Rivaldo Venâncio da Cunha: ‘Ao que tudo indica, problema do zika está só começando; temos muita dor pela frente’
Quando se trata da epidemia de zika que surpreendeu e vem assustando o país desde o ano passado, somando-se à epidemia de dengue e de chikungunya, ser otimista e acreditar que se conseguirá rapidamente enfrentar o problema é falso e ineficaz. Por outro lado, não é o caso de olhar com pessimismo para o cenário. Para o infectologista Rivaldo Venâncio da Cunha, diretor da Fiocruz Mato Grosso do Sul, trata-se de ser realista e compreender que estamos diante de um problema complexo, sobre o qual muito falta a se descobrir e se compreender. Nesta entrevista ao blog do CEE, entre as dezenas de outras que vem concedendo nos últimos meses, Rivaldo dá a dimensão do problema, que ele apelidou de tsunami sanitário: “Se não houver algo novo como uma vacina, vamos viver a realidade que vivemos com HIV/Aids”.
Em 2015, o Brasil registrou os recordes de 1,65 milhão de vítimas da dengue e de 854 mortes decorrentes da doença. Pelas estimativas da OMS, 4 milhões de pessoas estarão infectadas com zika nas Américas, em 2016. Para Rivaldo, o cenário tem causa macro: “Nós estamos pagando o preço por tudo que fizemos nos últimos 500 anos, no processo de desenvolvimento do país”. E precisa ser enfrentado de forma diferente. “Estamos utilizando há 30 anos um instrumento que se mostrou insuficiente para resolver o problema: ir de casa em casa, tentar convencer o morador a tirar a água do seu quintal”, diz. “O estranho nesse processo todo não é estar acontecendo a tríplice epidemia; o estranho é ter demorado tanto para ela ocorrer”.
Como chegamos ao cenário em que nos encontramos, ameaçados por epidemias que se relacionam a um mosquito?
A tríplice epidemia, dengue, zika e chikungunya, tem que ser entendida em um processo macro que o país vem vivendo. Como todos os grandes problemas de saúde pública, não há, jamais, uma única causa para determinar esses problemas coletivos; as origens são multifatoriais. Em relação às doenças transmitidas por vetores, elas existem porque existe seu transmissor. Assim, fazemos em primeiro lugar uma constatação: as três doenças só existem porque existe o Aedes aegypti. E este só existe porque o país possui uma grande receptividade para a proliferação desses mosquitos. Do ponto de vista climático, temos elevadas temperaturas e elevados índices de precipitação pluviométrica. Mas, além desses dois fatores, temos um outro, que é um passivo na nossa relação sociedade-ambiente de mais ou menos 500 anos! Nós estamos pagando, de certa forma, um preço por tudo que fizemos, no processo de desenvolvimento do país. Apostamos em um acelerado crescimento urbano, esvaziamos a área rural e inchamos as cidades de forma extremamente desorganizada. Tomando os parâmetros básicos de uma boa relação entre ser humano e meio ambiente, temos um déficit muito grande.
Começamos só com a dengue...
Estamos há trinta anos convivendo com a dengue e nós a naturalizamos. O risco agora é a naturalização dessa epidemia de zika e suas consequências associadas com alterações congênitas. O Brasil aceita como natural que 50 mil pessoas morram no trânsito anualmente e que 50 mil sejam assassinadas. Não é estranho, então, conviver com 1 milhão de casos de dengue e mil mortos por ano também. Essa sociedade tem que rever seus conceitos. O estranho não é estar acontecendo a tríplice epidemia, mas ela ter demorado para ocorrer.
Estamos há trinta anos convivendo com a dengue e nós a naturalizamos. O risco agora é a naturalização dessa epidemia de zika e suas consequências associadas com alterações congênitas.
Quais seriam as ações corretas por parte do poder público? O que deveria ter sido feito?
Estamos utilizando um instrumento que se mostrou insuficiente para resolver o problema: ir de casa em casa, tentar convencer o morador a tirar a água do seu quintal. O pior é que, quando isso não acontece, é o agente comunitário de saúde, que, em vez de estar na atenção primária, na avaliação de hipertensão, no programa nacional de imunização, tira pneu de terreno baldio. Não podemos concordar com isso. O que temos que encaminhar são propostas estruturantes que não se resolvem em um ou dois anos. Se estamos utilizando há 30 anos uma tecnologia e, a cada ano que passa, o número de casos de dengue é maior que no ano anterior, por que continuar? Esse tipo de tecnologia foi muito bom no início do século passado, na época de Oswaldo Cruz. É insuficiente para o Brasil complexo em que vivemos hoje. O uso do inseticida, seja o adulticida, ou o larvicida, está sendo insuficiente. Temos que ter humildade para admitir que o que foi feito nos últimos 30 anos não resolveu o problema. Se continuarmos acreditando que o que fizemos deu mais ou menos certo, não há por que procurarmos alternativas. Ninguém procura solução para um problema, se não admite a existência do problema. No momento, não temos como fazer o manejo dessas epidemias em curto espaço de tempo. Não tem milagre.
