Novo ciclo tecnológico requer que a sociedade repense seu pacto fundador

Novo ciclo tecnológico requer que a sociedade repense seu pacto fundador

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Revolução 4.0, impulsionada pela inteligência artificial, indica que estamos diante de um “novo ciclo tecnológico que está apenas começando”, cujos impactos ainda não podem ser previstos, diz o sociólogo Glauco Arbix, diretor da área de Ciências Humanas do Centro de Inteligência Artificial da Universidade de São Paulo – USP. “Ninguém tem clareza exatamente de que proporções esse ciclo vai tomar, quais as configurações que vai assumir”. Por enquanto, menciona, “o que estamos vendo é que a inteligência artificial está se configurando como uma tecnologia de propósito geral, aquela sem a qual as outras [tecnologias] têm dificuldade de viver”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Arbix comenta os impactos da transformação tecnológica no mundo do trabalho e assegura que empregos qualificados também estão sendo atingidos pela Revolução 4.0. Em vez de competir com a máquina no processo de hiperespecialização, sugere, os novos trabalhadores terão que ter qualidades da chamada “inteligência emocional”. “Imaginemos o que significa o trabalho de um cuidador ou cuidadora num hospital ou em casa, alguém que trata pessoas idosas que têm dificuldades de todo o tipo, que têm carências, que precisam ser ouvidas, que muitas vezes são marginalizadas pela família. Quando um idoso encontra um cuidador que tem sensibilidade, a vida dele se transforma, a qualidade de vida melhora muito. O computador não tem a menor condição de fazer isso, ou seja, não tem condições de fazer atividades da chamada inteligência emocional”.

Apesar de ainda não haver um consenso sobre quais serão as implicações do novo ciclo tecnológico no mundo do trabalho e na vida cotidiana das pessoas, o sociólogo pontua que a sociedade precisa encontrar alternativas para os impactos que a tecnologia já está gerando na vida dos cidadãos. Ele lembra que com o surgimento de novos negócios na última década, muitas pessoas vivem sem ter a estabilidade financeira e trabalhista que tinham anteriormente. “É assim mesmo, ou seja, nós vamos criar essa legião de pessoas desprotegidas? A sociedade tem que repensar o seu pacto fundador”, defende. Do contrário, adverte, “teremos sociedades com grandes concentrações de renda e desigualdades”.

 

Confira a entrevista.

 

Do ponto de vista sociológico, como o senhor está compreendendo e analisando a mudança de época que estamos vivendo por conta da chamada Revolução 4.0? A partir de que pontos de vista o senhor tem refletido sobre esse tema?

As implicações da revolução tecnológica são muito grandes em áreas muito diferentes, desde a maneira como o mercado de trabalho se organiza até a própria indústria e a agricultura. Estamos vivendo uma era em que temos tecnologias muito poderosas, que têm impacto em segmentos muito distintos da economia — praticamente todos eles são atingidos de uma maneira ou outra —, e isso exige que governos, empresas, universidades e as pessoas tenham uma postura diferente para encarar essa nova situação. Por exemplo, com as técnicas novas de inteligência artificial, disponibilidade de dados, novas ferramentas de computação e algoritmos mais sofisticados, a pesquisa científica, em todas as áreas — de exatas, biológicas a humanas —, mudou totalmente de qualidade. Eu cansei de orientar teses de doutorado e dissertações de mestrado em que os alunos faziam pesquisas com 100, 200 ou 350 empresas correspondentes, mas hoje existem à disposição do pesquisador dados de milhares e milhares de empresas e pessoas. Com relação às pesquisas na área farmacêutica que procuram novas drogas, por exemplo, todo o processo de pesquisa, de identificação e combinação de moléculas, está num patamar completamente diferente do que o de anos atrás. Na física, na química e na matemática, a velocidade da computação para fazer criptografia ou desenvolver equações de alta complexidade mudou o cenário da pesquisa. O mesmo ocorre na indústria 4.0: a conexão entre fornecedores, consumidores, produtores é enorme. Outro exemplo é a área do jornalismo, em que há uma série de veículos que já produzem notícias via computadores, prescindindo das pessoas, como no anúncio do tempo ou em comerciais.

Portanto, temos uma situação que está levando a um impacto muito grande e a sociedade não está preparada para a velocidade dessas mudanças. Quando falo em sociedade, estou me referindo a todo mundo, pois as universidades, as empresas e os governos não estão preparados para essa realidade. Claro que há sempre alguns que estão mais avançados do que outros, mas esse preparo é chave se não quisermos ficar encostados na periferia do mundo. O Brasil já está muito atrasado em termos de tecnologia, em termos institucionais e regulatórios. Se não conseguirmos acelerar bastante, a situação ficará bem difícil para todo mundo.

