PECs, piso unificado de Saúde e Educação e o pacto contra a cidadania
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As PECs que tratam do pacto federativo, encaminhadas ao Congresso pelo governo, em novembro de 2019, propõem a constitucionalização de um amplo conjunto de regras de regulação das finanças subnacionais, a adoção de medidas emergenciais para redução de gastos públicos, o encerramento de fundos públicos, a extinção de pequenos municípios e a descaracterização das vinculações orçamentárias nas áreas de saúde e educação, entre outras.
Propõem, portanto, ampliar a austeridade fiscal para estados e municípios, em troca de suposta autonomia para alocar recursos na área social e da promessa da divisão de recursos provenientes da cessão onerosa do pré-sal – recursos incertos e alocados em um longo cronograma. Em conjunto, as PECs podem tornar os estados e os municípios mais regulados financeiramente e mais dependentes da União, além de descaracterizarem o modelo de pacto federativo e de sistema de proteção social estabelecidos na Constituição de 1988.
O Pacto Federativo, definido pelos artigos 1º e 18º da CF, estabelece, em sua essência, que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos estados e municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Nessa mesma linha, a Carta Magna destaca que a organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, todos autônomos, nos termos da legislação.
As competências das três esferas da federação estão estabelecidas nos artigos 21 a 25, assim como no artigo 30, compondo um padrão que combina a reserva de competências de cada ente com a definição das responsabilidades comuns (art. 23).
Essas últimas nunca foram regulamentadas em lei complementar, conforme previsto inicialmente no texto constitucional, o que levou cada área a construir, nas últimas três décadas, sistemas normativos e institucionais para definir as competências da União, dos estados e dos municípios e ajustá-las em cada conjuntura específica do país.
As regras de vinculação de receitas e os fundos de transferência de recursos são elementos essenciais na construção dos sistemas descentralizados de proteção social, como o SUS e o Suas. Os municípios, assim como os estados, são atores basilares em sua implementação, manutenção e aperfeiçoamento.
Nesse contexto, a característica primordial do Pacto Federativo é propiciar a arrecadação e distribuição de receitas entre União, estados e municípios, com destaque para a vinculação obrigatória para a educação (art. 212), ficando estabelecido que a União aplicará, anualmente, nunca menos de 18%, e os estados, o Distrito Federal e os municípios, 25% da receita resultante de impostos, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.
As regras de vinculação de receitas e os fundos de transferência de recursos são elementos essenciais na construção dos sistemas descentralizados de proteção social, como o SUS e o Suas. Os municípios, assim como os estados, são atores basilares em sua implementação, manutenção e aperfeiçoamento
No caso da saúde, a obrigatoriedade das despesas está vinculada ao artigo 198 (§ 2º), que determina a parcela das receitas a ser gasta por cada nível do governo. Cabe destacar que o Sistema Único de Saúde será financiado, nos termos do artigo 195, com recursos do orçamento da Seguridade Social, proveniente das três esferas da federação[1]. Nesse contexto normativo, a saúde é definida como direito social fundamental (art. 6º), garantido mediante políticas públicas que assegurem o acesso universal e igualitário (art. 196), com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais (art. 198, II).
As garantias constitucionais na área da saúde foram todas reafirmadas pelo artigo 2º da Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90), que concebe como direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
Podemos afirmar que Constituição Federal inaugurou, no caso brasileiro, um federalismo solidário, estabelecendo a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (CF, art. 23, II).
No que tange à educação, o artigo 205 da Carta a conceitua como direito de todos e dever do Estado e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Nessa lógica, o pacto federativo fundamenta a produção de soluções de aperfeiçoamento das políticas, envolvendo a definição das responsabilidades a serem assumidas por estados, municípios e a União, a qualificação das estratégias de aprimoramento aos processos de fortalecimento da regionalização, o processo de construção de critérios para a alocação dos recursos de transferências federais, a resolução de conflitos inerentes à barreiras de acesso, a gestão de crises de funcionamento da rede de serviços, entre outras.
Podemos afirmar que Constituição Federal inaugurou, no caso brasileiro, um federalismo solidário, estabelecendo a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência (CF, art. 23, II)
As PECs na Proposta do Pacto Federativo: menos Saúde e menos Educação
Como destacado, no início de novembro de 2019, o governo federal encaminhou ao Senado um pacote de três propostas de emenda à Constituição (PEC), compondo o chamado Plano Mais Brasil – a PEC do Pacto Federativo, a PEC Emergencial e a PEC dos Fundos Públicos, além da PEC de unificação dos gastos em saúde e educação.