Estamos falando de mudança de condições sanitárias, de condições sociais, como caminho para combater essas epidemias.
Não há como resolvermos o problema do abastecimento irregular de água em boa parte do Brasil, em especial na região Sudeste, de um ano para o outro; ou acelerar a ampliação do saneamento básico, o tratamento e a coleta de esgotos, ou ampliar a coleta de resíduos sólidos urbanos. São projetos de médio e longo prazos. Complexo do Alemão, Vila Cruzeiro, Rocinha, no Rio de Janeiro; Paraisópolis, em São Paulo; Pau da Lima, em Salvador, não tem solução para essas áreas em curto prazo. São condições ambientais, de moradia, de abastecimento de água extremamente irregular, quando dá para considerar que existe. É um passivo social gigantesco. Não vamos solucionar o problema da zika só cuidando do Aedes. Quem diria que um dia São Paulo, o estado mais rico do Brasil, seria o campeão da dengue no Brasil? Não temos estudos ainda para associar a crise hídrica [no estado] à epidemia de dengue, mas tudo leva a crer que o aumento dos focos de proliferação e procriação do Aedes tem ligação com o abastecimento irregular de água que ocorreu no interior do estado e na periferia das grandes cidades de São Paulo, inclusive da capital.
Tudo leva a crer que o aumento dos focos de proliferação e procriação do <em>Aedes em São Paulo</em> tem ligação com o abastecimento irregular de água que ocorreu no interior do estado e na periferia das grandes cidades, inclusive da capital
Não se trata de providências apenas no âmbito da Saúde...
Nós, gestores, profissionais de saúde, trazemos para os nossos ombros a missão de resolver problemas cuja governabilidade não está ao nosso alcance. Impedir epidemia de dengue, zika e chikungunya não é atribuição do SUS! Os fatores relacionados à reprodução do mosquito estão em outra esfera. Ou entendemos isso ou não vai dar! Você já viu, durante uma epidemia de dengue, o secretário de Infraestrutura, ou o diretor da companhia de abastecimento de Águas dar explicações? Não. Quem dá explicações é o secretário de Saúde. Atender o doente, evitar que o doente morra, fazer política de prevenção, sim, é da Saúde. Mas tratar de lixo em terreno baldio não. Isso é problema da limpeza urbana. E por fazer o que não é nossa atribuição, estamos desestruturando a rede de atenção primária, ocupando os agentes comunitários de saúde com outras funções.
O indivíduo deve também fazer a sua parte, não?
A responsabilidade é coletiva. Como um gestor fala em multar o cidadão que tem foco de Aedes na sua casa se ele não limpa a pracinha, o pátio da escola, o pátio do posto de saúde? Ao mesmo tempo, o cidadão, do ponto de vista individual, também tem que ter atitude mais proativa. Não vai ficar imaginando que vai entrar um exército na sua casa para resolver um problema que, em parte, está criando. Ontem, caminhando na maior avenida de Campo Grande, vi alguém numa Hilux abaixar o vidro do carro e jogar na rua uma latinha de cerveja. Talvez esse seja um debate interessante com o pessoal das áreas de Ciências Sociais, Filosofia, Antropologia, para trazer outros aportes à discussão.
Como o senhor vê a forma com que a opinião pública e o poder público estão lidando com as três doenças transmitidas pelo ‘Aedes aegypti’?
Enfatizando-se a zika, deixa-se dengue e chikungunya segundo plano? Nossa sociedade tem uma formação cristã, e uma das características do cristianismo é a necessidade de buscar um culpado. Isso geralmente tira nosso foco do processo macro. Encontramos o pecador, jogamos nossa energia sobre ele e não vemos o processo. Nós estamos focando no mosquito sem discutir profundamente nosso comportamento de sociedade, do ponto de vista do indivíduo e do ponto de vista da coletividade e do poder público. Temos a epidemia de zika porque temos o Aedes aegypti em número elevado em praticamente todas as cidades brasileiras. Por que não temos tantos casos de chinkungunya é uma pergunta que tira o sono da gente. Aparentemente, o mosquito acolheu o primo-irmão do vírus da dengue, que é o zika, com muitas características em comum, e não foi tão amigável ao vírus chinkungunya, que tem características diferentes. Não sabemos o porquê, mas, de qualquer forma, a chikungunya lenta e progressivamente está se dispersando país afora. Temos algo como doze a quatorze estados com notificação autóctone de chikungunya. A tendência é também ir ocupando o país como um todo.
