É preciso – e é possível – aperfeiçoar estratégias e avançar na prevenção ao câncer, afirmam pesquisadores

É preciso – e é possível – aperfeiçoar estratégias e avançar na prevenção ao câncer, afirmam pesquisadores

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Estudo realizado pelo movimento Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC) e o Observatório de Oncologia, em parceria com o Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz mostra que a incidência e a mortalidade por câncer vêm aumentando no Brasil. Hoje a doença já é a principal causa de morte em 606 municípios e a estimativa é que o país terá 995 mil casos novos de câncer em 2040. Entre os fatores que explicam essa realidade estão a transição demográfica que o Brasil atravessa: com aumento da expectativa de vida e uma população mais envelhecida, aumenta também o risco de câncer. Além disso, o país vive uma transição epidemiológica, na qual percebe-se uma diminuição da mortalidade por doenças transmissíveis e um aumento de mortes por doenças crônicas não transmissíveis – entre elas, o câncer.

A pesquisa foi apresentada durante o 9º Congresso Todos Juntos Contra o Câncer (TJCC), realizado de 27 a 29/9/2022, na mesa Aumento da incidência e mortalidade por câncer: como diminuir esses números?, no último dia do evento. Diante do avanço das políticas públicas e do desenvolvimento de novas tecnologias em saúde, os participantes buscaram discutir onde os esforços não estão sendo eficientes e, a partir daí, pensar na necessidade de se buscarem novas estratégias ou otimizar as já existentes. Nesse contexto, foi destacada a importância dos dados para a identificação das fragilidades na atenção ao câncer, assim como para o fornecimento de informações com vistas a melhorias.

A sanitarista Ana Beatriz Machado de Almeida, pesquisadora da Associação Brasileira de Linfoma e Leucemia (Abrale), apresentou dados referentes ao cenário do câncer no Brasil, com análise e comentários do pesquisador Luiz Antonio Santini, ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e um dos coordenadores do projeto de pesquisa do CEE-Fiocruz Doenças Crônicas e Tecnologias em Saúde (DCTS) – ao lado do ex-ministro da Saúde e também pesquisador do CEE José Gomes Temporão, que integrou a mesa de abertura do Congresso em 27/09.

Participaram, ainda, da mesa João Abreu, mestre em Desenvolvimento Internacional pela Universidade de Harvard, cofundador e diretor executivo da organização Impulso Gov, voltada a impulsionar o uso inteligente de dados e tecnologia no SUS, e o epidemiologista Alfredo Scaff, ex-subsecretário de Atenção à Saúde da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. A moderação esteve a cargo de Nina Melo, coordenadora do Departamento de Pesquisa da Abrale.

O evento, realizado em São Paulo e transmitido on-line pela plataforma do TJCC, reuniu representantes de organizações da sociedade civil, membros da academia e profissionais de saúde, com o objetivo de discutir os desafios, conquistas e inovações da Oncologia. 

Sabemos que o SUS tem um problema crônico de financiamento, em especial, na atenção primária. Como economista, acho muito paradoxal, porque a gente deixa de gastar dinheiro naquilo que vai nos economizar mais dinheiro no futuro (João Abreu, Impulso Gov)

João Abreu abriu a mesa destacando a qualidade dos dados referentes ao câncer no Brasil para, em seguida, falar do Impulso Previne, ferramenta aberta e gratuita, desenvolvida por sua organização, que centraliza análise e visualizações da Atenção Primária.  O usuário é o gestor público que trabalha nas secretarias de Saúde das prefeituras de todo o Brasil. “No Brasil, temos dados de atenção primária muito importantes e sem precedentes em qualquer outro sistema de saúde universal e gratuito no mundo”, considerou. Por conta de programas federais, explicou, tem se conseguido aumentar a quantidade de pessoas cadastradas na Atenção Primária e a qualidade dos dados. “Hoje já temos 160 milhões de pessoas cadastradas, 90% delas com seus CPFs”.

