Modos de ver e combater o câncer
A matéria publicada no GLOBO de 17 de novembro pode ter causado certa perplexidade ou pelo menos uma preocupação, quando um dos mais importantes oncologistas americanos afirma que “a expectativa para a imunoterapia não é realista”. Sem desconhecer os progressos alcançados com os avanços na terapia celular e na imunoterapia,ele descarta a possibilidade de que isso seja uma panaceia que irá substituir os tratamentos convencionais de cirurgia, quimioterapia e radioterapia. Ele reafirma a importância do foco na prevenção e na detecção precoce, quando possível.
O câncer não é uma única doença, mas, na verdade, um grande número de neoplasias malignas. Para uma grande parte dos cânceres, o principal risco está relacionado à idade. Fatores de risco modificáveis como fumo, obesidade, sedentarismo e exposição a contaminantes ambientais explicam cerca de 90% dos casos de câncer. Medidas de prevenção, detecção precoce e tratamento adequado e oportuno continuam a ser linha de frente nas ações de controle do câncer, principalmente naquelas com vistas a reduzir a mortalidade. No entanto, apesar de todos esses avanços — modernos meios diagnósticos e avanços com novos tratamentos e medicamentos —, o câncer continua sendo um dos maiores desafios para os sistemas de saúde, tanto nos seus aspectos científicos quanto sociais e econômicos.
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No campo científico, o predomínio da metáfora do “corpo como máquina” e “medicina como guerra” produziu um poderoso quadro de referência na era após a Segunda Guerra Mundial, como parte de um complexo cultural-militar-industrial mais amplo. Na oncologia, mais do que em outros campos, o olhar médico tornou-se equiparado ao olhar de um campo de batalha. O sequenciamento do genoma, em particular, é usado para lançar “ataques de precisão” contra diferentes tipos de câncer, onde as antigas metáforas militares de combater a doença estão de novo sob uma nova aparência. A imunoterapia representa o estímulo ao “sistema de defesa” do próprio organismo para “combater as células cancerosas”.O idioma da guerra funciona dentro de sua própria lógica, erradicando seus inimigos; por isso é difícil detectar metáforas alternativas.
Apesar de todos esses avanços — modernos meios diagnósticos e avanços com novos tratamentos e medicamentos —, o câncer continua sendo um dos maiores desafios para os sistemas de saúde
Outro perigo da metáfora de guerra é que ela equipara a produção de medicamentos e outras tecnologias a uma corrida de armamentos, onde a fantasia dominante é que todos os problemas de saúde serão resolvidos em última análise com tecnologias sofisticadas e inovações explosivas. Além disso, essa metáfora incentiva e justifica as estratégias agressivas de marketing da indústria de medicamentos e equipamentos. Finalmente, a metáfora militarista significa controle e certeza. E, na realidade, o grande segredo da medicina é, de fato, saber tolerar e enfrentar a ambiguidade, a incerteza a imprecisão e a incompletude que constituem a existência humana.
O uso de um complexo de metáforas ecológicas pode mudar a perspectiva da atual guerra ao câncer; de uma abordagem e tratamento agressivos e intervencionistas para a prevenção coordenada e planejada, onde valores da obstinação e da futilidade terapêutica são trocados para uma adequada utilização de recursos; uma medicina menos reativa e impulsiva; uma medicina focada na qualidade de vida, controle dos sintomas e na prevenção; uma medicina acolhedora e narrativa apoiada nos valores e hábitos de sentimentos, reciprocidade e apoio às comunidades. Este deslocamento das metáforas dominantes — “corpo como máquina” e “medicina como guerra”— para uma visão ecológica baseada em sistemas e economicamente sustentável — o tratamento como jornada —pode ser visto, por sua vez, como uma mudança de “força” para “presença”. De uma abordagem eminentemente técnica para uma mais humana e social.
Publicado originalmente pelo Jornal o Globo em 24/11/18.
*Luiz Antonio Santini é pesquisador da Fiocruz e foi diretor do Instituto Nacional do Câncer