Em conjunto, trazem em sua essência a ideia de alteração da forma como União, estados e municípios arrecadam receitas e dividem as responsabilidades entre si, e, de modo geral, buscam descentralizar os recursos públicos reforçando práticas que desobrigam, desindexam e desvinculam receitas.
Entretanto, na prática, instituem, na esfera constitucional, mais regras de regulação das finanças públicas e mais mecanismos emergenciais e descontextualizados de limitação dos gastos públicos. Na seara dessas medidas, duas notícias merecem destaque, a saber: a extinção de municípios e a unificação do piso de gastos da saúde e da educação.
A extinção de municípios
No primeiro caso, municípios de até 5 mil habitantes deverão comprovar, até 30 de junho de 2023, sua sustentabilidade financeira, por meio da arrecadação de impostos correspondente a, no mínimo, 10% da receita de impostos municipais, sob pena de sua incorporação a municípios maiores adjacentes. Com base nos elementos da PEC, o município a incorporar os demais será aquele com maior sustentabilidade financeira entre os vizinhos, e cada município poderá incorporar até três outros. Se a medida fosse executada hoje, teríamos a incorporação de cerca de 1,2 mil municípios.
A proposta trouxe estranheza por sua forma unilateral, situação que fragiliza o diálogo entre os entes federados impossibilitando a discussão de alternativas para o arranjo institucional, fato que pode trazer graves danos ao desenho federativo brasileiro.
Antes de qualquer medida, seria de bom alvitre avaliar alguns caminhos, vinculados a uma conjugação de esforços que passam pela conformação de um novo desenho para a definição/distribuição de competências entre os entes federados, o apoio à construção e estruturação dos consórcios e uma avalição eficiente da destinação de recursos para as Câmaras Municipais (Emenda Constitucional 58/2009).
A proposta [de incorporação de municípios a outros maiores] trouxe estranheza por sua forma unilateral, situação que fragiliza o diálogo entre os entes federados impossibilitando a discussão de alternativas para o arranjo institucional, fato que pode trazer graves danos ao desenho federativo brasileiro
Uma agenda qualificada poderia abranger também a discussão sobre as reais necessidades na implementação de políticas sociais, tendo como base as características dos territórios e as redes de cooperação institucional existentes; a realização de estudos que avaliem a eficiência na arrecadação dos tributos próprios dos municípios; a revisão dos critérios de partilha do Fundo de Participação dos Municípios (FPM); e o investimento na qualificação das equipes técnicas locais, preparando-as para ações de gestão e governança, entre outros itens.
A proposta do governo procura trazer o convencimento de que essa medida traz efeitos imediatos em termos de economia de recursos, representando um dos caminhos para o sonhado equilíbrio das contas públicas. Porém, deixa de fora o rabo das profundas contradições e consequências que poderão ser geradas, caso a medida seja adotada sem a necessária e a honesta discussão sobre onde realmente estão as causas do déficit público. Em tempos de tanta vontade de reduzir direitos, nada melhor do que um bode na sala para se conseguir espaço para negociar.
A unificação dos mínimos de Saúde e Educação
O segundo tema traz uma proposta de unificação dos gastos com saúde e educação, lembrando que a Constituição prevê que cada ente federado deverá aplicar uma parcela da arrecadação de receitas com impostos em cada uma das áreas. Com a proposta de PEC, não existira um mínimo para cada área e sim um mínimo geral, trazendo, segundo seus idealizadores, mais liberdade para os gestores compensarem os gastos de uma área para outra.
Cabe destacar que o desenho federativo alterou a natureza das relações intergovernamentais no setor Saúde. O padrão estabelecido pela CF de 1988 estimulou a construção de uma governança cooperativa, em que as decisões são tomadas de forma conjunta, as responsabilidades são compartilhadas e as ações intergovernamentais tornam-se essenciais para a condução da política de saúde.
Com sua proposta, o governo federal está mexendo em dois dispositivos importantes e que têm efeito multiplicador para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB). No caso brasileiro, calculou-se em 1,7 o efeito multiplicador do PIB para o gasto com saúde no Brasil (para R$ 1,00 gasto com saúde, o aumento esperado do PIB seria de R$ 1,70) e em 1,85, para educação. Fundamentais em tempos de recessão, esses multiplicadores fiscais, articulados sistemicamente aos investimentos e benefícios sociais, são capazes de produzir efeitos positivos na dinâmica de retomada do crescimento econômico.