Em geral, fala-se bastante dos impactos que a tecnologia vai gerar em áreas de trabalho menos capacitadas. O senhor, de outro lado, tem dito que as mudanças tecnológicas não afetam somente empregos menos qualificados, mas profissões consideradas liberais, como advocacia, jornalismo, gerência etc. Os riscos em relação ao emprego e às profissões são os mesmos para trabalhadores de áreas qualificadas e não qualificadas ou há diferenças?

Claro que há diferença. Se trabalharmos com os olhos do passado, vamos encarar o atual ciclo tecnológico e científico como sendo uma espécie de repetição do ciclo anterior, com avanços num patamar distinto. Quando falamos em automação hoje, se pensa em uma automação mais sofisticada, mas há automação desde os anos 1940 e 1950, para dizer o mínimo. O problema é que hoje a situação é muito diferente: a inteligência artificial não é apenas mais “uma” tecnologia, pois estamos diante de um novo ciclo tecnológico, que está apenas começando. Ninguém tem clareza exatamente de que proporções esse ciclo vai tomar, quais as configurações que vai assumir. O que estamos vendo é que a inteligência artificial está se configurando como uma tecnologia de propósito geral. O que é uma tecnologia de propósito geral? É aquela sem a qual as outras [tecnologias] têm dificuldade de viver e que impactam todas as outras, desde a maneira de produzir até a maneira como ela se relaciona. O exemplo mais simples é a eletricidade, pois é um pouco inconcebível pensarmos a sociedade de hoje sem a eletricidade. A tecnologia de inteligência artificial está se configurando dessa maneira, como uma tecnologia que vai nessa direção. Então, a maneira como se produz tecnologia também está influenciada diretamente pela inteligência artificial e tem um impacto muito forte, porque as outras tecnologias acabam ficando dependentes dela. Falar em automação industrial hoje sem dados, sem analytics, sem a parte de análise dos dados e de algoritmos, é estar reproduzindo processos, é estar com uma metodologia e propostas de modernização que na verdade têm 30, 40 anos; esse é o ponto.

A grande novidade é que estamos entrando em uma era em que as atividades mais qualificadas estão sendo atingidas, e a situação é tão paradoxal, surpreendente, que as máquinas não conseguem de jeito nenhum fazer trabalhos considerados simples. Por exemplo, um computador faz cálculos gigantescos, ganha de qualquer humano no jogo de xadrez e em jogos mais sofisticados, estratégicos, mas tem uma dificuldade muito grande de segurar uma bolinha. Imaginemos o que significa o trabalho de um cuidador ou cuidadora num hospital ou em casa, alguém que trata pessoas idosas que têm dificuldades de todo o tipo, que têm carências, que precisam ser ouvidas, que muitas vezes são marginalizadas pela família. Quando um idoso encontra um cuidador que tem sensibilidade, a vida dele se transforma, a qualidade de vida melhora muito. O computador não tem a menor condição de fazer isso, ou seja, não tem condições de fazer atividades da chamada inteligência emocional. É como se eu dissesse a você que o computador hoje, no estágio em que está, é muito bom para desenvolver atividades muito sofisticadas, de alta complexidade, mas são atividades que têm um escopo, um objetivo muito preciso, muito pequeno. Não é possível ter um programa que faça o jogo de xadrez, que atenda o idoso e que avalie o tempo.

Portanto, hoje há uma segmentação da atuação da tecnologia. A busca de uma tecnologia geral, tipo uma inteligência artificial que substitua os humanos em todas as áreas, é uma atividade de cinema, é ficção, não funciona. Nesse tópico nós avançamos quase nada, estamos praticamente na mesma situação que estávamos quando a inteligência artificial foi concebida nos anos 1940, 1950. O ponto até onde avançamos é um pedaço da inteligência artificial, uma subárea que é chamada “aprendizagem de máquina”. Trata-se de um trabalho estatístico muito forte e avançado que se alimenta de dados, que precisa de muitos dados, pois ela aprende com os dados. Isso porque em vez de modificar o software ou o algoritmo, apresenta-se a informação para a máquina, seja informação visual ou escrita, e ela aprende com esses dados. Quanto mais falamos com aquele assistente de voz, mais ele irá aprender sobre nós, sobre a entonação da voz, sobre a forma como se faz perguntas, mas ninguém está programando esse algoritmo para que ele seja customizado para o indivíduo.

Nesse cenário de mudanças, o senhor tem dito que a inteligência emocional dos profissionais e as habilidades de julgamento e decisão, de criatividade e gestão de pessoas, de negociação e inteligência emocional serão fundamentais no mercado de trabalho. O que as escolas e as universidades precisam fazer para capacitar as pessoas para o desenvolvimento dessas habilidades? Como deveríamos estar pensando a educação e a formação em vista das transformações geradas pela mudança tecnológica?

