Brechas para a iniciativa privada
O atraso nas políticas públicas de saneamento, apontado por especialistas reunidos na oficina Saneamento básico é direito humano, em abril, deixa brechas para a defesa de um protagonismo da iniciativa privada na busca de se solucionar o problema. Essa defesa se dá em grande medida pela mídia, e um exemplo recente é o pequeno editorial do jornal O Globo, de 1º/5, que compara as situações do Rio de Janeiro e de Niterói, respectivamente em 56º e em 6º, em um ranking de tratamento de água e esgoto, em cem cidades brasileiras. “A explicação está numa diferença básica entre Rio e Niterói: enquanto os cariocas ainda dependem basicamente da estatal Cedae, os vizinhos niteroienses há tempos são atendidos por uma concessionária privada. Simples”, defende o texto.
Ouvindo-se especialistas, não é tão simples assim. O pesquisador da Fiocruz Minas Gerais Léo Heller, relator das Nações Unidas para água e saneamento e um dos coordenadores do grupo de trabalho sobre saneamento básico do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz, vê com restrições esse protagonismo e também as parcerias público-privadas. “Não creio que apostar fortemente nesse caminho (das parcerias) solucionará o problema. As experiências internacionais apontam em direção contrária. É essencial melhorar a gestão pública, o que não exclui a participação privada. Porém, esta deve estar subordinada a uma competente gestão pública, que saiba exatamente o que deseja do setor privado e consiga estabelecer efetivos mecanismos de regulação”, vem defendendo Heller há bastante tempo, como em reportagem publicada no Estado de S. Paulo, em 2012.
Análise do portal da Abrasco em junho de 2014 (ver aqui), a propósito de reportagem do jornal O Globo então recém-publicada, mostrou que é preciso olhar por trás dos dados que circulam na mídia, que tem como principais fontes das reportagens sobre saneamento não as governamentais ou os especialistas, mas consultorias econômicas e organizações não governamentais bancadas por empresas com interesses no setor.
A reportagem do Globo analisada, por exemplo, apoiava-se no estudo Benefícios econômicos da expansão do saneamento, realizado pelo Instituto Trata Brasil, organização não governamental patrocinada por empresas ligadas à comercialização de água e de equipamentos e voltadas à infraestrutura, como Braskem, AEGEA, Amanco, Tigre e Coca-Cola. O estudo apontava o país como 112º colocado num ranking de saneamento básico em universo de 200 países. Ouvido pela Abrasco, Leo Heller explicou que os dados do ranking eram de levantamento do Banco Mundial de 2011 e apresentavam grande incongruência, como utilizar o termo saneamento para definir esgotamento sanitário e comparar soluções comumente utilizadas em alguns países africanos e asiáticos, mas consideradas inadequadas pelo Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) brasileiro. No ranking no qual se apoiou a matéria do Globo, a primeira colocação é da desconhecida República de Palau – país da Micronésia com população de 20 mil habitantes – e a quinta, do Irã. “França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos ocupam, respectivamente, os 47º, 48º, 68º e 71º lugares!”, apontou Heller. “Em outras palavras, divulgar que o Brasil ocupa a 112ª colocação em 200 países confunde a opinião pública, desgasta o esforço recente do governo e pode atender a interesses não muito claros”.
Leia o artigo Privatização dos serviços de saneamento: uma análise qualitativa à luz do caso de Cachoeiro de Itapemirim (ES), de Thiago Guedes de Oliveira, Sonaly Rezende e Léo Heller