiro e suas peculiaridades: a normatização da pandemia

No Brasil,a situação tem nuances próprias, e a complexidade no enfrentamento da pandemia passa especialmente pelas relações entre os responsáveis pelas decisões governamentais e os órgãos de controle, fiscalização – e até os vinculados aos órgãos de segurança. Como gerenciar uma crise? Maisainda, múltiplas, superpostas e retroalimentadoras crises? Essas e outras questões estão nos corações e mentes de todos aqueles que têm alguma preocupação ou interesse diante do que a realidade nos oferece.

Os meios de comunicação e os analistas destacam que a pandemia chegou ao Brasil em meio a uma crise político-institucional e também uma crise econômica sem precedentes que projeta uma queda no PIB em torno de 6%, com recuos expressivos,principalmente nas áreas de serviços, construção civil e indústria. A crise, ou melhor, as crises tendem a se ampliar ainda mais, com projeções para a taxa de desemprego de aproximadamente 18,7% (o que representa em torno de 19 milhões de brasileiros sem emprego até o final de 2020), somados aos mais de 3 milhões de pessoas que perderam seus postos de trabalho e aos cerca de 12% dos considerados desocupados (ver aqui).

Se não bastasse essa situação, a deficiente ou mesmo ausente coordenação do processo de enfrentamento da pandemia, fruto de uma disputa aberta entre o governo central e os governos subnacionais, explicita e aprofunda inseguranças no que tange a um plano de saída para as citadas crises em horizonte próximo, em consonância com a situação de outros países, mais acentuadamente com a situação daqueles de grande população e de formatação federativa, como os Estados Unidos da América e o México (ver aqui).

Os confrontos estabelecidos e produzidos sistematicamente, de modo constante e diário, muito na linha do que se observa no desempenho do atual presidente norte-americano, longe de serem salutares, só produzem o efeito de piora incremental da situação, pois se perde tempo precioso que poderia ser empregado para se pensar em conjunto a elaboração de políticas que ampliassem e assegurassem a proteção social, bem como buscassem garantir a sustentabilidade econômica de modo equilibrado e sensato. A política do embate requer a manutenção do estado de tensionamento, bem como a pautação dos discursos e narrativas, quer sejam das mídias, quer sejam dos atores e arenas políticas, tomadores de decisão, e também da própria população – pelo menos daquela parcela com menos acesso a informações qualificadas ecapacidade de consciência crítica menos desenvolvida.

A discussão que se polariza como Saúde x Economiaé trazida à tona pelas disputas em suas múltiplas camadas e estimulam dúvidas e incertezas na população, em termos de que medidas são válidas e necessárias e qual foco devem ter os cuidados ao combate à pandemia. De consequências potencialmente tão desastrosas quanto as incertezas e dúvidas são as falsas certezas, calcadas em arrazoados sem fundamento lógico-científico, principalmente disseminados pelas redes sociais eimpregnados de obscurantismo e proselitismo religioso.

Essa polarização pode levar a uma falsa impressão de que medidas protocolares tais como o distanciamento social, o isolamento e/ou quarentena estariam gerando e agravando a crise econômica, quando, na verdade, o que geroutodas as crisesfoia má gestão da economia e as táticas diversionistas e populistas que vinham sendo praticadas desde antes do advento da pandemia, e não as medidas cientificamente comprovadas para combatê-la.

Essa situação de confronto que tem penosamente se arrastado já deu ao Brasil – pelo menos até o momento em que este texto é escrito – a tragédia de quase 80 mil cidadãos mortos e2,1 milhões de infectados, que em sua maioria viviam e vivem em situações de vulnerabilidade e que só deixaram de ser invisibilizados por terem adoecido ou perdido a vida e entrado nas estatísticas oficiais – por sua vez, sujeitas a subnotificação. A doença deixa também profundas sequelas nas vidas das famílias que precisam amargar a perda dos entes queridos, além das perdas econômicas e materiais.Como herança macabra do vírus para essas famílias, ficam sequelas psicológicas e de condições materiais de existência.

Daí que, mais do que a inegavelmente importante ação da população na observância dos cuidados necessários para evitar a contaminação pelo vírus, a ação dos gestores públicos nunca se fez tão estratégica. A presença e a ação serena, competente e efetiva do Estado nunca foi tão dramaticamente necessária.

Segundo a pesquisa Novo Federalismo no Brasil? Tensões em Tempos de Covid-19, que vem sendo desenvolvida por uma equipe de pesquisadores do Centro de Estudos Estratégicos da Fundação Oswaldo Cruz (CEE-Fiocruz) da qual os autores deste texto fazem parte, foram editados e promulgados no Brasil, até meados do mês de junho, em torno de 700 decretos e 120 leis em âmbito estadual, nos quais foi possível identificar que os governadores buscaram enfrentar a progressão da pandemia por meio de medidas de controle da disseminação baseadas no que diz o meio acadêmico, a Ciência e os órgãos nacionais e internacionais de pesquisa na área da Saúde, em detrimento de pautas voltadas a interesses econômicos.