Em relação ao perfil das pessoas que usam e recorrem à atenção primária no SUS, João lembrou que são majoritariamente mulheres (70%), pessoas pretas ou pardas (60%) e sem plano de saúde (95%), ou seja, a saúde pública é basicamente o único recurso de que dispõem quando necessitam de qualquer tipo de serviço de saúde. “Se não tivermos um olhar para a saúde pública não conseguiremos resolver nossos problemas”, diz o pesquisador. Em sua avaliação o gasto em saúde no Brasil não é baixo e sim a proporção de gasto público frente a esse valor – “muito baixo”, afirma. O setor privado tem participação muito maior, explica, e “existe a oportunidade de mais colaboração entre o público e o privado”, pontuou.

João Abreu destacou a importância do trabalho de prevenção para a melhoria do controle do câncer. Nesse sentido, referiu-se ao Programa Previne Brasil, lançado em 2019, que condiciona o repasse de recursos para os municípios ao desempenho de alguns indicadores de saúde. “Hoje, percebemos que os municípios estão especialmente preocupados com esses indicadores, um deles é a oferta de exame citopatológico (preventivo) na APS, relacionado ao câncer de colo de útero”, observou.

No entanto, pontuou, existem outras frentes em que o país deveria avançar, como incentivar maior cobertura vacinal contra o HPV, responsável pelo câncer de colo de útero. Incorporada ao SUS em 2013, com 43,4 milhões de doses aplicadas naquele ano, a vacinação contra o HPV infelizmente não entra como um dos indicadores acompanhados pelo Previne Brasil. “Vem caindo a cobertura e não existe incentivo forte para se avançar nessa vacinação”, avaliou Abreu, ao sublinhar que, se há uma vacina eficaz para reduzir a incidência desse câncer, ela deveria ser a melhor alternativa para isso. “Um câncer possível de ser erradicado, como vem sendo em outros países”, completou. 

João ressaltou, ainda, a importância de se “modernizar o SUS”, com a utilização de ferramentas tecnológicas na área de informação. “Falamos muito na Impulso sobre o potencial de termos o melhor sistema de saúde do mundo, se combinarmos tudo que já é feito com as ferramentas mais modernas que a gente possui”. Para isso, explicou, é preciso mais investimento na atenção primária à saúde.  “Sabemos que o SUS tem um problema crônico de financiamento, em especial, na atenção primária. Como economista, acho muito paradoxal, porque a gente deixa de gastar dinheiro naquilo que vai nos economizar mais dinheiro no futuro, e, em vez disso, enxugamos gelo”. 

Os recursos destinados à atenção primária, em sua avaliação, não devem ser considerados gastos e sim investimento, mas ele diz que infelizmente não é isso que vem sendo feito. “No Brasil, se gasta muito mais na especializada do que na primária e isso cada ano que passa se torna mais perverso e difícil de funcionar”. Quanto mais o país avança em sua transição demográfica, na mudança de carga de doenças, explicou, mais difícil vai ser remediar, tentando tratar pessoas com câncer em estado já avançado.

Não era para termos câncer de colo de útero, nem mortes por essa causa, porque é um câncer altamente prevenível, e aí se acende um alerta para a Região Norte que tem dez mortes a cada 100 mil mulheres, número superior ao do Brasil (Ana Beatriz Almeida, Abrale)

Em sua apresentação, a pesquisadora Ana Beatriz Almeida comparou a situação do Brasil com a de outros países da América Latina e a do mundo. Conforme expôs, a taxa de 295 casos novos de câncer a cada 100 mil pessoas registrada no país é considerada intermediária em relação à de demais países em desenvolvimento, mas superior à do mundo e também em relação a outros países da América Latina, como Colômbia e México.

