Por que a Anvisa erra ao defender a liberação do glifosato

Por que a Anvisa erra ao defender a liberação do glifosato

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Após 11 anos do anúncio da necessidade de revisão toxicológica, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) pôs em consulta pública os argumentos que sustentam a manutenção do registro e, portanto, a continuidade do uso do glifosato, ingrediente ativo de agrotóxico mais disseminado no país.

As manifestações sobre a consulta pública encerraram-se em 8 de julho de 2019, e dois importantes documentos que sustentam a preocupação quanto à segurança para a saúde humana foram publicados, um deles elaborado por grupo de pesquisa do Núcleo de Estudos Ambientais, Saúde e Trabalho (Neast), do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso, e o outro, pelo Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Câncer, disfunções reprodutivas, alterações hormonais e problemas no desenvolvimento de crianças foram apontados nos dois documentos. Outras questões abordadas referem-se às limitações metodológicas do processo de revisão de registro e às fontes de informação selecionadas para esse fim.

Em 2018, o glifosato teve sua utilização suspensa por liminar, como tratado em outro artigo deste autor, que aponta os equívocos do modelo químico-dependente da agricultura nesse contexto.

E onde a Avisa erra no seu parecer?

Inicialmente, é importante destacar que, finalizado o processo de avaliação desses estudos, a agência reguladora pode adotar algumas medidas: a proibição do registro no país (que é pactuada com os setores econômicos); a manutenção do registro sem restrições; e a manutenção do registro com restrições. No caso do glifosato, a Anvisa adotou preliminarmente a última opção, segundo o documento colocado em consulta pública, mas que, espera-se, pode mudar de acordo com as contribuições de diferentes setores da sociedade.

Mesmo com as restrições de uso propostas pela Anvisa, que incluem o valor de Ingestão Diária Aceitável (IDA) e a sugestão de certificação prévia dos trabalhadores que vierem a manipular o produto, os fundamentos para manutenção do registro e liberação do uso do glifosato são insustentáveis. Primeiro, por subsidiar sua decisão, fundamentalmente, em recorte-cola de outras agências reguladoras (Canadá, EUA e Europa [países que divulgaram parecer atestando a segurança do produto]), que apresentam situações de uso e vigilância bem distintas daquelas da realidade do Brasil. Apenas para apontar algumas vulnerabilidades desse processo registra-se que: (a) a Europa não permite a pulverização aérea de agrotóxicos como praticada no Brasil, nem cultiva lavouras transgênicas da mesma dimensão e forma que adotamos no país; (b) a Anvisa ignora que o glifosato pode ser utilizado em combinação com outros agrotóxicos e agir de forma sinérgica, o que é prática comum no campo;  (c) a Anvisa baseia-se, fundamentalmente, em estudos financiados direta ou indiretamente pelas corporações interessadas na manutenção do registro e liberação do uso do glifosato.

Mesmo com as restrições de uso propostas pela Anvisa, que incluem o valor de Ingestão Diária Aceitável (IDA) e a sugestão de certificação prévia dos trabalhadores que vierem a manipular o produto, os fundamentos para manutenção do registro e liberação do uso do glifosato são insustentáveis

Esse terceiro ponto torna-se especialmente crítico após revelação de documentos internos da multinacional Monsanto, por conta de decisões judiciais que condenaram a empresa a milhões de dólares em indenização a pessoas adoecidas após a exposição ao glifosato, apontando para um outro lado do problema, que discute o conflito de interesses no campo científico e será tratado em maior profundidade em outro artigo sobre os casos de whistleblowing e perseguições a cientistas, no contexto das  publicações sobre impactos dos agrotóxicos na saúde e ambiente.

Outros dois elementos importantes que devem ser ponderados no parecer da agência são: a) a inversão do ônus da prova e b) o princípio da precaução. Esses são dois conceitos de valor jurídico que devem ser mencionados e tratados com mais atenção pelos órgãos reguladores. O primeiro determina que a indústria que pleiteia o registro de um novo produto, ou a manutenção do uso de um produto seu já no mercado, deve apresentar obrigatoriamente as evidências técnico-científicas que atestem sua segurança. Já o princípio da precaução determina que, frente à incerteza das evidências, em especial na existência de estudos que apontem efeitos danosos, mesmo que ainda necessitem de aprofundamento, a exposição de seres humanos e ecossistemas deve ser evitada.

Dessa forma, o que os pareceres da UFMT e da Abrasco apontam é que a Anvisa não levou em real consideração tais princípios em seu parecer sobre o glifosato. Foram deixados de lado, preterindo a missão institucional da agência, em função dos interesses econômicos imediatos associados ao uso do produto.

Ironicamente, o posicionamento da agência pode apontar para erros também no ambiente comercial estratégico no país. O recente acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia invocou o princípio da precaução, o que pode se voltar contra os interesses de quem deseja a liberação do glifosato. Talvez, ainda, porque o Brasil tem sido manchete internacional quanto à liberação a jato de agrotóxicos. Uma eficiência nunca antes vista na história da instituição, que agia de forma ideológica, segundo autoridades do setor agropecuário.

O certo é que o glifosato pode ter seus dias contados na Europa, pois a licença de uso expira em 2022 e à época da sua renovação o Parlamento Europeu já havia se manifestado de forma crítica, com base em estudos conduzidos por entes atrelados ao setor econômico. A própria indústria, prevendo futuro difícil para o uso desse produto, já anunciou pesado investimento em novos herbicidas, com investimento de mais de US$ 5,64 bilhões para os próximos dez anos.

Mesmo que tudo fique como está para o glifosato na Europa, certamente o Brasil tem chamado a atenção da comunidade internacional, quanto ao modelo de agricultura, as políticas de demarcação de terras indígenas e quilombolas, de reforma agrária, de incentivo a agricultura familiar, com o valor dado aos direitos humanos, ao mesmo tempo em que anuncia o desmonte de legislações ambientais importantes, incluindo a de agrotóxicos.

Portanto, são várias as facetas que caracterizam o erro de uma possível manutenção do registro e liberação do uso do glifosato no Brasil. Desde os aspectos relativos ao tema da vigilância sanitária stricto sensu até os aspectos de ordem ambiental, ética, social e econômica. O glifosato é a substância química que hoje sintetiza esse quadro amplamente danoso ao país e à saúde da população. É hora de virarmos a página e apontarmos para um futuro seguro.

* Vicente Almeida é professor voluntário da Universidade de Brasília (UnB). engenheiro agrônomo, mestre em Planejamento e Gestão Ambiental e pesquisador em Impactos Ambientais.

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