Encomenda Tecnológica da vacina contra Covid-19 no Brasil: integração virtuosa entre ICT, empresa e Estado

Encomenda Tecnológica da vacina contra Covid-19 no Brasil: integração virtuosa entre ICT, empresa e Estado

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Um ano após a assinatura do contrato da ETEC da vacina contra COVID-19 Oxford-AstraZeneca, gestoras da Fiocruz e procuradora federal apontam complexidades, acertos e desafios do processo. 

Foto: Rodrigo Pereira/Fundação Oswaldo Cruz

Por Karla Bernardo Montenegro* 

A Encomenda Tecnológica (ETEC) é uma modalidade de compra pública prevista na Lei de Inovação que permite a contratação de atividades de pesquisa, desenvolvimento e inovação que envolvam risco tecnológico para obtenção ou de solução para um problema técnico ou para gerar produto, serviço ou processo inovador. Recentemente, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) protagonizou uma das mais emblemáticas ETECs do país: a que possibilitou a compra do desenvolvimento da vacina ChAdOx1 nCoV-19 contra Covid-19 (à época em nível de maturidade tecnológica TRL 7). Além do contrato de ETEC, foi negociado e assinado também um contrato de escalonamento da produção ingrediente farmacêutico ativo (IFA) para a produção de 100,4 milhões de doses da vacina; e, um de transferência de tecnologia, envolvendo a absorção do conhecimento para fabricação nacional do IFA, insumo fundamental para fabricação da vacina.

A experiência foi apresentada no XV Encontro Nacional do Fortec, em sessão especial do tradicional quadro ‘Conte-me algo que não sei’, onde gestores de inovação apresentam processos ou soluções novas utilizadas ou criadas pelas ICTs para resolver problemas e que podem ser replicados pelas demais instituições. Tal sessão fora denominada ‘especial’ pelo impacto que a ETEC e a transferência de tecnologia proporcionaram para sociedade em meio a emergência de saúde pública, a pandemia gerada pela COVID-19.

Deolinda Costa, procuradora federal-chefe junto a Fiocruz e membro permanente da Câmara de CT&I da Procuradoria Geral Federal/AGU destacou que o trabalho para aprovação da ETEC apesar de contar com o permissivo legal claro de dispensa de licitação não eliminou as cautelas jurídicas e a burocracia mínima que garantiu a transparência.  "A celeridade que a ocasião demandava em função da ausência de vacinas no país na ocasião nos fez mobilizar muitos profissionais, tanto da Fiocruz quanto de fora da instituição em um esforço para dar segurança jurídica e cumprir todas as etapas previstas na Lei. Cada obstáculo foi superado. Fizemos quatro documentos altamente complexos: um memorando de entendimentos, um contrato de ETEC, um contrato de transferência de tecnologia e um de fornecimento em tempo recorde", explicou.

Deolinda Costa explica a evolução normativa do Marco Legal de CTI

 

Costa destacou que no que se refere à gestão, o fato de a instituição estar preparada e o NIT-Bio-Manguinhos fortalecido fez toda diferença na hora de aplicar com agilidade as exigências da compra pública. “A Fiocruz tem experiências anteriores com contratos de transferência de tecnologia, tanto para absorção quanto para oferta. A política de inovação da instituição está implementada e o NIT-Bio-Manguinhos já trabalha diretamente com os pesquisadores. Estas três características foram fundamentais tanto na hora de interagir com a parte técnica para cumprir as etapas quanto na hora de negociar os contratos com a empresa”.

Segundo Deolinda Costa, o contrato de transferência de tecnologia, ainda vigente, foi o mais complexo pois foram muitas negociações até definir todos os parâmetros necessários. “O processo de submissão contínua de informações sobre o escalonamento da tecnologia para Anvisa, assim como as adaptações de dezenas de cláusulas contratuais entre a ICT (Fiocruz) e a empresa detentora dos direitos da tecnologia (AstraZeneca) demandou muito esforço, mas resultou em impacto imediato para sociedade, felizmente, a tecnologia foi exitosa e o Brasil comprou o risco ao menor preço possível”.

Destaca-se o trabalho estratégico da Presidência da Fiocruz, que apostou em um modelo de contrato até então inédito para a Fundação. A inovação institucional de investir em um produto que ainda não estava pronto, com todo risco inerente aos desenvolvimentos que envolvem a área biológica demonstram a capacidade dos dirigentes em enfrentar as adversidades. Segundo os teóricos da gestão da inovação TIDD, BESSANT & PAVITT, no clássico livro: Managing Innovation: integrating Technological ,Market and Organizational Change, de 2005, uma gestão de inovação de sucesso depende, dentre outras coisas, de estratégia e de um contexto organizacional apoiador.