O primeiro passo é voltar para aquilo que os educadores já falavam há muito tempo, mas que hoje se tornou muito crítico: a ideia de ter uma educação permanente. Como as tecnologias estão mudando muito rapidamente, as habilidades também mudam. Não adianta eu falar qual habilidade é preciso hoje, porque daqui a um ano as coisas serão diferentes. Então, as escolas, as universidades, todo o sistema educacional e as pessoas têm que se preocupar com uma ideia muito simples — muito antiga, diga-se de passagem —, de que não tem hora para o conhecimento. A curiosidade e a necessidade precisam se combinar de tal forma que tenhamos uma qualificação para a vida inteira; não é possível parar. Imaginemos o que alguém formado em engenharia fará daqui a cinco anos. Hoje, no Brasil, nós não temos um sistema que reavalia os profissionais de tempos em tempos.

O segundo ponto é estimular aquilo que as pessoas têm. A ideia de hiperespecialização é algo que o computador faz muito melhor do que nós: ele faz coisas que nós não podemos fazer. Temos que pensar em ter sinergia com o computador, para ele nos auxiliar a sermos seres humanos melhores. Esse é o ponto. A discussão sobre tecnologia não é por causa dos robôs, mas por causa das pessoas; elas têm que melhorar e avançar. A busca do conhecimento permanente é chave: aprender línguas, viajar, conhecer culturas, aprender a conviver com o diferente, ter tolerância.

Nos últimos anos houve uma tendência no mundo acadêmico mundial de direcionar aportes financeiros para áreas técnicas e não para os departamentos de humanidades. Esse cenário se mantém assim? Isso pode ter algum impacto a médio e longo prazo no desenvolvimento dessas capacidades que o senhor diz que precisam ser desenvolvidas continuamente?

Você tem razão, porque o mundo de dez, quinze anos atrás vivia uma tendência de concentrar os investimentos nas áreas de engenharias, física, química, mas isso está mudando muito e tende a mudar ainda mais rapidamente por causa das implicações éticas das tecnologias. As tecnologias têm impactos na privacidade. Além disso, tem a questão de viés, de como os computadores acabam segregando pessoas em razão da cor da pele, mulheres, pessoas por sua orientação sexual. Diante disso, a questão é a seguinte: qual é a engenharia no mundo que oferece formação sobre ética, moral, privacidade? Nenhuma. Apesar de sermos formados em universidades, a academia é montada em caixas: separamos a física, a química, separamos a antropologia da ciência política e da sociologia, separamos as letras em clássicas e modernas. Ou seja, vivemos em caixinhas e é difícil colocar as pessoas interagindo quando elas são de áreas diferentes. Mas o novo ciclo de conhecimento está exigindo cada vez mais a combinação das atividades. Por que dá tanto problema quando se fala em reconhecimento facial ou quando se usa um algoritmo para contratar pessoas, substituindo a equipe de RH de uma empresa? Porque as pessoas que estão fazendo o programa acham que se trata de um problema de fazer conta, que o ser humano pode ser reduzido a sua dimensão quantitativa. Claro que esse aspecto é importante, mas como o computador vai substituir o médico? Ele pode oferecer novas perspectivas de diagnóstico, mas jamais vai substituir o médico, que é quem toma a decisão e analisa e acompanha a vida clínica do paciente.

O cruzamento de habilidades é fundamental e as universidades não estão preparadas para isso. Algumas estão mais avançadas do que outras. A Stanford acabou de lançar no ano passado um centro de inteligência artificial centrada no humano. A preocupação se dá porque temos ciência e tecnologia voltada para a área técnica, mas os pesquisadores estão percebendo que toda a área da filosofia, que investiga o que é inteligência, sensibilidade, emoção, tem que estar ligada às pesquisas técnicas, porque do contrário, não vai funcionar. As universidades de ponta nos EUA e na Europa hoje estão mesclando cursos de medicina com engenharia porque o médico precisa da engenharia para desenvolver competências para dar conta do tratamento de doenças, e ao mesmo tempo a engenharia precisa do médico.

Disciplinas como filosofia, psicologia e sociologia continuam sendo fundamentais nesse cenário de mudança?

Elas estão sendo cada vez mais fundamentais. As bibliografias e a literatura internacional de inteligência artificial mostram que existe um número gigantesco de filósofos trabalhando essas questões. Basta ver em Cambridge, em Oxford, Harvard, Princeton, Yale, Stanford. Ou seja, todas as universidades tops do mundo estão impregnadas de pesquisadores das áreas de humanas, com filósofos, psicólogos, psicanalistas e sociólogos com formações distintas daquelas da ciência hard.