Essa medida soma-se à perda de R$ 9,7 bilhões no financiamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que se acumularam nos últimos dois anos, sob a égide da EC 95/2016, que congelou o gasto público em saúde e educação por 20 anos.
Cabe destacar que o desenho federativo alterou a natureza das relações intergovernamentais no setor saúde. O padrão estabelecido pela CF de 1988 estimulou a construção de uma governança cooperativa, onde as decisões são tomadas de forma conjunta, as responsabilidades são compartilhadas e as ações intergovernamentais tornam-se essenciais para a condução da política de saúde
Nesse caso, os gastos com saúde e educação perderam a vinculação em relação às receitas, passando a ter as aplicações mínimas congeladas, apontando para um conjunto de perdas de direitos sociais, que minam as conquistas históricas proporcionadas pela vinculação constitucional de recursos nas três esferas de governo. Essa medida aponta para um retrocesso civilizatório, que poderá levar décadas para ser revertido.
Cabe destacar que, em que pese a vinculação existente, no caso da saúde, os estados só vieram a respeitar esse percentual de 12% em 2006, alcançando em 2016 uma média, de 14,4%. Já os municípios, desde o princípio, aplicavam, em média 15%, atingindo em 2016, 24%. No caso da União, o ente também não tem aplicado o montante correto e necessário para manter suas obrigações com o SUS.
Os gastos públicos consolidados (União, estados, Distrito Federal e municípios) em saúde, em 2017, foram de R$ 265 bilhões, representando cerca de R$ 3,60 per capita/dia. Mesmo com esse financiamento insuficiente e inadequado às suas necessidades, o SUS realizou, nesse mesmo ano, 1,7 milhão de partos, 19,9 milhões de procedimentos oncológicos e 11,7 milhões de internações. Disponibilizou também 185,7 milhões de vacinas, 1,4 bilhão de consultas e 4,5 bilhões de procedimentos ambulatoriais, segundo dados apresentados pelo Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), na Subcomissão da Saúde da Câmara dos Deputados, em agosto de 2019.
Se vinculando recursos os mesmos ainda se apresentam insuficientes, ficamos imaginando o que acontecerá com o advento de uma proposta que, além de desvincular, propõe juntar recursos de pastas distintas e que lidam com temas diversos e de expressões diferenciadas, no que tange as necessidades da população.
Porém, em que pesem as dificuldades, avalia-se que a aprovação da EC 29, em 2000, promoveu o aumento dos gastos (incluindo as três esferas) com um crescimento de 2,9% do PIB, naquele ano, para 3,9% do PIB, em 2016 (União – 1,7%, estados – 1,0% e municípios – 1,2%), com participação ativa dos estados e, sobretudo, dos municípios. Sendo assim, o SUS, inscrito constitucionalmente como uma política de Estado, sofre os reveses da instabilidade praticada pelos governos.
Se vinculando recursos os mesmos ainda se apresentam insuficientes, ficamos imaginando o que acontecerá com o advento de uma proposta que, além de desvincular, propõe juntar recursos de pastas distintas e que lidam com temas diversos e de expressões diferenciadas, no que tange as necessidades da população
Se estamos longe do mínimo de 8% do PIB no gasto público em saúde, praticado em outros sistemas universais de saúde, imagine-se o que poderá acontecer com a aprovação de uma proposta que institucionaliza a desvinculação, e que, somada ao advento da EC 95, introduz de forma drástica e explícita medidas de austeridade alinhadas ao discurso do capital financeiro. Com certeza, institui-se o desfinanciamento drástico do SUS, levando ao desmonte do já incompleto sistema nacional de proteção social, situação que, em um país de dimensões continentais e de tantas desigualdades, como o Brasil, significa a assinatura do decreto da barbárie no lugar dos direitos sociais.
* André Luis Bonifácio de Carvalho é doutor em Saúde Coletiva pela UNB e Pesquisador da UFPB e do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
** Assis Mafort Ouverney é doutor em Administração (Instituições, Política e Governo) pela EBAPE/FGV, pesquisador Ensp/Fiocruz e secretário executivo do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
O conteúdo desta publicação é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es), não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz.
[1] A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde, recursos mínimos calculados sobre: I – no caso da União, a receita corrente líquida do respectivo exercício financeiro, não podendo ser inferior a 15% (quinze por cento); II – no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos municípios; e III – no caso dos municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º. Os percentuais mínimos a serem alocados por estados, municípios e o DF são estabelecidos na Lei Complementar 141/2012, sendo 12% para os estados e 15% para os municípios.