O tempo livre e o novo feitiço do capital
“Apagão do Facebook” escancara tendências do capitalismo: a captura do tempo livre pelas novas tecnologias como forma de massificar a alienação — e explorar, ainda mais, o trabalho. Assim, busca se reciclar e remodelar noção de real e virtual. Publicado no site Outras Palavras, por Nathan Caixeta*.
A “queda do zap” em, 04/10/21, atinou com desaviso a inquietante e cada vez mais esquecida forma de viver, forçando o distanciamento compulsório das redes sociais e das inúmeras formas de conexão virtual que consomem a atenção das pessoas.
Estima-se que as ações do Facebook tenham caído em quase 5%, enquanto os operadores da empresa se esforçavam para corrigir a falha técnica. Contudo, a paralisação de parte do mundo virtual em questão de horas forneceu um interessante experimento social, levando as pessoas a perceberem a existência do próprio real desnudo da celeridade virtual que encobre, seja para arrancar os cabelos ao efetuarem pagamentos virtuais não compensados, ou para solucionarem a questão do que fazer com o próprio tempo-livre, uma vez que sua instância de captura imediata fixou-se em um limbo que retrocedeu as eras: do tempo das relações virtuais para a época já imperceptível das relações pessoais.
Embora tenha sido apenas um “susto” passageiro, o fenômeno abre espaço para observar as conexões entre a valorização do capital cujos desdobramentos comerciais, produtivos e financeiros são parciais, ou integralmente conectados ao mundo virtual e a disposição, captura e transformação do tempo-livre dos indivíduos em valor de troca.
A virtualização das relações sociais
Conforme insiste Eduardo Mariutti, professor da Unicamp, a esfera do virtual não se opõe a realidade, mas se expressa pelo transbordamento do “possível”, isto é, pelo conjunto de possibilidades acessíveis a imaginação humana. O virtual transforma os fragmentos criados pela imaginação humana em um universo construído, potencialmente ilimitado, mas restrito ao conjunto de percepções humanas em dado momento do tempo. O mesmo efeito é percebido, se comparada uma obra de arte, ou fotografia, ao cinema que amplia, na conexão dos sentidos e das emoções, o universo imaginado pelo receptor da mensagem. A narrativa deixa de ser construção do real para o possível, passando a contrariar a cada instante as emoções, pela invasão dos sentidos, criando espaço para que a imaginação do interlocutor dissolva as controvérsias entre a realidade presenciada e o universo virtualmente ilimitado da próxima cena.
As redes sociais exercem efeito semelhante sobre os indivíduos, dando-lhes a sensação da privacidade absoluta, cercada pelo próprio eu e subitamente invadida pela representação da realidade cristalizada na transmissão incessante de informações vindas de todos os lados. As formas de relacionamento social surgidas nesse meio acumulam contornos dispersos e fragmentados, pois a barreira do “eu” encobre seletivamente a invasão daquilo que é estranho, seja em ato de indiferença, ou em ofensiva oposição que tende a se tornar, por vezes, violenta e extrema a medida em que o espaço da privacidade absoluta percebe-se imerso no espaço coletivo.
O resultado é o estabelecimento de signos delineados de pertencimento, aderindo e repelindo conjuntos de expressão com a velocidade de quem ultrapassa em segundos a esfera da imaginação restrita a realidade concreta, integrando elementos que tornam o espaço pessoal uma fortaleza efêmera e ilimitada, onde os sentidos passeiam pela autopercepção de si, contrastada a célere aceitação, ou rejeição das representações do mundo exterior.