De acordo com a pesquisadora, o Brasil vem assistindo, não só a um aumento do número de novos casos, como a um aumento também da mortalidade por câncer. Se, em 2001, o câncer assumia o terceiro lugar como causa de morte, em 2003, já havia passado à segunda posição. Em 2020, esse cenário em relação às outras doenças mudou, por causa do aumento do número de mortes por doenças infecciosas, provocado pela pandemia de Covid-19. Ao falar da prevalência de alguns dos principais tipos de câncer nas regiões brasileiras, a pesquisadora assinala a importância da prevenção. “Temos diversas estratégias que podem ser feitas na atenção básica para evitar novos casos e principalmente evitar mortes.  Não era para termos câncer de colo de útero, nem mortes por essa causa, porque é um câncer altamente prevenível, e aí se acende um alerta para a Região Norte que tem dez mortes a cada 100 mil mulheres, número superior ao do Brasil”.

Ao lembrar que a detecção precoce é melhor para o sistema de saúde, pois reduz gastos com tratamento e, principalmente, é melhor para o paciente, porque melhora o prognóstico e aumenta as chances de cura, Ana Beatriz observa que não é isso que acontece no Brasil. Segundo a pesquisadora, os dados levantados mostram que  88% dos casos de câncer de pulmão, em 2020, foram diagnosticados em estagiamento 3 e 4 , os mais avançados da doença; e 73% dos pacientes com casos de câncer de estômago também foram diagnosticados em estágio avançado. “Ainda temos muito que percorrer para que cada vez mais pacientes sejam diagnosticados em estagiamento precoce de forma a melhorar sua qualidade de vida e seu prognóstico”.

Para diminuir esses números, ela ressalta a importância de se trabalhar a prevenção e a atenção primária à saúde. “Sabemos que existem fatores de risco para o desenvolvimento de câncer e existem aqueles fatores de risco que são modificáveis”, explicou, mencionando a edição de 2019 da Pesquisa Vigitel (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas, realizada pelo Ministério da Saúde para traçar o perfil do brasileiro em relação as doenças crônicas mais incidentes no país):há, ainda, uma grande presença de fatores de risco modificáveis como, por exemplo, a  inatividade física e o consumo de alimentos processados entre os hábitos dos brasileiros. Por fim, Ana Beatriz lembrou que o país já conta com diversas políticas públicas, levadas à frente ao longo dos anos, desde 1998, para lidar com o câncer. Ela citou o cadastramento de centros de alta complexidade em oncologia para estabelecer uma rede de atendimento aos pacientes do sistema público de saúde; a Política Nacional de Atenção Oncológica (PNAO-2005), que contempla ações de prevenção, atenção e diagnóstico, e a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer, de 2013, com o objetivo de reduzir a mortalidade e a incidência dos diversos tipos de câncer no país. Para fomentar o debate, ela lançou a pergunta: “Será preciso planejar novas estratégicas ou podemos otimizar as já existentes?”.

O câncer vai passar a ser a principal doença a levar as pessoas ao óbito, vai superar as doenças cardiorrespiratórias. Teremos que enfrentar, e a forma de enfrentar será com informação para a ação. Precisamos conhecer para agir (Alfredo Scaff)

Alfredo Scaff sublinhou em sua fala a importância da informação para a ação. “Foi isso que aprendi durante minha formação como epidemiologista: conseguir as informações necessárias para mudar a realidade. Acho que na pandemia as pessoas entenderam qual é o papel da epidemiologia, qual é o nosso papel e qual é a importância do nosso trabalho”.

Conforme destacou, na epidemiologia do câncer, a informação representa um desafio muito maior, pela dificuldade de se conseguir acesso a alguns dados. “Concordo com o João, quando disse que o Brasil tem um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo e o nosso sistema de informação também é um dos maiores do mundo”, explicou. No entanto, em sua avaliação, dessa quantidade gigantesca de dados, dos estudos acadêmicos aos epidemiológicos para intervenção, é estudada apenas a casquinha. “É fantástico quando iniciativas como o TJCC, o Observatório e o Impulso.gov conseguem extrair esses dados como informação que pode mudar a realidade”.