Acesse o artigo Pandemia, contradições e inovações no federalismo brasileiro – por Sonia Fleury

No entanto, as pressões sobre os governos estaduais e municipais têm aumentado bastante, fazendo com que, em alguns casos, precisassem ser adotadas medidas que fossem ao encontro de interesses comerciais e econômicos em detrimento de preceitos médico-científicos e do mais puro e simples bom senso.

É possível afirmar a configuração decerto fenômeno de normatização da pandemia, num primeiro momento em prol da salvaguarda da saúde da população, via emissão de decretos e medidas de higienização e distanciamento social, seguindo protocolos gerais do Ministério da Saúde e da OMS, e, num segundo momento, de incentivo às atividades econômicas para a garantia de sobrevivência da economia, ainda que com algumas tímidas ou incipientes restrições de funcionamento das atividades produtivas e mercantis.

A necessidade de salvar vidas e de manter a economia em funcionamento é, assim, concebidanuma disputa de narrativas diversas e diferentes entre os governantes, expondo-os a verdadeiras escolhas de Sofia, quando não, com alguns deles despudoradamente manifestando mera venalidade e pragmatismo classificável como genocida.

Tal situaçãodeixa a população confusa e, ao serem minimizados os efeitos da Covid-19 para a saúde das pessoas, por meio do que chega a ser um criminoso negacionismo científico, coloca-se em xeque tanto a condição plena de existência dos mais vulneráveis, como também a sustentabilidade da economia, por meio de um falso dilema que toma conta dos debates. Esse falso dilema aprofunda ainda mais a crise, a qual parece não ter chegado a seu pico, muito menos de um declínio de incidência de casos e óbitos, conforme ilustrado nos gráficos midiatizados do Brasil e dos estados e municípios. Mesmo com recuos pontuais nos índices de algumas localidades e com a curva média de óbitos aparentandoter se estabilizado no chamado platô. (ver aqui).

Em paralelo, e em decorrência, ao observarmos os noticiários ao longo do mês de junho, verificamos que se encontra em andamento um movimento passível de ser caracterizado como a criminalização ostensiva de agentes públicos por sua gestão da pandemia, com a deflagração em série de operações da Polícia Federal e ações da Polícia Civil em diversos estados e municípios.

Inegavelmente, a investigação de licitações e contratos considerados suspeitos firmados junto a empresas fornecedoras de equipamentos, insumos e medicamentos é, em si mesma, uma prática saudável de controle. Entretanto, torna-se perigosamente instauradora de uma situação de arbítrio quando sujeita aos ventos e sabores do clima político e do direcionamento ideológico, como tem parecido acontecer em algumas ocasiões.

Vale destacar que, por conta do aumento das atribuições particularmente dos gestores estaduais, o volume de compras, a abertura de novos leitos, a contratação de pessoal, a compra de insumos e medicamentos em sua grande parte feita de forma emergencial, podem levara erros contábeis e de outras ordens na construção dos processos e das práticas de contratação de ações e serviços, o que facilita ainda mais o desencadeamento de ações judiciais. Os critérios de avaliação e julgamento revestem-se, portanto, de uma importância notável e urgente.

 

Controle X Judicialização X Criminalização

O novo cenário instaurado com o advento da Covid-19 demanda dos gestores práticas de tomada de decisão que fazem florescer conflitos das mais variadas naturezas, reclamando soluções por parte do Judiciário através do exame minucioso de cada situação, considerando que cada caso é uma situação complexa e atípica queapresentanuancesparticulares de cada lugar e também de cada julgador. Trata-se, portanto, de um desafio tanto para a prática de gestão quanto para a prática jurídica.

Fica claro que o momento é propício para que paradigmas possam ser revisadosna chave do entendimento de que há diferentes formas de avaliar as situações e de extrapolar o que os nossos olhos veem, sem deixar de lado o que deve ser feito com qualidade e retidão, na observância e acompanhamento criterioso dos gastos, dados os montantes envolvidos. A pandemia precisa ser entendida e explorada em sua magnitude e, ao ser cientificamente estudada,enfrentada no nível adequado dos procedimentos burocrático-administrativos. Inclusive, soluções nãoconvencionais ou heterodoxas podem ser sugeridas, diante de práticas de preços abusivos por parte de fornecedores, como ilustrado na recente fala do secretário de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde:

Quem está na função de ordenador de despesas ou quem está na função de gestor do hospital que vai fazer a compra de tais medicamentos, é muito simples: senhores, o medicamento está acima do preço. Comprem o medicamento fundamentado em salvar vidas. Ao mesmo tempo, os senhores abram um processo administrativo ou uma simples sindicância para apurar sobrepreço do medicamento.