O mesmo fenômeno que explica a “viralização” de notícias falsas e verdadeiras também explicita as raízes da cultura do cancelamento, efeitos encadeados pela psicologia das massas sublevada e erguida pela alimentação da sensação de autoaceitação e pertencimento: postar, compartilhar, curtir ou desgostar são fenômenos de delineamento da própria personalidade, ou da parte aparente que o inconsciente permite ser exposta na rede. A estranha sensação de conectar-se aos outros, protegidos pela camada do próprio ego, permite aos indivíduos a célere remarcação do “eu” em contraste com os demais, reproduzindo a formação da consciência sem necessitar da confrontação entre o universo virtualmente ilimitado e os acontecimentos reais. A cultura do cancelamento é a expressão em massa de reafirmação da consciência, atrofiada pela fabricação do pertencimento.
O poder de atração do mundo virtual decorre, precisamente, da celeridade oferecida na disposição do tempo-livre ao exercício da autoafirmação, dispensando o “real” e entregando a formação do ser ao contato com a projeção do “não-ser”, isto é, tudo aquilo que encobre os aspectos pudendos da realidade, expressando-se com exagerada aceitação, ou rejeição do virtualmente possível. O tempo-livre do qual falava Adorno foi transformado de esfera de alienação da consciência em fábrica de emoções que corroboram e reafirmam a imagem que o próprio indivíduo tem de si mesmo, como se Narciso carregasse o rio em que projeta a própria beleza em seus bolsos, podendo apaixonar-se por si próprio sem necessidade de sacrificar seus olhos pela percepção da distância entre o concreto e o imaginado.
As virtudes do capital
O que chamamos de capital em muito se desloca de seu sentido original, gerando confusões como as disparadas por Thomas Piketty no famoso livro O capital no século XXI. O autor, como tantos outros leitores desatentos dos clássicos da Economia Política, refere-se ao capital como a totalidade de bens materiais referidos a forma monetária que são utilizados na produção de bens e serviços para a criação de valor mediante a exploração do trabalho. Contudo, convém lembrar em dupla missão de combater os “amantes da mais-valia” que o capital é, antes de mais nada, uma relação social que empresta suas vestes aos proprietários da riqueza para despi-los no ato da valorização dessa mesma riqueza. Portanto, trata-se de uma relação de autorreferência entremeada por trocas, onde o aspecto social é ocultado pelo dinheiro, aparecendo tão somente os aspectos materiais de desdobramento da forma-valor, desde sua criação pela objetivação da força de trabalho em trabalho-abstrato até sua consumação concreta na transformação do futuro em ato presente de “valorização do valor”.
Portanto, antes de material, é uma relação monetária, expressando-se assim por ser, primeiramente, uma relação social de exploração do trabalho pelo capital, e não do trabalhador pelo capitalista que representa um infortúnio para o capital e, por isso mesmo, sua virtude está na negação do trabalho em seu próprio movimento de acumulação ao tornar riqueza-velha em mais riqueza, gerando incessante movimento de revolução dos meios técnicos de produção para expandir seus espaços de acumulação, subtraindo, ainda que não eliminando, sua necessidade de confrontar-se com o trabalho, portanto, com a esfera social de criação do valor ainda não consumado em dinheiro, a forma real da abstração do capital, como anotam Luiz Gonzaga Belluzzo e Gabriel Galípolo no livro Dinheiro: o poder da abstracão real.
O capital não trata de tempo de trabalho, mas do tempo-livre cristalizado em suas formas de reprodução, por isso mesmo, se ocupa em capturar as esferas da existência humana “coisificando” as relações sociais, tornando-as sua imagem e semelhança, isto é, a referenciação de tudo ao dinheiro. O capital apaixona o homem pelo dinheiro e nisto reside seu império sobre o trabalho, porque o trabalho-abstrato está referido ao dinheiro que estabelece a própria forma material em que se transformará o dispêndio da força de trabalho. Pela revolução dos meios técnicos de produção, o trabalho torna-se mais produtivo, dispensando trabalhadores por máquinas que regem sistemicamente a produção de mercadorias. O trabalho acaba por revelar-se, conforme Marx disse certa vez: “base miserável de valorização do capital”, pois prescinde da realização do valor, enquanto as formas concretas, subitamente financeiras do capital, realizam a si mesmas, porque diretamente referidas a forma potencial da riqueza, o dinheiro.