De acordo com Beatriz Fialho, assessora executiva da diretoria de Bio-Manguinhos, o processo para tomada de decisão sobre a escolha da tecnologia a ser encomendada foi baseado em intensa prospecção científica e tecnológica, cujo objetivo foi apontar, dentre os produtos em fase mais avançada de desenvolvimento, qual tecnologia apresentava o melhor cenário para proporcionar a promoção do acesso equitativo a vacina no Brasil.

Beatriz Fialho apresenta prospecção para tomada de decisão da ETEC Covid-19

 

De acordo com Fialho, Bio-Manguinhos montou uma rede de inteligência e prospecção envolvendo cerca de sessenta pessoas da unidade, todos trabalhando de forma remota. O trabalho envolveu desde o grupo de discussão, com objetivo de acúmulo de massa crítica para avaliação e aprendizado sobre as tecnologias em desenvolvimento; passando pelo grupo técnico de prospecção que continuamente coletava e preparava a informação tecnológica obtida em bases privadas e públicas; até o grupo de oportunidades, liderado pela área de novos negócios, que visava o estabelecimento de novas parcerias para viabilizar produtos e serviços envolvendo o enfrentamento a COVID-19.

Segundo Beatriz Fialho, a metodologia utilizada para prospecção foi variada. “Partimos de um quadro de muita incerteza acerca do objeto de nossa prospecção. Pouco se sabia sobre o vírus. Mesmo assim, estabelecemos critérios qualificadores para decisão, com base em informação disponível em diversas fontes, muitas delas até então pouco utilizadas, como os artigos em pré print. Utilizamos esquemas lógicos, metodologia para preparação de painéis analíticos com base em informações que ainda estavam em construção e buscamos aspectos qualitativos em prospecções contínuas e multidisciplinares”.

Ana Paula Cossenza, assessora jurídica da diretoria de Bio-Manguinhos  e integrante do NIT-Bio-Manguinhos explicou que a prospecção foi imprescindível para a escolha do desenho jurídico dos contratos. “As informações da prospecção nos subsidiaram tanto na construção das minutas de contrato quanto nas negociações”, apontando que “conhecer detalhes do grau de maturidade da tecnologia escolhida frente às outras tecnologias que estavam em desenvolvimento, por exemplo, foi informação valiosa para ter segurança na fixação de preço do produto encomendado (US$ 3,16 a dose), o que é extremamente importante para a compra pública”.

Ana Paula Cossenza explica as características da ETEC

 

Dentre os documentos que ampararam a aprovação do contrato de ETEC, segundo Cossenza, está o ofício do Ministério da Saúde, que qualificou Bio-Manguinhos como laboratório público apto a fabricação da vacina (Ofício 743/2020); a nota técnica da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos do MS (NT 6/2020) que apontou a necessidade emergencial da ETEC ; a nota técnica do IPEA ( NT 71/julho/2020) que categorizou o TRL 7 da vacina Oxford AstraZeneca como caso clássico de ETEC, dentre outros. O modelo contratual utilizado como base para a negociação foi elaborado no âmbito da Câmara Permanente de CT&I da Advocacia-Geral da União (AGU), assim como os procedimentos de negociação e a elaboração da documentação que compõe o processo administrativo foram pautados no ‘Projeto de Contratação de Inovação para a Administração Pública do Tribunal de Contas da União’ (TCU) e no ‘Guia Geral de Boas Práticas de Encomendas Tecnológicas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada’ (Ipea).

Com relação ao arcabouço jurídico, Cossenza esclarece que tanto o Marco Legal de Ciência, Tecnologia e Inovação quanto a Lei 13.979/2020 (Lei de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus) foram utilizadas como base para os primeiros acordos de confidencialidade assinados com potenciais parceiros. “Foram realizadas muitas reuniões, ao mesmo tempo que mapeávamos os riscos, escrevíamos os termos de referência e conversávamos com os parceiros. Criamos um paralelismo de atividades, que só foi possível em função da dedicação de muitos gestores, dentre eles de Bio-Manguinhos, Gestec, Procuradoria Federal, Comitê técnico de especialistas, dentre outros”.

Dentre os ativos intangíveis negociados pela Fiocruz estão: licença de patente, direito de uso de know how, transferência total da tecnologia e o envio de banco de células e de vírus. 

*Karla Bernardo Montenegro é jornalista, assessora da Coordenação do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho.

Publicado na FORTEC – Associação Fórum Nacional de Gestores de Inovação e Transferência de Tecnologia, em 8 de outubro de 2021. 

Conheça o Contrato de ETEC Fiocruz-AstraZeneca: https://portal.fiocruz.br/sites/portal.fiocruz.br/files/documentos/contrato_vacina_astrazaneca_fiocruz.pdf

Saiba mais sobre a vacina contra Covid-19:
https://portal.fiocruz.br/vacinascovid19
https://www.bio.fiocruz.br/index.php/br/produtos/vacinas/informacoes-sobre-a-vacina-covid-19