Ele destacou a necessidade de se estabelecerem metas objetivas em relação à atenção ao câncer e empreender um esforço grande para rastreamento populacional. “São os registros de base populacional que informam qual é a incidência de câncer, quais são os casos novos, quantos existem em determinada região e qual é o índice de sobrevivência daquela população ao câncer”.

Segundo o médico, o câncer vai passar a ser a principal doença a levar as pessoas ao óbito. “Vai superar as doenças cardiorrespiratórias e entrar de forma muito intensa. Teremos que enfrentar, e a forma de enfrentar será com informação para a ação. Precisamos conhecer para agir”, afirmou, explicando que serão necessárias informações específicas.

Alfredo chamou a atenção, ainda, para a falta de controle de informações de quem se trata na saúde suplementar, setor que atende 50 milhões de brasileiros. “Precisamos que os planos de saúde tenham programas para controle de câncer, para diagnóstico de câncer, para tratamento de câncer da forma mais adequada possível”.

O enfrentamento ao câncer, disse ele, requer se pensar uma década à frente. “Câncer precisa de planejamento de longo prazo. Sem isso, não reduzimos os números, nem mexemos com a estrutura da doença”. Outra recomendação sua é fazer o acompanhamento das informações sobre os pacientes da atenção básica até a especializada.

Por fim, Scaff pontuou que uma das muitas lições aprendidas com a pandemia de Covid-19 é que não se combate uma doença agindo apenas numa faixa da sociedade. “As doenças aparecem para todos, mas o cuidado é desigual. Para combater o câncer, é preciso buscar resolver as iniquidades”.

Santini enfatizou a grande desigualdade na incidência e na mortalidade do câncer em relação aos países e internamente a cada país. “Existe uma desigualdade tanto do ponto de vista do acesso aos recursos existentes, como também em relação aos recursos de inovações tecnológicas que podem vir a acontecer”

Com os dados disponíveis e utilizando as tecnologias já existentes, tal como demonstrado pelo João, ele disse que é possível contribuir com informações para os municípios, visando alcançar a proposta da OMS e eliminar alguns tipos de câncer passíveis de controle, "como é o caso do câncer de colo de útero”.

Ao falar sobre os recursos destinados ao controle do câncer, Santini disse que no ano de 2018 estima-se que foi gasto em torno de 1,5% do PIB global em tratamento de câncer. Contudo, a destinação desses recursos também obedece a mesma lógica da desigualdade, com 90% utilizados nos EUA, na Europa e no Japão e apenas 10% no restante do mundo. “Nós temos desigualdade de acesso, relativa à recursos financeiros, mas também relativa à organização e à gestão do sistema, então tudo isso vai compondo um painel que vai nos ajudando a responder a essa pergunta inicial, o que falta fazer?”

O controle do câncer deve envolver uma ação articulada e estratégica de um conjunto de diversas iniciativas desde prevenção primária, vacinação, estratégias de controle populacional até o acesso a essas inovações (Santini).    

O avanço científico e tecnológico para diagnóstico e tratamento do câncer, com a produção de novas drogas, novos medicamentos, informações genéticas e terapias imunológicas, continuou, também, estão inseridos no mesmo contexto de desigualdade. Em sua avaliação, embora os investimentos em ciência e tecnologia sejam importantes, “muitas vezes as pessoas têm expectativa que elas ofereçam uma bala de prata que irá resolver o problema do câncer no mundo, mas infelizmente isso não é a realidade ainda e provavelmente não será”, disse o pesquisador.

Para concluir, Santini disse que é preciso continuar a aprofundar o que tem sido feito e articular a atenção em todos os níveis. “Se não houver uma integração sistemática de todos esses níveis não se conseguirá dar conta dos problemas”. Para o pesquisador, grande problema enfrentado hoje no controle do câncer no Brasil é a capacidade de implementação de ações nesse sentido.