O tempo-livre fragmentado no cotidiano dos indivíduos permanece subitamente entregue a materialização de seu dispêndio social pela via do trabalho precário e do consumismo, formas de alienação do ser que petrificam as relações entre pessoas na forma do dinheiro, e, sob a forma projetada do ser no dinheiro, o capital realiza seu feitiço, transformando tempo-livre em riqueza, partindo do dinheiro, a forma abstrata da riqueza, para no ato da abstração do ser transformado em coisa, concretizar seu aspecto autorreferente. Portanto, é pela submissão do tempo-livre que se dá a alienação capitalista para qual a alienação do trabalho funciona como engrenagem e não como fundamento de reprodução do capital.
A virtualização do capital
Para além de enervar o caráter narcisista da vida moderna, o mundo virtual tem por efeito, objetivado na consolidação das empresas-plataforma, tais como Google, Facebook, Uber, etc., a captação, análise, remodelamento e retransmissão de informações desde dados e preferências pessoais até o direcionamento instantâneo de mensagens adaptadas aos perfis de cada usuário. É o retorno do virtual para o real, quando o conjunto de signos de pertencimento despejados pelas preferências pessoais são transformados em dados e informações facilmente receptíveis aos grupos de interesse para o qual são endereçados, chegando até mesmo à personalização completa.
A captura do virtual pelo capital dá-se na medida em que o espaço de conexões do ser com o “não-ser”, oposto e ofensivo, delimita os caminhos de disposição do tempo-livre na formatação da consciência individual e coletiva. Desse modo, o capital atua na transmutação das relações sociais subjetivadas pelo mundo virtual em relações mercantis que transitam entre o virtual, o possível e o real, vazando para a realidade pela via da alienação da consciência na promoção do consumo como símbolo de felicidade, dos padrões de aceitação como identidade, e do trabalho autogerido, conforme denomina Ludmilla Abílio, pesquisadora do CESIT, como autoafirmação do valor social do ser individual ao transformar-se em mercadoria-trabalho, seja na criação de conteúdos digitais, ou correndo de um lado para outro das metrópoles urbanas carregando passageiros ou caixas de pizza.
O tempo-livre passa a ser capturado pelo capital em sua fonte de armazenamento mais impoluta, pois referida aos símbolos contemporâneos de afirmação social, sendo estocado nas fortalezas dos big-datas das empresas-plataforma que direcionam as informações pelo direcionamento algorítmico de modo a prender o indivíduo ao mundo virtual, alimentando a autossatisfação do ego pelo adiamento do desespero em transformar a representação virtual em ações reais, como quem corre em uma esteira competindo contra o reflexo do espelho. Nesse movimento, a demarcação do “não-ser” pelo indivíduo imerso no mundo virtual, laceia a competição capitalista, mediante a cooperação oligopolista entre as empresas-plataforma pela manutenção dos indivíduos conectados em rede, e pela disputa predatória pelos postos de trabalho, oferecimento de objetos de consumo e formas de representação virtual “plenamente aceitas”, componentes ofertados virtualmente que medem e modelam o “pertencimento” dos indivíduos na sociedade das “telas pretas”.
A transformação do movimento virtual de captura do tempo-livre e seu dinâmico processo de erosão do mundo real, acelera a coisificação das relações sociais, possibilitando ao capital transformar tempo-livre em riqueza abstrata pelo oferecimento do potencial tecnológico de modelamento da conexão entre o virtual e o real aos mercados de negociação dos estoques de riqueza financeira, dada a imersão parcial ou total das operações das grandes empresas no mundo virtual e a otimização conectiva que a mediação ou utilização de informações concedem aos blocos de capital em disputa por frações do tempo-livre das pessoas.
