Vinculação orçamentária e seus inimigos
O pesquisador da Fiocruz Nilson do Rosário, em artigo publicado no Valor Econômico faz uma análise sobre vinculação orçamentária do gasto em saúde no Brasil e o Novo Regime Fiscal. Leia matéria completa:
Do Valor Econômico*
Por Nilson do Rosário Costa
O texto de Fabiola S. Vieira, Sergio F. Piola e Rodrigo P. de Sá e Benevides “Vinculação Orçamentária do Gasto em Saúde no Brasil: resultados e argumentos a seu favor” (Brasília, Ipea, o de 2019) traz uma contribuição atualizada ao debate sobre financiamento da área social.
Especialmente porque torna compreensível o papel da vinculação orçamentária para a sustentabilidade do financiamento das ações e serviços públicos de saúde (ASPS) nas últimas décadas.
Em contraponto à proposta divulgada pelo Ministério da Economia de desvinculação do orçamento da saúde, principalmente dos municípios e Estados, o texto demonstra que o setor público não é um gastador perdulário e irresponsável. Pelo contrário, faz muito com pouco. Os autores destacam que o gasto público per capita em saúde do Brasil, em 2015, foi de US$ 595 (ajustado pela paridade do poder de compra), enquanto o do Chile foi de 1.157 e o da Argentina de 993. A despesa brasileira representou apenas metade do gasto público chileno e 60% da despesa pública argentina.
A comparação com as despesas públicas per capita de países com sistemas universais, como o brasileiro, torna ainda mais expressiva a baixa destinação de recursos para o setor no país: em 2015, o gasto público per capita do Reino Unido foi de US$ 3.330, na Espanha US$ 2.261 e em Portugal, US$ 1.762.
O texto chama a atenção para os resultados virtuosos da pactuação federativa na sustentação do financiamento das ASPS. O federalismo brasileiro conformado na redemocratização dependeu da adesão dos governos estaduais e municipais às novas diretrizes de políticas públicas no campo social. Em um cenário de inovação no escopo e na escala das políticas públicas nacionais, parcela expressiva das funções e dos recursos para as ações com ASPS foram transferidos do governo federal para as esferas subnacionais.
A partir da segunda metade da década de 1990, com a implantação do modelo de atenção descentralizada, a repartição do financiamento passou a ser intensamente negociada entre os entes da federação brasileira no processo de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) delineado pela CF-1988. Em 2000, a proposta de vinculação orçamentária definiu a a destinação de parcela das receitas de tributos para uso exclusivo nas ASPS por meio da Emenda 29 à Constituição Federal de 1988 (EC-29/2000). A EC 29/2000 vinculou percentuais mínimos das receitas tributárias de competência dos Estados e municípios para as ASPS (respectivamente 12% e 15% das receitas líquidas), além de propor a correção, a partir de 2001, dos valores empregados pela União pela variação do Produto Interno Bruto (PIB).
A EC 29/2000 recebeu enorme adesão dos governos locais e regionais. Apesar disto, sua regulamentação só foi feita após longa negociação de onze anos no Congresso Nacional pela Lei Complementar nº 141 em 2012 (LC141/2012). Com a regulamentação, esperava-se que a participação da União passasse a ter como base, como no caso de Estados, DF e municípios, o equivalente a 10% da receita corrente bruta. A proposição foi vetada na LC 141/2012.
Ainda assim, mesmo com o recuo do governo federal, a vinculação orçamentária impulsionou os mecanismos intergovernamentais de recursos, o cumprimento de metas pactuadas e a adoção de políticas-padrão estipuladas nacionalmente, sem ameaçar a autonomia dos governos subnacionais. Os autores do Ipea demonstram que a vinculação orçamentária do gasto mínimo com saúde foi muito importante para ampliar os recursos destinados ao SUS em todas as esferas de governo, ainda que com esforço diferenciado dos entes da Federação.
Os municípios aumentaram a sua participação no financiamento do sistema, seguidos pelos Estados, enquanto a União, que possui maior capacidade de arrecadação de tributos, vem reduzindo sua contrapartida desde então. Cabe assinalar que, em 1990, o governo federal financiava 74,5% das despesas públicas com saúde, enquanto os municípios participavam com 12%. Vinte e cinco anos depois, o financiamento federal caiu para apenas 43% e o dos municípios subiu para 31%.
Finalmente, os autores assinalam que a aprovação da EC- 95/2016, com o congelamento das aplicações mínimas da União em saúde e com a instituição do teto de gastos, impossibilitará a ampliação do aporte de recursos para o SUS mesmo que a economia entre em um ciclo de crescimento econômico. O Novo Regime Fiscal (NRF) retira, na prática, o governo (NRF) retira, na prática, o governo federal do pacto de financiamento tripartite do SUS e da coordenação nacional do sistema.
O país pode prescindir de um sistema público de saúde coordenado pelo pacto federativo? Não. A Estratégia da Saúde da Família (ESF) é exemplo extremamente bem-sucedido de aceitação, por governos municipais, de iniciativas de políticas padronizadas nacionalmente decorrentes da pactuação pelo financiamento. Nessa área, o Brasil tem demonstrado notável desempenho na redução da mortalidade de menores de cinco anos nas últimas três décadas por força da atuação da ESF no âmbito do pacto federativo. Os autores citam também o Programa Nacional de Controle de Doenças Sexualmente Transmissíveis e Aids, com redução das internações e aumento da sobrevida dos pacientes e a Política Nacional de Transplantes de Tecidos, Órgãos e Partes do Corpo Humano, um dos maiores programas de transplante do mundo.
A proposta da desvinculação do orçamento da saúde com a descoordenação sistêmica não apresenta uma alternativa crível melhor do que a construída pelo SUS. Os autores do IPEA têm razão quando alertam que a vinculação implantada pela EC - 29/2000 ampliou os recursos alocados no sistema, mas por si só não foi capaz de resolver os problemas estruturais de financiamento. Ainda é necessário que a expansão do financiamento público permaneça como alta prioridade na agenda política em função da crescente desigualdade e do empobrecimento das famílias brasileiras.
Nilson do Rosário Costa é pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca e pesquisador associado do Centro de Estudos Estrégicos da Fiocruz.
Publicado em 08/11/2019*.