Em contraste, a nota oficial divulgada dias antes por Alberto Beltrame renunciando ao cargo de presidente do Conselho Nacional de Secretários de Saúde chama a atenção ao denunciar a criminalização das ações dos gestores, assim como a nota oficial do Conselho de Secretários Municipais de Saúde da Paraíba, publicada logo a seguir .

Ao refletirmos sobre isso, entendemos que o papel do Judiciário é (ou pelo menos, deveria ser) o de dar segurança jurídica e estabilidade às relações que envolvem os processos onde o direito à saúde é central. Essa ação pressupõe a busca pela pacificação de conflitos, função que se apresenta como necessária em tempos atuais, em que os gestores precisam decidir os rumos do combate à pandemia e em queé primordial o uso de instrumentos para resolução dos embates que evitem a judicialização, que pode se tornar um entrave nocivo ao funcionamento da máquina pública (ver aqui).

Fica patente umembate Controle x Judicialização, produtor de criminalização no que tange à adoção de medidas por parte dos gestores públicos, deixando transparecer que,no contexto atual brasileiro,há espaço tanto para aprevenção de possíveis desmandos na gestão da saúde quanto para uma instrumentalização da Justiça,a fim deatender a objetivos políticos, ideológicos e eleitorais. Em que pese a importância da fiscalização, tendo em vista a ação dos órgãos de controle nas questões burocrático-administrativas envolvendo ações e medidas referentes à pandemia, se tais instrumentosde justiça não forem bem administrados e orientados,podem ter como efeito a criminalização das práticas da gestão pública,com os prejuízos e danos irreparáveis para os de sempre: a população, em especial os grupos mais vulneráveis.

Vemos, assim, apandemia deCovid-19inserida no contextode uma crise sanitária, política, social e econômica de proporção mundial, como já destacado, e mais que nunca a judicialização da saúde precisa ser racionalizada, sob pena de colapso do sistema de saúde.

A Carta Aberta do Conselho Nacional de Saúde (CNS) elaborada no mês de abril, quando o quadro epidemiológico do país apresentava as já expressivas marcas de 70 mil infectados e 5 mil mortos, explicitava bem a visão angustiante e angustiada de todos os envolvidos com a defesa da vida, da democracia e do Sistema Único de Saúde (SUS), basilar e imprescindível nas ações de combate a esse vírus e de garantia da saúde da população. Um cenário colapsado acarreta e acirra, como consequência, aineficácia das decisões judiciais pela simples incapacidade de resposta do sistema a demandas que, na maioria das vezes, tem como causa um conjunto de situações cujas resoluções extrapolam as ações do setor saúde e muito menos de um único ente.

Pelo que se vê, o desafio trazido pelas crises é multifacetado e endereçado a todos em todos os graus, formas e níveis de existência e atividade humana, literalmente. Desde uma dimensão atomizada da ação individual de observância e cumprimento das medidas e protocolos sanitários de isolamento social e de higienização cotidiana, passando pela dimensão mais abrangente dos atores e arenas da sociedade responsáveis pela disseminação de informação, até as dimensões das três esferas de poder e suas estruturas, instâncias e ramificações. Definitivamente, normatização, judicialização, e criminalização não são pura e simplesmente as soluções, dados os seus limites e insuficiências para o enfrentamento do grande desafio de lidar com a pandemia.

Para o Legislativo, apresenta-se o desafio de legislar com competência adequada ao momento; para o Executivo, o desafio de elaborar, implementar e executar ações e políticas igualmente adequadas; e, para o Judiciário, definir e emitir juízos nos quais, antes de mais nada, o casamento entre o frio cumprimento da Lei com o calor da solidariedade e empatia humana seja temperado pelo bom senso e imunizado contra os vírus letais dos vícios de natureza extrajurídica.

Por fim, talvez o maior dos desafios recaia sobre todos os profissionais – de saúde ou não – que trabalham nas chamadas linhas de frente (hospitais, unidades de saúde, estabelecimentos de comércio e serviços em geral, entre outros), e também sobre os pesquisadores que produzem o saber e o conhecimento fundamentalmente preciosos para a sobrevivência e o bemestar da humanidade. A estes, podemos arriscar afirmar categoricamente, a História mostrará que todo reconhecimento será pouco.

* Fernando Manuel Bessa Fernandes é pesquisador do CEE-Fiocruz; André Luís Bonifácio de Carvalho é professor do Departamento de Promoção da Saúde da Universidade Federal da Paraíba. Os autores integram o grupo de pesquisa Novo Federalismo no Brasil? Tensões em Tempos de Covid-19, do CEE-Fiocruz.

 

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