O poder de conectar e moldar o real pelo virtual permite ao capital, portanto, transformar relações de autoalienação da consciência em meio de alienação massificada do tempo-livre em dinheiro, uma vez que direta ou indiretamente a conexão em rede de indivíduos acaba por ser monetizada, portanto, transformada em riqueza potencial, efetivada pela via do trabalho, mantendo pulsante as correntes entre tempo de trabalho e tempo-livre, como certa vez comentou Adorno. Ao mesmo tempo em que opera a circulação da riqueza potencial nos circuitos de crédito, transformando a riqueza-velha cristalizada nas fortalezas tecnológicas em riqueza fictícia pela prospecção do “valor futuro” a ser gerado pelo fortalecimento da conexão entre o virtual e o real, trazido ao presente na forma de títulos de propriedade “marcados à mercado” pela capacidade de liquefação do futuro no presente.
Novos-tempos: a frustração de David Harvey
David Harvey entre todos os anunciantes das “limitações” do capital, é o que mais se esmera ao estar correto, se houvesse a possibilidade de não estar errado, dados os postulados assumidos em sua tese sobre a inevitabilidade da superacumulação que espera pelo “estouro” do caos a medida em que se enervam as condições de flexibilidade do sistema monetário-financeiro em contraste com a superexploração do trabalho. Outros como Ladislau Dowbor defendem que as transformações trazidas pela globalização, as novas tecnologias, os impasses do neoliberalismo e o tensionamento da financeirização da riqueza abrem espaço para novos arquétipos sociais que superem as limitações da razão econômica, operando em larga escala novas formas de organização social que “domem” o caráter predatório do capitalismo. Existem ainda, os apóstolos do “decrescimento” como forma de ajustar o modo de produção capitalista às efetivas condições de distribuição sustentável dos recursos materiais.
Historicamente, todas as especulações que levantaram bandeiras contra a tirania do capital, evocando a força do Estado, das classes subalternas, ou de mecanismos endógenos de paralisia do movimento do capital acabaram por fixar-se como esperança que infla as gargantas e estampa os ideais mas cuja efetividade histórica encontrou-se suplantada por aquilo que Marx chamou de “derretimento dos sólidos”, referindo-se não apenas aos valores da tradição, mas ao desmantelamento das barragens impostas pela organização social, no contínuo reforço de materialização das relações humanas e racionalização de todas as esferas de representação social, incluindo o Estado, as forças sindicais, revolucionarias, além dos aportes teoréticos que bradam contra o “capital bandido”.
Os teóricos da superacumulação como Harvey repisam em ovos quebrados, ao perceberam sua quase apostólica missão de anunciar as crises do capitalismo. Ocorre que não apenas existem crises no capitalismo, como elas são expressões do próprio movimento do capital que antes de guardar relação “coerente” com a capacidade efetiva de exploração do trabalho, entrando em crise quando ousa romper as “amarras” do valor-trabalho, opera ao avesso de sua superfície material, desqualificando e negando o trabalho, ao mesmo tempo em que sua independência em relação ao trabalho revela-se nas crises ao serem liquidadas as posições financeiras, levando consigo os empregos dos trabalhadores, para mais tarde serem concentradas em frações maiores da propriedade, aumentando a soberania do capital sobre o trabalho.
Desse modo, virtualização do capital não apenas desbanca a tese da superacumulação financeira como mecanismo de esgotamento da exploração do trabalho, como aprofunda essa exploração, pois engendra as correntes que amarram o homem ao dinheiro, ao mesmo tempo em que o movimento de acumulação de capital cria a força de trabalho que irá explorar, antes em exércitos de reservas na porta das fábricas, hoje sentados na frente de um computador, ou no banco de motorista servindo a um aplicativo. A frustração de Harvey, iguala-se à dos amantes da mais-valia: “as pessoas falam de si para si, mostrando para os outros o quanto valem, o capital fala sozinho, medindo o valor das pessoas pelo silêncio”.
*Nathan Caixeta é bacharel em economia pela Facamp, mestrando em Desenvolvimento da Unicamp e pesquisador do NEC/FACAMP.