O Centro de Inteligência Artificial que acabamos de montar na USP — a partir de um edital lançado pela IBM junto com a Fapesp, de um milhão de dólares/ano, por dez anos — é, em sua essência, interdisciplinar. Eu sou diretor do centro para toda a área de humanas, que faz pesquisas sobre o impacto das tecnologias no mundo do trabalho, na área de ética, de regulação, de direito. Essas áreas estão sendo cada vez mais chamadas e hipervalorizadas, mas é bom lembrar que como as áreas de exatas mais hard sempre tiveram preconceito com as áreas de humanas, o oposto também é verdadeiro: as áreas de humanas sempre tiveram grande preconceito com as exatas. Basta ver a briga sobre métodos de pesquisa. Então, é preciso uma nova estrutura de cabeça, um novo mindset, uma mudança de cultura e de comportamento na universidade em geral, em todas as áreas.

O trabalho e o emprego tendem a continuar ocupando um espaço central na vida das pessoas com a mudança tecnológica? Como essa mudança vai afetar a vida das pessoas fora do mundo do trabalho?

O trabalho vai continuar sendo superimportante, mas ele não continuará o mesmo. Ele está mais fragmentado, deslocado, onipresente. O trabalho continua sendo importante porque ele é fonte de identidade, do que você é, mas ele vai se dar de forma diferente.

Há problemas que não conseguimos resolver ainda: vai ter pouco ou muito trabalho? Vai ter trabalho para todo mundo? Não temos ainda nenhum estudo grande conclusivo; os estudos são muito díspares e algumas pesquisas têm uma visão muito catastrófica, outras nem tanto. Mas o fato é que não há consenso e isso não ocorre porque são usadas metodologias diferentes, mas porque as tecnologias ainda estão no começo e não sabemos o que elas vão conseguir fazer. Não sabemos exatamente qual é o lugar que elas vão ocupar; isso está em aberto. Mas, em qualquer hipótese, é um problema seríssimo para a sociedade.

Sobre o aumento da fragmentação do trabalho, o senhor disse recentemente em um artigo que “é o trabalho que perde o padrão, torna-se um fora da lei e alvo de infindáveis disputas legais”. Diante disso, questões de legislação relacionadas aos direitos e deveres dos trabalhadores também precisam ser repensadas por conta dos efeitos da mudança tecnológica? Como o senhor tem refletido sobre a relação entre emprego, legislação trabalhista e mudança tecnológica?

Vamos ter que dar conta desse problema. O que não dá é que, a cada passo que se dê, o mundo desabe, e que a cada cinco, dez anos, as pessoas sejam prejudicadas. Basta ver o processo que aconteceu no sistema de transporte ou de quartos de hotel no mundo, com as grandes empresas que surgiram nos últimos anos. Elas estão modificando a cara da mobilidade, da maneira como as pessoas viajam e fazem turismo. Deixamos essa situação passar porque ficou mais barato para o usuário: em vez de pegarmos um táxi, pegamos um transporte que não sabemos bem o que é — a empresa fala uma coisa e a lei diz outra. Mas, em todo caso, o fato é que as pessoas vivem sem ter a estabilidade que elas tinham, sem garantias de férias, de décimo terceiro. É assim mesmo, ou seja, nós vamos criar essa legião de pessoas desprotegidas? A sociedade tem que repensar o seu pacto fundador, porque até o momento, se as pessoas ficam desempregadas, elas recebem um seguro-desemprego, têm um atendimento médico, em parte gratuito. Ou seja, a sociedade está estruturada de uma maneira, mas se vamos partir para uma situação em que tudo é novo, tudo é provisório e transitório, e a legislação não se aplica, a situação não vai ficar boa do ponto de vista da reprodução da sociedade: teremos sociedades com grandes concentrações de de renda e desigualdades, porque isso já está se acentuando. 

Alguns teóricos têm defendido que é preciso pensar as implicações sociais da mudança tecnológica e sugerem, por exemplo, a criação de uma renda mínima para as pessoas ou a tributação de robôs. Como o senhor tem pensado sobre essas questões? O que seria um modelo para viabilizar a distribuição de renda?

Há um número enorme de propostas na mesa. No parlamento da União Europeia há propostas desde a tributação de robôs até a criação de uma renda mínima, mas a dificuldade é combinar decisões e obrigações legais, de direitos que serão definidos, de forma que não iniba a inovação, a tecnologia. A ideia de tributar robôs, por exemplo, vai dificultar a implementação de robôs.

Por outro lado, podemos pensar que as empresas podem apresentar um plano para fazer demissões — empresas fora do Brasil têm planos de demitir 40, 50 mil funcionários. Uma empresa dessas tinha que ter uma obrigação de apresentar uma lista de quem vai ser demitido em dois anos, e requalificar essas pessoas para que elas tenham um mínimo de oportunidade no mercado de trabalho. Não há garantia alguma de que elas terão oportu