Direito à saúde: dilemas e desafios
Garantir o direito à saúde requer enfrentar desafios que se impõem no confronto entre poder local e vozes globais dominantes. Requer também posicionar-se diante da proposta de cobertura universal de saúde, a ser alcançada por planos e seguros de saúde individuais, no lugar de sistemas universais de saúde, voltados às necessidades da população e defendidos pelos sanitaristas. Esses temas são analisados nos vídeos a seguir, gravados para o blog do CEE-Fiocruz pelos pesquisadores Gustavo Matta, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), coordenador da Rede Zika de Ciências Sociais; Marcos Cueto, professor da Casa de Oswaldo Cruz e editor da revista História, Ciência e Saúde – Manguinhos; e Sanjoy Bhattacharya, historiador da Universidade de York, no Reino Unido, chefe do Centro Colaborador da Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre História da Saúde Global. Eles participaram em 25/9/2019, na Fiocruz, do 135º Seminário sobre Histórias da Saúde Global, organizado pelo Centro Colaborador da OMS sobre História da Saúde Global e que se realiza desde 2005.
Gustavo Matta discute a forma como se busca corresponder às necessidades de saúde da população, em nível global e local, no que diz respeito à atenção primária à saúde, nem sempre contemplando as iniquidades, tanto as que se observam entre países, quanto as que se dão dentro de cada país. Ele destaca o que chama de “componentes críticos” que se tornam obstáculos à organização de sistemas universais de saúde, como o SUS brasileiro, que objetiva a universalidade. Um deles, refere-se à própria organização do sistema, que “depende de estrutura, equipamentos, serviços e, principalmente de trabalhadores, em um momento de grande flexibilização das relações de trabalho”.
Quem financia a atenção primária? De que maneira se financia? Até quando ela é vista como custo ou como investimento, como a necessidade de responder a um direito humano (Gustavo Matta)
Há, também, a ser levada em conta a relação com entre os âmbitos público e privado, não só no que se refere a privatização de ações e serviços, mas ao que chama de marketização. “Consiste em trazer para o público iniciativas que são características do privado, como contratualização, avaliação por desempenho e produção, padronização de processos de trabalho”, explica. “Isso pode trazer mais eficiência, no sentido do custo-benefício, mas pode também impactar a resposta às necessidades de saúde da população”.
Essas questões impactam a forma de se conceber e se levar à frente a atenção primária à saúde (APS), conceito formulado em 1978, na histórica conferência de Alma Ata, no Cazaquistão, que enfatiza a promoção e a proteção da saúde e a universalização do cuidado. “Quem financia a atenção primária? De que maneira se financia? Até quando ela é vista como custo ou como investimento, como a necessidade de responder a um direito humano?”, indaga Gustavo. Nesse sentido, ainda, direito e interesse econômico se imbricam. “A atenção primária acaba gerando um mercado muito atraente”, diz, tomando como exemplo os medicamentos para controle da hipertensão, utilizado por milhões de pessoas.
Para o pesquisador, o cenário que se apresenta hoje em nível global, regional e nacional é muito adverso à discussão de direitos e de sustentação de sistemas universais de saúde. “Há um grande interesse privado na exploração do campo da saúde, das mais diversas maneiras. E qual a capacidade de os Estados regularem essa tensão entre o direito à saúde e o mercado? São tensões que devemos que enfrentar para que o lado mais fraco da corda não seja atingido, que são as populações mais pobres, especialmente, as de países de médio baixo desenvolvimento”.
Marcos Cueto apresenta um pequeno histórico sobre o advento da proposta de cobertura universal de saúde, como alternativa para o programa de saúde global, em contraposição à ideia de sistemas universais. Ele lembra que tanto a Conferência de Astana, no Cazaquistão, realizada em outubro de 2018, pelos 40 anos de Alma Ata, e a 74ª Assembleia das Nações Unidas, recentemente, em setembro de 2019, aprovaram a ideia de cobertura universal, garantida por meio de seguros individuais de saúde, alvo de crítica de sanitaristas, entendida como restritiva e insuficiente à concretização da atenção primária e ao atendimento das necessidades de saúde da população – conforme documento produzido por pesquisadores da Fiocruz e apresentado em Astana.
Ele explica que a ideia surgiu entre os anos de 2003 e 2006, quando esteve à frente da OMS o coreano Jong Wook Lee. Este, no entanto, explica Cueto, considerava, proposta seria acompanhada de medidas importantes, como a discussão sobre determinantes sociais da saúde e o entendimento de que somente os serviços de saúde melhorariam a saúde da população, impactada também por fatores sociais e econômicos. “Por trás dessa política, havia a ideia de que saúde pública era um bem público e não uma mercadoria, como defendido por muitos”.
Com a morte de Lee, a direção seguinte, liderada por Margaret Chan, já não teve interesse nessa visão holística da cobertura universal. “O dilema agora é se na luta pela defesa pela saúde como direito dos cidadãos, vamos fazer alianças com defensores da cobertura universal e seguros universais, ou ter uma postura mais crítica. Isso está sendo discutido”.
Existem grupos de interesse nas Nações Unidas e na OMS que gostariam que acreditássemos que cinco ou seis pessoas, geralmente homens, decidissem o que deve acontecer, e que o mundo inteiro seguisse. Felizmente, o mundo é muito mais democrático (Sanjoy Bhattacharya)
As decisões da saúde global nas mãos de poucos atores e discutidas “em inglês”, minimizando as vozes locais, são destacadas na análise de Sanjoy Bhattacharya. “Quando nos orientamos apenas pela sede da OMS, esquecemos que existem muitos fatores locais que conformam pesquisa, análise e implementação. [Nesse sentido] as línguas são muito importantes: os processos se dão não apenas nas línguas das Nações Unidas, não apenas em inglês. Muitas vezes, pesquisa, análise e implementação se dão em centenas de idiomas falados ao redor do mundo”, observa o pesquisador, que defende e busca pôr em prática uma História Crítica da pesquisa em Saúde. “É preciso extrair exemplos bem sucedidos do nível local, com envolvimento e análise da comunidade e colaboração comunitária na implementação dos projetos”.
Essa abordagem, destaca ele, não é necessariamente a mais bem aceita. “Existem alguns grupos de interesse nas Nações Unidas e na OMS que gostariam que acreditássemos que cinco ou seis pessoas, geralmente homens, decidem o que deve acontecer, e que o mundo inteiro seguisse. Felizmente, o mundo é muito mais democrático”.