Por que não temos tantos casos de chinkungunya é uma pergunta que tira o sono da gente... De qualquer forma, a chikungunya lenta e progressivamente está se dispersando país afora
Em relação à zika, podemos, afinal, fazer relação de causa e efeito entre o vírus e a microcefalia?
Nesses primeiros meses de estudos, as observações estão apontando para a participação do zika no processo de má formação congênita a que estamos assistindo, nessa epidemia de microcefalia e outras alterações também congênitas. Se é o zika sozinho, o zika com modificação genética, o zika potencializado, não sabemos. Mas que o zika tem participação nesse processo já temos evidências fortes. Foi encontrado em fígado, liquido amnitótico, tecido nervoso do cérebro. Ele está envolvido no meio desse tsunami sanitário que estamos vivendo. Embora profissionais de saúde, meios de comunicação estejam focando na microcefalia, um grupo de pessoas, do qual eu faço parte, vem insistindo que temos que ampliar nossa lente para a zika congênita, uma infecção que ocorre durante a gestação e que pode ter várias consequências, sendo uma das mais graves, mas não a única, nem a mais frequente, a microcefalia. Se olharmos só a microcefalia, vamos deixar passar – e já estamos deixando passar – casos de crianças que foram expostas ao vírus durante a gravidez, nasceram com cérebro de tamanho normal, mas têm problemas como catarata, microcalcificações em vários órgãos, inclusive cerebral. Se olharmos só para o tamanho do cérebro, nossa tendência será achar que o bebê nascendo com cérebro de tamanho normal está resolvido o problema. Temos que apostar nos estudos de coorte, acompanhando grupos de gestantes expostos e não expostos ao vírus, para verificar se as crianças que nasceram com cérebro normal terão ou ão alguma alteração congênita.
São muitos os estudos a fazer ainda...
Tenho 58 anos e vivi o início do HIV/Aids, nos anos 1980. Vivíamos em uma ebulição, uma grande ansiedade, toda semana surgindo uma novidade, hipóteses sem pé nem cabeça, que, enfim, também ajudaram de alguma forma a produzir um conhecimento novo sobre um novo vírus e uma nova síndrome. Hoje, temos o HIV/Aids relativamente bem conhecido, no mundo, do ponto de vista da multiplicação, da transmissão etc. Uma coisa nova, que pega o mundo inteiro de surpresa, mas sobre a qual, aos poucos, com o conhecimento, com a lente da ciência ampliando, aprofundando, gerou-se uma quantidade gigantesca de evidências científicas que com o passar dos anos tornaram-se quase irrefutáveis. Vamos tentar colocar a zika da mesma forma. Essa paciência, essa serenidade, essa confiança na capacidade do ser humano de apresentar soluções para os problemas que ele próprio cria nós não podemos perder.
Vamos tentar colocar a zika da mesma forma que o HIV/Aids. Essa paciência, essa serenidade, essa confiança na capacidade do ser humano de apresentar soluções para os problemas que ele próprio cria nós não podemos perder
E em curto prazo, o que fazer?
Desenvolver ferramentas que possam, se não resolver problemas, pelo menos, diminuir a dor e o sofrimento das pessoas envolvidas com a epidema de zika. Por exemplo, acelerar o diagnóstico das mulheres grávidas expostas ao vírus. Estamos com um projeto, no Mato Grosso do Sul, acompanhando 180 grávidas que tiveram suspeita de zika durante a gestação. Campo grande só pode mandar para o Instituto Adolpho Lutz em São Paulo seis amostras dessas grávidas por semana para análise. Temos grávidas aguardando sua vez há um mês, um mês e meio. Esse sofrimento é inconcebível. Temos como acelerar, e a Fiocruz está empenhada em encontrar uma alternativa para amenizar esse sofrimento. Ao mesmo tempo, temos que ter um processo de mobilização social envolvendo a sociedade civil, organizada e desorganizada, nos moldes do Natal sem Fome dos anos 1980, de solidariedade às famílias vítimas da zika congênita, um problema de extrema gravidade do qual o poder público não vai dar conta.
São propostas não para enfrentar ou evitar, mas para, neste momento, conviver com o problema...
Não vejo alternativa para evitar, interromper a epidemia de zika em curto prazo. Infelizmente. Gostaria de acreditar. Rodo todo o Brasil, direto. Estamos falando dessa epidemia de zika desde o final de 2014. A maior parte das pessoas que deviam ter ouvido naquela época não ouviu. Estamos, agora, em meio a essa realidade. Mas esta não é uma fala de desesperança, de pessimismo. Ela se dá no sentido de termos a real dimensão do problema, para não desanimar. Se acharmos que estamos diante de algo cuja solução se dará em curto espaço de tempo, e a solução não vem, a tendência de quem alimenta essa expectativa é desistir. E não vou desistir. Por isso tenho a convicção de que o problema é difícil, complexo. Se fosse fácil, já teria sido resolvido. Ao que tudo indica, o problema está só começando. As lágrimas estão só começando. Infelizmente, temos muita dor pela frente. Se não houver algo novo como uma vacina ou outro aporte diferente, vamos viver a realidade que vivemos com o HIV/Aids. Pouquíssimas pessoas no Brasil não conhecem ou não ouviram falar de alguém com HIV. A tendência do zika é se aproximar da gente também. Não é um problema circunscrito ao Nordeste. Vai tomar conta do país inteiro.
O vírus zika foi detectado na saliva, urina e também no sêmen humanos. O que essa descoberta traz para as pesquisas sobre o vírus e a epidemia. Isso diminui o ‘protagonismo’ do mosquito?
Todas essas evidencias merecem ser aprofundadas. Como no início do HIV/Aids, conforme mencionei. Quem viveu aquela época há de se lembrar que houve a polêmica de o mosquito transmitir o HIV. O fato de o vírus ser encontrado na saliva não significa que a saliva é vetor. A Fiocruz fez uma coisa correta e ética, observou algo não observado em outras partes do mundo que foi o vírus ativo na saliva e na urina. Tinha que anunciar isso à sociedade. E foi extremamente cautelosa ao ressaltar que ainda precisaria de outros estudos para definir se a saliva seria um veículo de transmissão ou se os ácidos da saliva, do suco gástrico não vão desativar esse vírus. Da mesma forma, o sêmen. Essas observações merecem ser acompanhadas para que, daqui a alguns anos, tenhamos um conhecimento científico mais consolidado para fazer afirmações do ponto de vista epidemiológico.
Vamos tentar colocar a zika da mesma forma que o HIV/Aids. Essa paciência, essa serenidade, essa confiança na capacidade do ser humano de apresentar soluções para os problemas que ele próprio cria nós não podemos perder
Quanto à relação do zika com a síndrome de Guillain-Barré , que bloqueia a passagem dos estímulos nervosos, a epidemia aumentou o número de caos?
A relação já era conhecida na literatura científica mundial. Na verdade, não é o zika que provoca a síndrome de Guillain-Barré. Trata-se de uma resposta do organismo a uma gama grande de vírus que, em contato com o organismo humano, leva a essa resposta neurológica que recebeu esse nome. O zika é uma as possibilidades de gerar a síndrome, não é o único vírus. Houve aumento de dez vezes o número de casos de internação por Guillain-Barré neste período. Isso não ganhou visibilidade, porque a maioria das pessoas que teve acompanhamento se recuperou.
A OMS estima que uma pandemia de zika que atingirá 4 milhões de pessoas nas Américas, este ano. Como vê esse dado?
Isso é extremamente plausível. E, como venho alertando, é possível que desse 1,7 milhão de casos notificados como dengue em 2015 no brasil, pelo menos um terço a 50% sejam casos de zika, não de dengue [só pelo sintoma, não é possível diferenciar uma doença da outra, e, em 2015, não kits de diagnóstico de zika não estavam disponíveis].
Por conta do aumento expressivo de casos de microcefalia, a OMS decretou emergência de saúde internacional. Qual a pertinência dessa medida?
A pertinência é inconteste. Isso não pegou ninguém de surpresa, isso era esperado pela magnitude do problema. Que implicações isso tem para nós? O mundo não vai achar que o país não é tão saudável? O que interessa? Temos ou não um problema aqui? Esse problema é só do Brasil? Pode ser constrangedor admitir que estamos em um país em emergência sanitária, mas essa é uma postura ética, assumida de forma corajosa. Está aí o problema, não adianta esconder. O Brasil, na época da ditadura militar viveu uma gravíssima epidemia de meningite, que ficou escondida. Adiantou esconder, censurar os meios de comunicação? Isso impediu a epidemia e suas sequelas? Não. Admitir que estamos com uma epidemia de zika, e, junto com ela, a zika congênita, cuja expressão mais grave e dolorosa, mas não a única, é a microcefalia, nos ajuda a enfrentar o problema. Cada um de nós dando o melhor do seu conhecimento, estudando mais, estabelecendo parcerias, para entender o que está acontecendo e contribuir para superar essa realidade. Tanto o Ministério da Saúde quanto a OMS agiram corretamente, dentro de parâmetros éticos.